A “Renascença” e a “Ecclesia”
ouviram, em entrevista publicada a 3 de abril, o Padre Duarte da Cunha, do Patriarcado de Lisboa,
que durante 10 anos foi secretário-geral do CCEE (Conselho das
Conferências Episcopais Europeias), em que aborda a crise na Ucrânia, os impactos da
pandemia e do inverno demográfico no continente e pede maior aposta em
políticas de apoio às famílias.
Sobre o facto de o presidente
do CCEE ter condenado a invasão da Ucrânia, alertado para a possibilidade do
alastrar do conflito e afirmado a determinação de as Igrejas agirem em conjunto
para acabar com a agressão, salientando a determinação e a persistência do Papa
na procura da paz na região, disse pensar que “há unanimidade das Igrejas Cristãs na Europa na
condenação da invasão”, podendo “haver formas de dizer mais ou menos explícitas”,
por questões atinentes às relações ecuménicas, às tradições e às relações que
existiam, já que há o desejo de, no fim da invasão, não ficarmos inimigos. Por
isso, ninguém quer “quebrar as pontes que existem”, embora não haja ambiguidade
no que se diz na condenação da guerra. E o cuidado a ter “não tem tanto a ver
com a dúvida sobre o que está a acontecer”, mas com “a esperança do que virá a
seguir”.
Nestes termos, o entrevistado anui a que isso justifica, por exemplo, os telefonemas
entre Francisco ou o arcebispo Welby, da Igreja Anglicana, e o patriarca
Cirilo, de Moscovo, isto é, não derrubar pontes, apesar dos posicionamentos
polémicos do patriarca russo. E considera haver um duplo objetivo nos
telefonemas ou nas tentativas diplomáticas (as conhecidas e as que
ocorrem no segredo da diplomacia): preservar as pontes; e persuadir Cirilo e a Igreja Ortodoxa Russa, em
geral, da necessidade de fazer o possível para travar uma guerra cuja
justificação é nula. Podendo haver alguma motivação política, da parte dos
russos, nada justifica esta guerra.
O Padre Duarte não se
mostra surpreendido com o posicionamento da Igreja Ortodoxa Russa, visto que, “nas Igrejas Ortodoxas, a relação entre
Igreja e Estado é muito mais estreita do que no mundo ocidental, onde a
separação Igreja-Estado é uma coisa assumida”.
E com a interdependência política vêm complexas questões
intereclesiais. O Patriarcado de Moscovo diz que a Ucrânia faz parte do seu
território, pelo que o patriarca, que está do lado russo, deveria estar dos
dois lados e ser um grande apelador da paz. Por isso, muitas paróquias e alguns
bispos, inclusive, na Ucrânia ligados ao Patriarcado de Moscovo estão a deixar
de dizer o nome do patriarca na liturgia, a significar que se estão a separar
dele. Daí resultam algumas tensões. Ainda recentemente o patriarca de
Constantinopla, Bartolomeu (de relações cortadas com o Cirilo desde
que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia foi reconhecida por Constantinopla) esteve em Varsóvia a visitar os
refugiados e avistou-se com o presidente da Conferência Episcopal Polaca.
Depois, há uma aproximação do patriarca de
Constantinopla aos ortodoxos que estão a sair da Ucrânia que vai criar
problemas para o patriarca Cirilo. Não sabemos de todas as questões internas da
Rússia, mas a coisa será mais complicada do que nós imaginamos. E diz o
entrevistado que, como pessoa, o patriarca Cirilo e o seu segundo, Hilário (responsável pelo Departamento das Relações Externas do Patriarcado), que são pessoas comprometidas com a
história de Rússia e com a Igreja Russa, são pessoas de fé e têm um juízo sobre
a situação da Europa com alguns dados verdadeiros, mas a sua posição sobre a
guerra é insustentável.
Confrontado com a ideia de
que esta guerra veio mostrar que a Europa é uma das periferias a que temos de
dar atenção, diz não saber se podemos dizer que a Europa seja uma periferia, mas é
verdade que “na Europa há periferias”, pois “temos muitas situações na Europa
que são de periferia, no sentido que o Papa Francisco usa: de pessoas que ficam
esquecidas, para segundo plano, e que precisam de ser tratadas, cuidadas e
acolhidas”. Isto, apesar da atratividade que a Europa tem “junto dos outros
povos, sobretudo africanos e do Médio Oriente em guerra”, pois “aqui vive-se
uma certa paz”, desenvolvimento económico e a liberdade que permite viver.
A questão da guerra da Ucrânia é premente “porque as
pessoas estão fugir da guerra diretamente e fogem para o sítio mais perto”, o
que vai criar na Europa “novas periferias e novas preocupações para que a
Igreja tem alertado há muito tempo” e com muita ação no terreno.
Efetivamente, a par de muita palavra e discursos
empolgados, que gostamos de ouvir, há muitas coisas a fazer-se nas paróquias,
nas Cáritas, nas solidariedades.
O Padre Duarte não sabe
dizer se no campo da guerra as lideranças políticas falharam na sua capacidade
de previsão. O que se passa, em sua opinião, é que, dentro das lideranças europeias, mesmo
políticas, há um jogo de cintura muito grande, porque há muitos interesses
económicos, ideológicos e políticos; e não há total transparência na União
Europeia. Por exemplo, “há uma necessidade de pôr povos diferentes, com forças
económicas diferentes – o salário médio na Alemanha ou na Bulgária não é a
mesma coisa; em Portugal e na França, que também é mais parecido, não é igual –,
estas coisas todas em conjunto”.
Tudo isto limita
a capacidade de falar a uma só voz e ter um papel mais forte na mediação, já
que “há países que querem uma coisa e outros querem outra”, quando “nós
queremos ter uma mesma voz”. E o entrevistado salienta o facto de a UE, quando
se tratou da guerra, ter apresentado “uma unanimidade e uma resposta
relativamente forte”, esquecendo as suas guerras internas e indo em frente na
condenação da Rússia e na tentativa de proteger a Ucrânia, dentro do possível.
Quanto à via
do diálogo e a uma possível mediação da Santa Sé, entende que “a via do
diálogo é sempre possível”; e, quanto à mediação da Santa Sé, “cabe às partes
decidir se consideram que a Santa Sé seja suficientemente neutra para poder
para poder fazer a mediação” e que tenha força internacional. É verdade que
tanto o cardeal Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, como o Papa “têm
dado sinais de disponibilidade para isso e tem experiência suficiente”. De
facto, a Santa Sé tem experiência e relaciona-se com os Estados todos, o que
permite pensar que teria eficácia, mas levanta-se o problema da Igreja Ortodoxa
Russa misturada com a questão política da guerra. Não obstante, “as tentativas
de diálogo do Papa Francisco com o patriarca Cirilo também têm a ver com esta
oferta de disponibilidade” e a criação de confiança para avançar.
Tendo em conta que as
questões religiosas podem estar subjacentes a este conflito e a uma certa situação
de fragmentação na Europa, o entrevistado foi questionado sobre se liga a situação
que vivemos ao processo secularização e de uma certa perda de raízes
espirituais e religiosas do que deve ser o projeto europeu. E, a este respeito,
considera que “a Europa chega a estes momentos” e o que oferece é dinheiro e
desenvolvimento, quando deveria oferecer “uma mundividência e uma antropologia”, ou “uma maneira de olhar para a vida”
em que “é preciso ter em conta a experiência religiosa, porque senão nós
estamos a desenvolver uma sociedade muito egoísta”. No entanto e apesar de
estarmos em crise por causa da pandemia, estes impactos da guerra mostram, no
dizer do Padre Duarte da Cunha, que “há uma possibilidade de solidariedade
muito maior, o que é uma coisa bonita, porque está dentro do coração do homem”.
De repente, face a um drama, “esquecemos as nossas dúvidas e vamos em frente”,
mas parece que o egoísmo, o individualismo que vem da secularização “põe em
crise tudo o que é a coesão social”. E, depois, enquanto há dinheiro, as coisas
vão se aguentando, mas, se houver crise financeira, será como diz o provérbio: “quando
não há pão, há guerra em casa”, ou “quando não há pão, todos ralham sem razão”.
A Europa que aparece unida
na condenação e no combate à invasão da Ucrânia e disponível para acolher
refugiados é a que se mostrou dividida e “ameaçada” pela questão das migrações.
E o entrevistado frisa que tanto a Ucrânia como a Rússia são Europa. Assim, trata-se de europeus com
europeus, ou seja, de refugiados europeus que transitam na Europa, o que
redunda numa certa facilidade de acolhimento dissipando o espectro duma
convulsão social nos países de acolhimento. Já, quando se trata de pessoas que
vêm de outros continentes, religiões e outros contextos, a situação é mais
delicada. E o Padre Duarte podia anotar, a meu ver, que se constrói a
ideologia de que estes migrantes são diferentes, são nossos. Porém, tem razão
ao advertir que, “para o bem deles e para o bem nosso tem de haver muito mais
cuidado”, pois senão, “a certa altura nem eles vão ser bem recebidos”, nem nós
teremos estabilidade para lhes oferecer.
Depois, refere que “há muitos relatos de tráfico” e “muitas
coisas pouco sérias”, mas a sensação que tem é a de que “a preocupação, mesmo
das pessoas que estão a acolher os refugiados e que depois as estão a
distribuir por várias pessoas é de uma preocupação cuidadosa”. E pensa que a
Europa de há 6 ou 7 anos, quando teve a crise dos refugiados que vinham da
Síria ou de outros países em guerra, do Médio Oriente, ou do Norte da África,
sentiu-se muito mais inibida por considerar que tais crises eram mais distantes
e menos nossas.
A propósito da viagem do
Papa a Malta, o entrevistado observa que a atenção da Igreja Católica a estas
pessoas refugiadas e exploradas não desapareceu e se encontra muito ativa. É
certo que, havendo menos notícias, há menos visibilidade. Também por isso a
visita do Papa é importante.
Conta que esteve em Malta e num dos campos de
refugiados, tendo-lhe feito muita impressão “estar num campo de refugiados porque há muito controlo, há muita
desconfiança, há muito medo”. Assim, considera que quem governa tem que ter
a perceção da sensibilidade das pessoas. “Pode-se educar, pode-se
acolher…pode-se e deve-se” – e faz-se –, porque “é fundamental”, mas isso
requer “uma preparação das comunidades e uma educação”. Na parte dos ucranianos
é diferente: há uns 20 milhões de ucranianos espalhados pelo mundo e muitos dos
que estão a sair da Ucrânia têm familiares que os podem ajudar e acolher. E,
portanto, o que a Igreja e a sociedade estão a fazer “é ajudar a fazer a
relação entre os que estão a sair e os que estão a acolher”.
Instado a pronunciar-se se
os PRR (Planos de Recuperação e Resiliência), gizados em
consequência da pandemia e presentes nas Jornadas Sociais Europeias em que se
falou sobre a Europa, ficaram desatualizados com a guerra, responde que “são questões muito específicas e
económicas”: o problema tem reflexos na economia, mas é maior que a economia.
Com efeito, a pandemia introduziu na vida social, famílias e comunidades
problemas novos que “têm reflexo numa crise económica que mais ou menos se pode
vir a sentir ou se vai sentir, mas também tem reflexos nas relações sociais e,
portanto, na saúde das pessoas, na saúde mental também, na saúde psicológica e
espiritual”. Assim, a Europa precisa de dinheiro e de cabeça para o gerir.
Estando nós a começar com
um novo Governo, é necessária a exigência até do cidadão de não se demitir do
seu dever de cidadania de acompanhar a aplicação dos fundos comunitários na
linha da corresponsabilidade decorrente da democracia. Nesse sentido, não basta
– diz o Padre Cunha – que haja um Estado que me sirva o que é preciso, mas que também cada um se
sinta responsável e corresponsável pelos seus concidadãos. Por isso, a Igreja
continua a insistir no que será “um sinal da crise grande da Europa e que a
pandemia veio agravar que é o problema da família”, a célula básica da
sociedade, uma comunidade de vida e amor, como dizia o Papa São João Paulo II,
“uma célula que tem a ver com relações de amor, interajuda, de amizades, de
suporte que vai desde o nascimento até à morte”. E o entrevistado adverte que,
se a sociedade, em vez de ser como célula, uma comunidade de vida e amor, tem
apenas indivíduos, todo o problema económico cresce porque as redes de
comunidades também são de solidariedade, de apoio e de entreajuda.
Se pensamos que é o Estado que tem de pagar tudo ou os
ricos, parecerá que “eu não tenho que fazer nada”. Ora, estas guerras e estas
ondas de refugiados “provam-nos que não temos tempo para esperar que o Estado
faça isso ou aquilo”, pelo que “vemos a sociedade civil a mexer-se porque é
movida pelo amor”. Mas há um perigo a espreitar: poderá a crise da pandemia e
do individualismo e da secularização diminuir este ímpeto de solidariedade,
ficando as pessoas em casa a ver na televisão a guerra e a terem por eles uma
pena inútil e ineficaz.
Por fim, sendo-lhe apontado
o problema da Europa envelhecida e do inverno da natalidade e perguntado se é “necessária
uma task-force para a promoção da natalidade”, refere que, nas jornadas sociais europeias de Bratislava se
falou bastante desta transição demográfica e do problema da demografia. E julga
deve ficar bem claro que as políticas de natalidade têm que ser sempre
associadas a políticas de proteção da família e do apoio à família, que vai da
relação entre o trabalho e a família à coesão familiar, a questões económicas,
a apoios, a subsídios, liberdades educativas. Portanto, há o apoio às famílias
a ajuda a que não tenham medo de ter filhos sentindo-se, “por um lado livres de
os ter e, por outro lado, apoiadas para os ter”.
Há uns 20 anos era só a Igreja que falava do inverno
demográfico; hoje já toda a gente fala do inverno demográfico, porque a Europa
“está muito assustada”, pois económica e socialmente “não é sustentável uma
sociedade que está sempre a envelhecer e a envelhecer sempre cada vez mais”. De
facto, os idosos vão deixar de ter apoios nos jovens e os jovens vão entrar em
conflito com os idosos porque, “a certa altura, não conseguem sobreviver uns e
os outros”. Porém, admite que a Europa, apesar
de assustada, tem feito pouco para resolver o problema por questões
ideológicas:
“Se
falarmos do aborto ou se falamos de todas as políticas de uma certa revolução
sexual que introduziu uma lógica de irresponsabilidade na vida sexual das pessoas,
a cultura europeia neste momento não fala muito disso, porque não quer diminuir
essas liberdades. (…) E agora é preciso ter filhos, mas não vão fazer política
de natalidade a dizer ‘façam-se filhos’. Qualquer dia temos como no admirável
mundo novo de Aldous Huxley, os filhos feitos em fábricas e não feitos em
famílias. E isso é uma coisa que não tem futuro porque quando se tem um filho
gera-se uma vida, mas educa-se e integra-se depois na vida social.”.
Também refere o peso dos imigrantes na solução da
falta de mão-de-obra, mas com cautela:
“Quando
há falta de mão-de-obra, e precisamos de mais gente, poderão os emigrantes
resolver isso? Em parte, sim, mas os emigrantes não vêm só com mão-de-obra, vêm
como pessoas, e como pessoas com as suas famílias, com as suas culturas, com as
suas religiões.”.
E reconhece que “há toda uma mudança cultural na
Europa inevitável, porque a história da Europa é feita de mudanças culturais,
de ondas de pessoas que vêm e que vão”. E isso impõe que tenhamos “uma identidade
forte e idealmente cristã que introduza, quer o olhar para Deus e para o
interior, quer olhar para o irmão e para o amor bastante forte”, que nos leve a
integrar os outros, a enriquecer-nos com o que os outros dão e a mudarmos um
bocadinho o que somos e melhorar. Há esperança, mas a esperança tem que estar
sempre aliada a um empenho, “a fazer qualquer coisa para que aquilo que eu
espero aconteça”.
2022.04.04 – Louro de Carvalho
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