A 2 de abril, no quadro da 36.ª Viagem Apostólica
Internacional do seu Pontificado, Francisco presidiu a um encontro de oração num
dos lugares de fé mais importantes da República de Malta: o Santuário de Ta
‘Pinu, na ilha de Gozo a segunda maior ilha do arquipélago de Malta.
Uma voz
convidou a recitar “três Ave Marias, uma para cada dia que o meu corpo permaneceu
no túmulo”, na linha do que ouviu, a 22 de junho de 1883, Carmela Grima, agricultora
da ilha de Gozo, prodigioso acontecimento que ela confidenciou ao seu amigo
Francisco Portelli, que revelou à jovem que tinha ouvido as mesmas palavras nas
proximidades do mesmo local, lugar da igreja de Ta ‘Pinu, que agora é um
Santuário e que acolheu o Papa na tarde deste dia.
A homilia de
Francisco no encontro de oração começou pela reflexão sobre a hora de Jesus,
que é, no Evangelho de João, a hora da morte na cruz e que, no dizer do Papa,
não constitui a conclusão da história, mas o início duma vida nova. De facto, na
cruz, contemplamos o amor misericordioso de Cristo, que estende os braços para
nós e nos abre, pela sua morte, à alegria da vida eterna.
O Papa,
enfatizando que, a partir deste
Santuário, podemos meditar juntos sobre o novo início que brota da hora de Jesus,
recorda que, antes do edifício esplêndido que hoje contemplamos aqui, havia só
uma capelinha abandonada cuja demolição estava decidida. E anota que uma
série de acontecimentos mudou o rumo das coisas, de modo que a capelinha se
tornou “o Santuário nacional, meta de peregrinos e fonte de vida nova”, o que sugere
ao Pontífice a aplicação a este local a profecia de Isaías que dizia que Sião
não será mais chamada a “Desamparada”, nem a sua terra a “Deserta”; antes, será
chamada “Minha Dileta”, e a tua terra a “Desposada” (cf Is
62,1-5).
E, atentando
neste dia 2 de fevereiro, Francisco recordou que esteve ali como peregrino o
Papa São João Paulo II, cujo 17.º aniversário da morte ocorre hoje. Assim, “um
lugar que parecia perdido, hoje regenera a fé e a esperança no Povo de Deus”.
Sendo pertinente
voltar às origens, o Pontífice explicitou o significado de tal revisitação:
“Antes de mais nada, trata-se de
voltar a descobrir o essencial da fé. Tornar à Igreja das origens não significa
olhar para trás a copiar o modelo eclesial da primeira comunidade cristã. Não
podemos ‘saltar a história’, como se o Senhor não tivesse falado e feito
grandes coisas também na vida da Igreja dos séculos seguintes. Nem significa
sermos demasiado idealistas, imaginando que naquela comunidade não haveria dificuldades
quando, ao invés, lemos que os discípulos discutem e chegam a litigar entre
eles, e nem sempre entendem os ensinamentos do Senhor.”.
Assim, na
ótica do Papa, o essencial do voltar às origens significa “recuperar o espírito
da primeira comunidade Cristã, isto é, voltar ao coração da fé e redescobrir-lhe
o centro: a relação com Jesus e o anúncio do seu Evangelho ao mundo inteiro.
Francisco
frisou que a Igreja maltesa se gloria duma história preciosa da qual é útil extrair
tantas riquezas espirituais e pastorais. “Todavia, a vida da Igreja – vincou – nunca
é só ‘uma história passada a recordar’, mas um ‘grande futuro a construir’,
dócil aos desígnios de Deus”.
O Santo
Padre avisou que “não nos pode bastar uma fé feita de usos e costumes recebidos
por tradição, de celebrações solenes, belas iniciativas populares, momentos
fortes e emocionantes”; antes “precisamos duma fé fundada e renovada no
encontro pessoal com Cristo, na escuta diária da sua Palavra, na ativa
colaboração na vida da Igreja, na alma da piedade popular”. E disse que a crise
da fé, a apatia da prática religiosa sobretudo no pós-pandemia e a indiferença
de muitos jovens relativamente à presença de Deus não são questões a “açucarar”
pensando que, apesar de tudo, subsiste um certo espírito religioso. Na
realidade, às vezes o suporte exterior pode ser religioso, mas por trás desses
andaimes vai envelhecendo a fé.
O Papa
advertiu que é preciso vigiar para que as práticas religiosas não se reduzam à
repetição de repertório do passado, mas expressem uma fé viva, aberta, que
difunda a alegria do Evangelho.
O Santo
Padre destacou então que também os malteses iniciaram, através do Sínodo, um
processo de renovação, caminhada que lhes agradeceu, pois este é o momento de
voltar àquele começo, ao pé da cruz, olhando para a primeira comunidade Cristã,
para ser Igreja que tem a peito a amizade com Jesus e o anúncio do Evangelho, e
não a busca de espaço e atenções. Assim, exortou:
“Não tenhais medo de empreender
– como já fazeis – percursos novos de evangelização e anúncio, talvez até
arriscados, mas que tocam a vida”.
Francisco
voltou mais uma vez para as origens, para Maria e João junto da cruz,
sublinhando que, nos primórdios da Igreja, temos o seu gesto de mútua entrega, pois
o Senhor confia cada um deles aos cuidados do outro: João a Maria e Maria a
João. Não foi um simples gesto de compaixão – Jesus teria confiado a sua Mãe a
João, para que Ela não ficasse sozinha depois da morte d’Ele – mas indicação
concreta do modo como viver o mandamento supremo: o do amor. Na verdade, o
culto a Deus passa pela proximidade ao irmão. E, neste âmbito, o Pontífice,
depois de enfatizar “quão importante é na Igreja o amor entre os irmãos e o
acolhimento do próximo”, alertou:
“O mútuo acolhimento, não como
pura formalidade, mas em nome de Cristo, é um desafio permanente. É-o antes de
mais nada para as nossas relações eclesiais, porque a nossa missão produz fruto
se trabalharmos na amizade e na comunhão fraterna”.
E, vincando
que o acolhimento é também o teste decisivo para verificar quão efetivamente
esteja permeada a Igreja pelo espírito do Evangelho, observou que Maria e João se
acolhem, não no refúgio ameno do Cenáculo, mas junto da cruz, naquele lugar
tenebroso onde se era condenado e crucificado como criminoso, pelo que também
nós não podemos acolher-nos apenas entre nós à sombra das nossas belas igrejas,
enquanto fora muitos irmãos e irmãs sofrem e são crucificados pelo sofrimento,
a miséria, a pobreza e a violência. E considerou com toda a pertinência:
“No rosto destes pobres, é o
próprio Cristo que Se apresenta a vós. Esta foi a experiência do Apóstolo Paulo
que, após um terrível naufrágio, foi calorosamente acolhido pelos vossos
antepassados…. Eis o Evangelho que somos chamados a viver: acolher, ser peritos
em humanidade, acender fogueiras de ternura quando o frio da vida paira sobre
aqueles que sofrem.”.
Por fim,
sobressaiu o agradecimento do Papa aos numerosos missionários malteses “que
espalham a alegria do Evangelho por todo o mundo, aos inúmeros sacerdotes, às
religiosas e aos religiosos e a todos”, pois como disse o Bispo de Malta Dom Teuma,
“sois uma ilha pequena mas de coração grande, sois um tesouro na Igreja e para
a Igreja” – enfatizou o ilustre visitante.
***
No discurso
às Autoridades e ao Corpo Diplomático, o Papa disse ver com tristeza “como o
entusiasmo pela paz, surgido após a II Guerra Mundial, se debilitou nas últimas
décadas (...), com alguns poderosos que avançam por conta própria à
procura de espaços e zonas de influência”. E frisou que “assim não só a paz,
mas também muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as
desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas”.
Efetivamente,
o primeiro compromisso do Papa Francisco em Malta na manhã deste dia 2 foi o
encontro com as autoridades, o Corpo Diplomático e os representantes da
sociedade e do mundo da cultura no Palácio Presidencial de Valeta.
Começando por
agradecer as amáveis palavras do presidente George Vella, recordou que os
antepassados malteses deram hospitalidade ao Apóstolo Paulo e seus
companheiros, durante a sua viagem a Roma, tratando-os com “extraordinária
benevolência”.
Referindo-se
à Ilha de Malta, coração do Mediterrâneo, Francisco recordou que “há milénios,
o entrelaçamento de acontecimentos históricos e o encontro de populações
fizeram daquelas ilhas um centro de vitalidade e cultura, espiritualidade e
beleza; uma encruzilhada que soube acolher e harmonizar os influxos migratórios
de muitas partes”. E considerou que esta diversidade de influxos faz pensar na variedade
dos ventos, que caraterizam o país, não sendo por acaso que, nos antigos mapas
do Mediterrâneo, se colocava perto de Malta a Rosa dos Ventos.
Tomando a
imagem da Rosa dos Ventos, que localiza as correntes de ar pelos 4 pontos
cardeais (Norte, Sul,
Leste e Oeste), o Papa
delineou 4 aspetos essenciais da vida social e política do país.
O
vento Norte aponta a
União Europeia, onde vive uma grande família, unida na salvaguarda da paz, que
brota da unidade, o que mostra a importância de trabalhar juntos, sem divisões,
a revigorar as raízes e valores, que forjaram a unidade da sociedade maltesa.
Mas, para garantir a convivência social, é preciso reforçar os alicerces da
vida comum, com base no direito, legalidade, honestidade e justiça. Por isso, o
esforço de eliminar a ilegalidade e a corrupção deve ser forte como o vento do
norte, que purifica as costas do país, erradicando a inércia e a criminalidade.
A Casa Europeia compromete-se com a promoção dos valores da justiça e equidade
social e a tutela de uma casa mais ampla: a Casa da Criação. E, como o
vento Norte, disse Francisco, se
mistura, às vezes, com o vento que sopra do Oeste, é de ter em conta que este país europeu, sobretudo nos
jovens, partilha dos estilos de vida e pensamento ocidentais, dos valores da
liberdade e da democracia, mas também dos riscos da ambição do progresso, que
os podem separar das raízes.
Como os
malteses defendem a vida e salvam tantas pessoas, o Santo Padre encorajou-os a
continuar a defender a vida, desde o início até ao seu fim natural, e a
preservá-la sempre, sobretudo no atinente à dignidade dos trabalhadores, dos
idosos e dos doentes.
Continuando
a comparação com a “Rosa dos Ventos”, o Bispo de Roma convidou a olhar para sul, donde vêm tantos irmãos e
irmãs em busca de esperança. Malta, disse, significa “porto seguro”. O
crescente afluxo dos migrantes gera medo e insegurança, desânimo e frustração.
O fenómeno migratório marca a nossa época e traz injustiças, exploração,
mudanças climáticas, conflitos e suas consequências. De facto, multidões de
pessoas partem do sul, pobre e povoado, e dirigem-se para o norte rico. E
Francisco acrescentou:
“O agravamento da emergência
migratória – pensemos nos refugiados da atormentada Ucrânia – exige respostas
amplas e partilhadas. Apenas alguns países não podem arcar com todo este
problema ante da indiferença de outros! Países civis não podem ratificar, por
interesses próprios, acordos obscuros com criminosos que escravizam as pessoas.
O Mediterrâneo precisa da corresponsabilidade europeia, para voltar a ser
teatro de solidariedade e não lugar de trágicos naufrágios.”.
Recordando o
naufrágio do Apóstolo Paulo que, de modo inesperado, chegou àquelas costas e
foi socorrido, o Papa exortou, em nome do Evangelho, que ele pregou na Ilha, a
“abrir os corações para descobrir a beleza de servir aos mais necessitados. Não
devemos encarar o migrante como ameaça, mas como irmão a ser acolhido, segundo
o ideal cristão.
Por fim, referiu-se
ao vento do Leste, donde
provêm ventos de guerra, invasões, combates e ameaças atómicas, que só causam
mortes, destruição e ódio. Que estas sombras obscuras não levem a dissipar o sonho
de paz da humanidade. E, expressando o seu desejo de que o risco duma “guerra
fria alargada” não ceife mais vidas de gerações e inteiros povos, vincou:
“Quanto precisamos duma ‘medida
humana’ face à agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, frente ao
risco duma ‘guerra fria alargada’ que pode sufocar a vida de gerações e povos
inteiros! Infelizmente, aquele ‘infantilismo’ não desapareceu. Ressurge
prepotentemente nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na difusa
agressividade, na incapacidade de lançar pontes e começar pelos mais pobres.
Disto começa a soprar o vento gelado da guerra, que esta vez também foi
alimentado ao longo dos anos. Sim, desde há tempos que a guerra tem vindo a ser
preparada com grandes investimentos e tráficos de armas. E é triste ver como o
entusiasmo pela paz, surgido após a II Guerra Mundial, se debilitou nas últimas
décadas, bem como o percurso da comunidade internacional, com alguns poderosos
que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência. E
assim não só a paz, mas também muitas questões importantes, como a luta contra
a fome e as desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas
políticas.”.
O Papa
concluiu o seu discurso, dirigindo, mais uma vez, seu olhar ao Leste europeu e
um pensamento ao Oriente Médio, a fim de que sigam o exemplo dos malteses, que
geram benéficas convivências, apesar das diversidades. “É disto que precisam o
Líbano, a Síria, o Iémen e outros contextos, dilacerados por problemas e
violência” – acentuou o Pontífice.
***
Na
verdade, quer pelo ideário cristão, quer pela necessidade de obviar a todas as
situações gritantes de pobreza e miséria, destruição e morte, deslocamentos –
tantos deles provocados pelas guerras, de que a atual no Leste europeu
(preparada há muito tempo)
se arma em expoente fazendo esquecer todas as outras, bem como os demais
espoliados e refugiados – precisamos de pessoas e comunidades peritas em humanidade,
capazes de acender verdadeiras e genuínas fogueiras de ternura, de ternura de
Deus.
Deus,
guerra, refugiados e desarmamento estão nas preocupações do coração papal de
Francisco!
2022.04.02 – Louro de Carvalho
****
Deixo,
pela sua pertinência, o discurso do Papa às Autoridades, ao Corpo Diplomático e representantes da sociedade e do
mundo da cultura
Saúdo-vos
cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as amáveis palavras que me dirigiu
em nome de todos os cidadãos. Os vossos antepassados deram hospitalidade ao
Apóstolo Paulo durante a sua viagem para Roma, tratando-o a ele e aos seus
companheiros de viagem «com invulgar humanidade» (At 28,2); agora também eu, vindo de Roma, experimento o
acolhimento caloroso dos malteses, tesouro que passa de geração em geração no
país.
Devido à sua posição,
pode-se definir Malta como o
coração do Mediterrâneo. E não só pela posição: há milénios que o
entrelaçamento de acontecimentos históricos e o encontro de populações fazem
destas ilhas um centro de vitalidade e cultura, espiritualidade e beleza, uma
encruzilhada que soube acolher e harmonizar influxos originários de muitas
partes. Esta diversidade de influxos faz pensar na variedade dos ventos que
caraterizam o país. Não é por acaso que, nas antigas representações
cartográficas do Mediterrâneo, a rosa dos ventos estava frequentemente colocada
perto da ilha de Malta. Servindo-me precisamente desta imagem da rosa
dos ventos, que localiza as correntes de ar segundo os quatro pontos
cardeais, quero delinear quatro influxos essenciais para a vida social e
política deste país.
Sobre as ilhas maltesas, os
ventos sopram predominantemente de noroeste. O norte lembra a
Europa, em particular a casa da União Europeia, edificada para que nela habite
uma grande família unida na salvaguarda da paz. Unidade e paz são os dons que o
povo maltês pede a Deus cada vez que entoa o Hino Nacional. Com efeito assim
reza a oração escrita por Dun Karm Psaila: «Concedei, Deus Omnipotente,
sabedoria e misericórdia a quem governa, saúde a quem trabalha e assegura ao
povo maltês unidade
e paz». A paz vem depois da unidade e brota dela. Isto faz pensar na
importância de trabalhar juntos, colocar a coesão antes de toda a divisão,
revigorar raízes e valores partilhados que forjaram a unicidade da sociedade
maltesa.
Mas, para garantir uma boa
convivência social, não basta consolidar o sentido de pertença; é necessário
também reforçar os alicerces da vida comum, que assenta sobre o direito e a
legalidade. A honestidade, a justiça, o sentido do dever e a transparência são
pilares essenciais duma sociedade civilmente avançada. Por isso o empenho em
eliminar a ilegalidade e a corrupção seja forte como o vento que, soprando de norte,
varre as costas do país. E sempre se cultivem a legalidade e a transparência,
que permitem erradicar a candonga e a criminalidade, unidas pelo facto de não
agirem à luz do sol.
A casa europeia, que está
empenhada na promoção dos valores da justiça e equidade social, encontra-se
também na vanguarda da tutela da casa mais ampla da criação. O ambiente onde
vivemos é uma dádiva do céu, como reconhece também o Hino Nacional ao pedir a
Deus que olhe pela beleza desta terra, mãe adornada com a mais alta luz. É
verdade! Em Malta, onde a luminosidade da paisagem alivia as dificuldades, a
criação aparece como o dom que, por entre as provas da história e da vida,
recorda a beleza de habitar a terra. Por isso deve ser preservada da ganância
devoradora, da sofreguidão do dinheiro e da especulação imobiliária, que
compromete não só a paisagem, mas também o futuro. Ao passo que a defesa do
ambiente e a justiça social preparam o futuro, e são ótimos caminhos para fazer
apaixonar os jovens pela boa política, libertando-os das tentações do
desinteresse e alheamento.
O vento norte mistura-se
muitas vezes com o vento que sopra de oeste. De facto este país
europeu, particularmente a sua juventude, partilha os estilos de vida e de
pensamento ocidentais. Daqui derivam grandes bens – penso nos valores da
liberdade e da democracia –, mas também riscos sobre os quais é preciso vigiar,
para que a ambição do progresso não leve a separar-se das raízes. Malta é um
maravilhoso «laboratório de desenvolvimento orgânico», onde progredir não
significa cortar as raízes com o passado em nome duma falsa prosperidade ditada
pelo lucro, as necessidades sugeridas pelo consumismo, bem como pelo direito de
ter todo e qualquer direito. Para um desenvolvimento saudável, é importante
preservar a memória e tecer respeitosamente a harmonia entre as gerações, sem
se deixar absorver por homogeneizações artificiais e colonizações ideológicas.
Na base dum sólido
crescimento, está a pessoa humana, o respeito pela vida e pela dignidade de
todo o homem e mulher. Conheço o empenho dos malteses em abraçar e proteger a
vida. Já nos Atos
dos Apóstolos vos distinguíeis por salvar tantas pessoas. Encorajo-vos
a continuar a defender a vida desde o início até ao seu fim natural, mas também
a preservá-la sempre de ser descartada e negligenciada. Penso especialmente na
dignidade dos trabalhadores, dos idosos e dos doentes. E aos jovens, que correm
o risco de desperdiçar o bem imenso que são, perseguindo miragens que deixam no
íntimo tanto vazio. A provocar tudo isto é o consumismo exasperado, o
fechamento às necessidades dos outros e a praga da droga, que sufoca a
liberdade ao criar dependência. Protejamos a beleza da vida!
Continuando na rosa dos
ventos, olhemos para sul.
De lá chegam muitos irmãos e irmãs à procura de esperança. Quero agradecer às
Autoridades e à população pelo acolhimento que lhes dão em nome do Evangelho,
da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses. Segundo a
etimologia fenícia, Malta significa «porto seguro». Mas, perante
o afluxo crescente dos últimos anos, medos e inseguranças geraram desânimo e
frustração. Para se enfrentar adequadamente a complexa questão da migração, é
preciso situá-la dentro de perspetivas de tempo e espaço mais amplas. De tempo:
o fenómeno migratório não é uma conjuntura do momento, mas marca a nossa época.
Traz consigo as dívidas de injustiças passadas, de tanta exploração, de
mudanças climáticas, de desditosos conflitos cujas consequências se pagam. Do
sul pobre e povoado, massas de pessoas deslocam-se para o norte mais rico: é um
dado real, que não se pode enjeitar com anacrónicos fechamentos, porque não
haverá prosperidade nem integração no isolamento. Depois há que considerar o
espaço: o agravamento da emergência migratória – pensemos nos refugiados da
atormentada Ucrânia – exige respostas amplas e partilhadas. Não podem apenas
alguns países arcar com o problema inteiro, na indiferença de outros! Nem podem
países civis sancionar, para seu próprio interesse, acordos obscuros com
criminosos que escravizam as pessoas. O Mediterrâneo precisa de
corresponsabilidade europeia, para voltar a ser teatro de solidariedade e não a
dianteira dum trágico naufrágio da civilização.
A propósito de naufrágio,
penso em São Paulo que, durante a sua última travessia no Mediterrâneo, chegou
a estas costas de maneira inesperada e foi socorrido. Depois, mordido por uma víbora,
foi julgado um criminoso, passando pouco depois a ser considerado uma divindade
por não ter sofrido consequências (cf At 28,3-6). Por entre os exageros dos dois extremos,
escapava a evidência primária: Paulo era um homem, necessitado de acolhimento.
A humanidade vem em primeiro lugar e antepõe-se a tudo: ensina-o este país,
cuja história beneficiou com a penosa chegada do Apóstolo naufragado. Em nome
do Evangelho que ele viveu e pregou, alarguemos o coração e descubramos a
beleza de servir os necessitados. Enquanto hoje, a respeito de quem atravessa o
Mediterrâneo à procura de segurança, prevalecem o medo e «a narração da
invasão», e o objetivo primário parece ser a tutela a todo custo da própria
segurança, ajudemo-nos a não ver o migrante como uma ameaça não cedendo à
tentação de construir pontes levadiças e erguer muros. O outro não é um vírus
do qual nos devemos defender, mas uma pessoa a acolher, e «o ideal cristão
convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de
sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo atual»
(Francisco, Exort. ap. Evangelii
gaudium, 88). Não deixemos que a indiferença apague o sonho de vivermos
juntos! Claro, acolher custa fadiga e exige renúncias. Foi assim também com São
Paulo: para se porem a salvo, foi necessário primeiro sacrificar os bens do
navio (cf At 27,38).
Mas trata-se de santas renúncias as que são feitas por um bem maior, pela vida
do homem, que é o tesouro de Deus!
E temos, enfim, o vento de leste,
que sopra muitas vezes ao amanhecer. Homero chamava-o «Euro» (Odisseia V,
379.423). Entretanto foi precisamente do leste da Europa, do Oriente onde
primeiro aparece a luz, que chegaram as trevas da guerra. Pensávamos que
invasões doutros países, combates brutais pelas estradas e ameaças atómicas
fossem sombrias recordações dum passado distante. Mas o vento gelado da guerra,
que só traz morte, destruição e ódio, abateu-se prepotentemente sobre a vida de
muitos e sobre os dias de todos. E enquanto mais uma vez um poderoso qualquer,
tristemente fechado em anacrónicas reivindicações de interesses nacionalistas,
provoca e fomenta conflitos, a gente comum sente a necessidade de construir um
futuro que será vivido conjuntamente por todos ou então não subsistirá. Agora,
na noite da guerra que caiu sobre a humanidade, não façamos evaporar-se o sonho
da paz.
Malta, que resplandece
luminosa no coração do Mediterrâneo, pode inspirar-nos, porque é urgente
devolver beleza ao rosto do homem, desfigurado pela guerra. Uma bela estátua
mediterrânica, que remonta a séculos antes de Cristo, retrata a paz, Irene,
como uma mulher segurando Plutão, a riqueza. Recorda que a paz gera bem-estar,
e a guerra só pobreza. E impressiona o facto de, na estátua, a paz e a riqueza
aparecerem retratadas como uma mãe que segura um filho nos braços. A ternura
das mães, que dão ao mundo a vida, e a presença das mulheres são a verdadeira
alternativa à perversa lógica do poder, que leva à guerra. Precisamos de
compaixão e cuidados, não de visões ideológicas e populismos, que se alimentam
com palavras de ódio e não têm a peito a vida concreta do povo, da gente comum.
Há mais de sessenta anos,
da bacia do Mediterrâneo para um mundo ameaçado pela destruição, onde ditavam
lei as contraposições ideológicas e a lógica férrea dos alinhamentos, ergueu-se
uma voz contracorrente, que contrapôs, à exaltação da própria parte, um salto
profético em nome da fraternidade universal. Era a voz de Jorge La Pira, que
disse: «A conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e ideologias
que abalam a humanidade a braços com um infantilismo incrível, devolvem ao
Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir de novo as normas duma
Medida onde se possa reconhecer o homem abandonado ao delírio e aos excessos» (Discurso
no Congresso Mediterrânico de Cultura, 19/II/1960). São palavras atuais!
Quanto precisamos duma «medida humana» face à agressividade infantil e
destrutiva que nos ameaça, frente ao risco duma «guerra fria alargada» que pode
sufocar a vida de gerações e povos inteiros! Infelizmente, aquele
«infantilismo» não desapareceu. Ressurge prepotentemente nas seduções da
autocracia, nos novos imperialismos, na difusa agressividade, na incapacidade
de lançar pontes e começar pelos mais pobres. Disto começa a soprar o vento gelado
da guerra, que esta vez também foi alimentado ao longo dos anos. Sim, desde há
tempos que a guerra tem vindo a ser preparando com grandes investimentos e
tráficos de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, surgido depois da
II Guerra Mundial, se debilitou nas últimas décadas, bem como o percurso da
comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria à
procura de espaços e zonas de influência. E assim não só a paz, mas também
muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as desigualdades,
foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas.
Mas a solução para as
crises de cada um é ocupar-se das crises de todos, porque os problemas globais
requerem soluções globais. Ajudemo-nos a auscultar a sede de paz das pessoas,
trabalhemos por colocar as bases dum diálogo cada vez mais alargado, voltemos a
reunir-nos em conferências internacionais pela paz, onde seja central o tema do
desarmamento, com o olhar fixo nas gerações vindouras! E os enormes fundos que continuam
a ser destinados para armamentos sejam aplicados no desenvolvimento, na saúde e
na nutrição.
Olhando ainda para leste,
gostaria, por fim, de dirigir um pensamento ao Médio Oriente, cuja proximidade
se reflete na língua deste país, que se harmoniza com outras, como se quisesse
recordar a capacidade que têm os malteses de gerar benéficas convivências, numa
espécie de convívio das diferenças. Disto precisa o Médio Oriente: o Líbano, a
Síria, o Iémen e outros contextos dilacerados por problemas e violência.
Que Malta,
coração do Mediterrâneo, continue a fazer palpitar a esperança, o cuidado pela
vida, o acolhimento do outro, o anseio de paz, com a ajuda de Deus, cujo nome é
paz.
Sem comentários:
Enviar um comentário