terça-feira, 5 de abril de 2022

Os impactos da guerra mostram uma enorme solidariedade

 

 

A “Renascença” e a “Ecclesia” ouviram, em entrevista publicada a 3 de abril, o Padre Duarte da Cunha, do Patriarcado de Lisboa, que durante 10 anos foi secretário-geral do CCEE (Conselho das Conferências Episcopais Europeias), em que aborda a crise na Ucrânia, os impactos da pandemia e do inverno demográfico no continente e pede maior aposta em políticas de apoio às famílias.

Sobre o facto de o presidente do CCEE ter condenado a invasão da Ucrânia, alertado para a possibilidade do alastrar do conflito e afirmado a determinação de as Igrejas agirem em conjunto para acabar com a agressão, salientando a determinação e a persistência do Papa na procura da paz na região, disse pensar que “há unanimidade das Igrejas Cristãs na Europa na condenação da invasão”, podendo “haver formas de dizer mais ou menos explícitas”, por questões atinentes às relações ecuménicas, às tradições e às relações que existiam, já que há o desejo de, no fim da invasão, não ficarmos inimigos. Por isso, ninguém quer “quebrar as pontes que existem”, embora não haja ambiguidade no que se diz na condenação da guerra. E o cuidado a ter “não tem tanto a ver com a dúvida sobre o que está a acontecer”, mas com “a esperança do que virá a seguir”.

Nestes termos, o entrevistado anui a que isso justifica, por exemplo, os telefonemas entre Francisco ou o arcebispo Welby, da Igreja Anglicana, e o patriarca Cirilo, de Moscovo, isto é, não derrubar pontes, apesar dos posicionamentos polémicos do patriarca russo. E considera haver um duplo objetivo nos telefonemas ou nas tentativas diplomáticas (as conhecidas e as que ocorrem no segredo da diplomacia): preservar as pontes; e persuadir Cirilo e a Igreja Ortodoxa Russa, em geral, da necessidade de fazer o possível para travar uma guerra cuja justificação é nula. Podendo haver alguma motivação política, da parte dos russos, nada justifica esta guerra.

O Padre Duarte não se mostra surpreendido com o posicionamento da Igreja Ortodoxa Russa, visto que, “nas Igrejas Ortodoxas, a relação entre Igreja e Estado é muito mais estreita do que no mundo ocidental, onde a separação Igreja-Estado é uma coisa assumida”.

E com a interdependência política vêm complexas questões intereclesiais. O Patriarcado de Moscovo diz que a Ucrânia faz parte do seu território, pelo que o patriarca, que está do lado russo, deveria estar dos dois lados e ser um grande apelador da paz. Por isso, muitas paróquias e alguns bispos, inclusive, na Ucrânia ligados ao Patriarcado de Moscovo estão a deixar de dizer o nome do patriarca na liturgia, a significar que se estão a separar dele. Daí resultam algumas tensões. Ainda recentemente o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu (de relações cortadas com o Cirilo desde que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia foi reconhecida por Constantinopla) esteve em Varsóvia a visitar os refugiados e avistou-se com o presidente da Conferência Episcopal Polaca.

Depois, há uma aproximação do patriarca de Constantinopla aos ortodoxos que estão a sair da Ucrânia que vai criar problemas para o patriarca Cirilo. Não sabemos de todas as questões internas da Rússia, mas a coisa será mais complicada do que nós imaginamos. E diz o entrevistado que, como pessoa, o patriarca Cirilo e o seu segundo, Hilário (responsável pelo Departamento das Relações Externas do Patriarcado), que são pessoas comprometidas com a história de Rússia e com a Igreja Russa, são pessoas de fé e têm um juízo sobre a situação da Europa com alguns dados verdadeiros, mas a sua posição sobre a guerra é insustentável.

Confrontado com a ideia de que esta guerra veio mostrar que a Europa é uma das periferias a que temos de dar atenção, diz não saber se podemos dizer que a Europa seja uma periferia, mas é verdade que “na Europa há periferias”, pois “temos muitas situações na Europa que são de periferia, no sentido que o Papa Francisco usa: de pessoas que ficam esquecidas, para segundo plano, e que precisam de ser tratadas, cuidadas e acolhidas”. Isto, apesar da atratividade que a Europa tem “junto dos outros povos, sobretudo africanos e do Médio Oriente em guerra”, pois “aqui vive-se uma certa paz”, desenvolvimento económico e a liberdade que permite viver.

A questão da guerra da Ucrânia é premente “porque as pessoas estão fugir da guerra diretamente e fogem para o sítio mais perto”, o que vai criar na Europa “novas periferias e novas preocupações para que a Igreja tem alertado há muito tempo” e com muita ação no terreno.

Efetivamente, a par de muita palavra e discursos empolgados, que gostamos de ouvir, há muitas coisas a fazer-se nas paróquias, nas Cáritas, nas solidariedades.

O Padre Duarte não sabe dizer se no campo da guerra as lideranças políticas falharam na sua capacidade de previsão. O que se passa, em sua opinião, é que, dentro das lideranças europeias, mesmo políticas, há um jogo de cintura muito grande, porque há muitos interesses económicos, ideológicos e políticos; e não há total transparência na União Europeia. Por exemplo, “há uma necessidade de pôr povos diferentes, com forças económicas diferentes – o salário médio na Alemanha ou na Bulgária não é a mesma coisa; em Portugal e na França, que também é mais parecido, não é igual –, estas coisas todas em conjunto”.

Tudo isto limita a capacidade de falar a uma só voz e ter um papel mais forte na mediação, já que “há países que querem uma coisa e outros querem outra”, quando “nós queremos ter uma mesma voz”. E o entrevistado salienta o facto de a UE, quando se tratou da guerra, ter apresentado “uma unanimidade e uma resposta relativamente forte”, esquecendo as suas guerras internas e indo em frente na condenação da Rússia e na tentativa de proteger a Ucrânia, dentro do possível.

Quanto à via do diálogo e a uma possível mediação da Santa Sé, entende que “a via do diálogo é sempre possível”; e, quanto à mediação da Santa Sé, “cabe às partes decidir se consideram que a Santa Sé seja suficientemente neutra para poder para poder fazer a mediação” e que tenha força internacional. É verdade que tanto o cardeal Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, como o Papa “têm dado sinais de disponibilidade para isso e tem experiência suficiente”. De facto, a Santa Sé tem experiência e relaciona-se com os Estados todos, o que permite pensar que teria eficácia, mas levanta-se o problema da Igreja Ortodoxa Russa misturada com a questão política da guerra. Não obstante, “as tentativas de diálogo do Papa Francisco com o patriarca Cirilo também têm a ver com esta oferta de disponibilidade” e a criação de confiança para avançar.

Tendo em conta que as questões religiosas podem estar subjacentes a este conflito e a uma certa situação de fragmentação na Europa, o entrevistado foi questionado sobre se liga a situação que vivemos ao processo secularização e de uma certa perda de raízes espirituais e religiosas do que deve ser o projeto europeu. E, a este respeito, considera que “a Europa chega a estes momentos” e o que oferece é dinheiro e desenvolvimento, quando deveria oferecer “uma mundividência e uma antropologia”, ou “uma maneira de olhar para a vida” em que “é preciso ter em conta a experiência religiosa, porque senão nós estamos a desenvolver uma sociedade muito egoísta”. No entanto e apesar de estarmos em crise por causa da pandemia, estes impactos da guerra mostram, no dizer do Padre Duarte da Cunha, que “há uma possibilidade de solidariedade muito maior, o que é uma coisa bonita, porque está dentro do coração do homem”. De repente, face a um drama, “esquecemos as nossas dúvidas e vamos em frente”, mas parece que o egoísmo, o individualismo que vem da secularização “põe em crise tudo o que é a coesão social”. E, depois, enquanto há dinheiro, as coisas vão se aguentando, mas, se houver crise financeira, será como diz o provérbio: “quando não há pão, há guerra em casa”, ou “quando não há pão, todos ralham sem razão”.

A Europa que aparece unida na condenação e no combate à invasão da Ucrânia e disponível para acolher refugiados é a que se mostrou dividida e “ameaçada” pela questão das migrações. E o entrevistado frisa que tanto a Ucrânia como a Rússia são Europa. Assim, trata-se de europeus com europeus, ou seja, de refugiados europeus que transitam na Europa, o que redunda numa certa facilidade de acolhimento dissipando o espectro duma convulsão social nos países de acolhimento. Já, quando se trata de pessoas que vêm de outros continentes, religiões e outros contextos, a situação é mais delicada. E o Padre Duarte podia anotar, a meu ver, que se constrói a ideologia de que estes migrantes são diferentes, são nossos. Porém, tem razão ao advertir que, “para o bem deles e para o bem nosso tem de haver muito mais cuidado”, pois senão, “a certa altura nem eles vão ser bem recebidos”, nem nós teremos estabilidade para lhes oferecer.

Depois, refere que “há muitos relatos de tráfico” e “muitas coisas pouco sérias”, mas a sensação que tem é a de que “a preocupação, mesmo das pessoas que estão a acolher os refugiados e que depois as estão a distribuir por várias pessoas é de uma preocupação cuidadosa”. E pensa que a Europa de há 6 ou 7 anos, quando teve a crise dos refugiados que vinham da Síria ou de outros países em guerra, do Médio Oriente, ou do Norte da África, sentiu-se muito mais inibida por considerar que tais crises eram mais distantes e menos nossas.

A propósito da viagem do Papa a Malta, o entrevistado observa que a atenção da Igreja Católica a estas pessoas refugiadas e exploradas não desapareceu e se encontra muito ativa. É certo que, havendo menos notícias, há menos visibilidade. Também por isso a visita do Papa é importante.

Conta que esteve em Malta e num dos campos de refugiados, tendo-lhe feito muita impressão “estar num campo de refugiados porque há muito controlo, há muita desconfiança, há muito medo”. Assim, considera que quem governa tem que ter a perceção da sensibilidade das pessoas. “Pode-se educar, pode-se acolher…pode-se e deve-se” – e faz-se –, porque “é fundamental”, mas isso requer “uma preparação das comunidades e uma educação”. Na parte dos ucranianos é diferente: há uns 20 milhões de ucranianos espalhados pelo mundo e muitos dos que estão a sair da Ucrânia têm familiares que os podem ajudar e acolher. E, portanto, o que a Igreja e a sociedade estão a fazer “é ajudar a fazer a relação entre os que estão a sair e os que estão a acolher”.

Instado a pronunciar-se se os PRR (Planos de Recuperação e Resiliência), gizados em consequência da pandemia e presentes nas Jornadas Sociais Europeias em que se falou sobre a Europa, ficaram desatualizados com a guerra, responde que “são questões muito específicas e económicas”: o problema tem reflexos na economia, mas é maior que a economia. Com efeito, a pandemia introduziu na vida social, famílias e comunidades problemas novos que “têm reflexo numa crise económica que mais ou menos se pode vir a sentir ou se vai sentir, mas também tem reflexos nas relações sociais e, portanto, na saúde das pessoas, na saúde mental também, na saúde psicológica e espiritual”. Assim, a Europa precisa de dinheiro e de cabeça para o gerir.

Estando nós a começar com um novo Governo, é necessária a exigência até do cidadão de não se demitir do seu dever de cidadania de acompanhar a aplicação dos fundos comunitários na linha da corresponsabilidade decorrente da democracia. Nesse sentido, não basta – diz o Padre Cunha – que haja um Estado que me sirva o que é preciso, mas que também cada um se sinta responsável e corresponsável pelos seus concidadãos. Por isso, a Igreja continua a insistir no que será “um sinal da crise grande da Europa e que a pandemia veio agravar que é o problema da família”, a célula básica da sociedade, uma comunidade de vida e amor, como dizia o Papa São João Paulo II, “uma célula que tem a ver com relações de amor, interajuda, de amizades, de suporte que vai desde o nascimento até à morte”. E o entrevistado adverte que, se a sociedade, em vez de ser como célula, uma comunidade de vida e amor, tem apenas indivíduos, todo o problema económico cresce porque as redes de comunidades também são de solidariedade, de apoio e de entreajuda.

Se pensamos que é o Estado que tem de pagar tudo ou os ricos, parecerá que “eu não tenho que fazer nada”. Ora, estas guerras e estas ondas de refugiados “provam-nos que não temos tempo para esperar que o Estado faça isso ou aquilo”, pelo que “vemos a sociedade civil a mexer-se porque é movida pelo amor”. Mas há um perigo a espreitar: poderá a crise da pandemia e do individualismo e da secularização diminuir este ímpeto de solidariedade, ficando as pessoas em casa a ver na televisão a guerra e a terem por eles uma pena inútil e ineficaz.

Por fim, sendo-lhe apontado o problema da Europa envelhecida e do inverno da natalidade e perguntado se é “necessária uma task-force para a promoção da natalidade”, refere que, nas jornadas sociais europeias de Bratislava se falou bastante desta transição demográfica e do problema da demografia. E julga deve ficar bem claro que as políticas de natalidade têm que ser sempre associadas a políticas de proteção da família e do apoio à família, que vai da relação entre o trabalho e a família à coesão familiar, a questões económicas, a apoios, a subsídios, liberdades educativas. Portanto, há o apoio às famílias a ajuda a que não tenham medo de ter filhos sentindo-se, “por um lado livres de os ter e, por outro lado, apoiadas para os ter”.

Há uns 20 anos era só a Igreja que falava do inverno demográfico; hoje já toda a gente fala do inverno demográfico, porque a Europa “está muito assustada”, pois económica e socialmente “não é sustentável uma sociedade que está sempre a envelhecer e a envelhecer sempre cada vez mais”. De facto, os idosos vão deixar de ter apoios nos jovens e os jovens vão entrar em conflito com os idosos porque, “a certa altura, não conseguem sobreviver uns e os outros”. Porém, admite que a Europa, apesar de assustada, tem feito pouco para resolver o problema por questões ideológicas:

Se falarmos do aborto ou se falamos de todas as políticas de uma certa revolução sexual que introduziu uma lógica de irresponsabilidade na vida sexual das pessoas, a cultura europeia neste momento não fala muito disso, porque não quer diminuir essas liberdades. (…) E agora é preciso ter filhos, mas não vão fazer política de natalidade a dizer ‘façam-se filhos’. Qualquer dia temos como no admirável mundo novo de Aldous Huxley, os filhos feitos em fábricas e não feitos em famílias. E isso é uma coisa que não tem futuro porque quando se tem um filho gera-se uma vida, mas educa-se e integra-se depois na vida social.”.

Também refere o peso dos imigrantes na solução da falta de mão-de-obra, mas com cautela:

Quando há falta de mão-de-obra, e precisamos de mais gente, poderão os emigrantes resolver isso? Em parte, sim, mas os emigrantes não vêm só com mão-de-obra, vêm como pessoas, e como pessoas com as suas famílias, com as suas culturas, com as suas religiões.”.

E reconhece que “há toda uma mudança cultural na Europa inevitável, porque a história da Europa é feita de mudanças culturais, de ondas de pessoas que vêm e que vão”. E isso impõe que tenhamos “uma identidade forte e idealmente cristã que introduza, quer o olhar para Deus e para o interior, quer olhar para o irmão e para o amor bastante forte”, que nos leve a integrar os outros, a enriquecer-nos com o que os outros dão e a mudarmos um bocadinho o que somos e melhorar. Há esperança, mas a esperança tem que estar sempre aliada a um empenho, “a fazer qualquer coisa para que aquilo que eu espero aconteça”.

2022.04.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário