Francisco, na
homilia da Missa Crismal desta Quinta-feira Santa, ante os sacerdotes e diáconos
da diocese de Roma, de que é o Bispo, enunciou três espaços de idolatria
escondida que impedem ou diminuem o ardor do coração e a virtuosidade da ação
apostólica. É certo que o Pontífice se dirigiu aos sacerdotes, mas a temática
aplica-se como uma luva, com as necessárias adaptações, aos cristãos em geral,
dada a condição que lhe dá o sacerdócio comum em que são constituídos pela graça
batismal e que está numa relação de reciprocidade com o sacerdócio ministerial.
O Papa
começou por aflorar o conteúdo nuclear do trecho de Isaías, proclamado em 1.ª
leitura (Is 61,1-3a.6a.8b-9), em que o Senhor promete que seremos
chamados sacerdotes do Senhor e nomeados ministros do nosso Deus, nos
recompensará e fará connosco “uma aliança eterna”.
Falando da
graça muito grande do sacerdócio ministerial, o Bispo de Roma sublinha que ela se
destina primariamente ao nosso povo; e que “é um grande dom que o Senhor
escolha, dentre o seu rebanho, alguns que se ocupem das suas ovelhas, em
exclusivo, como pais e pastores”.
Depois, à luz do trecho do
Apocalipse, proclamado em 2.ª leitura (Ap 1,5-8), aponta a recompensa que Deus reserva para os sacerdotes e para o povo
sacerdotal: “o seu Amor e o perdão incondicional dos nossos pecados com o preço
do seu sangue derramado na Cruz”. E sustenta que “não há preço mais elevado do
que o seu precioso Sangue”, pelo que não pode ser aviltado por uma nossa conduta
indigna.
Da perícopa messiânica
do Evangelho de Lucas que enforma esta liturgia (Lc 4,16-21) de bênção e consagração dos santos óleos da unção (profética, sacerdotal e real), o Santo Padre centrou-se no
segmento discursivo “estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga” para o
relacionar com o Apocalipse que nos fala de olhos fixos em Jesus, da atração
irresistível do crucificado e ressuscitado que nos leva a reconhecer e adorar
Aquele que “vem no meio das nuvens”. E adiantou que “a graça final, quando o
Senhor ressuscitado voltar, será a graça de O reconhecermos de imediato”,
vendo-O trespassado e reconhecendo-O, mas sentindo “quem somos nós: pecadores,
e nada mais”.
E, retomando
a necessidade de acolher a graça de “fixar os olhos em Jesus”, preconiza o exercício
da contemplação amorosa “em que vemos o nosso dia com o olhar de Jesus
repassando assim as graças do dia, os dons e tudo o que Ele fez por nós a fim
de Lhe agradecermos” e Lhe mostramos as nossas tentações, para as
identificarmos e rejeitarmos. Com efeito, se nos mantivermos sob o seu olhar bondoso,
Ele dar-nos-á um sinal para Lhe mostrarmos os nossos ídolos, que escondemos,
como Raquel, sob as dobras do manto (cf Gn 31,34-35), pois “deixar que o Senhor veja os
nossos ídolos escondidos torna-nos fortes face a eles e tira-lhes o poder”.
De facto,
como verifica o Pontífice, no espaço tomado por nós como exclusivo,
intromete-se o diabo a acrescentar um elemento maligno: fazer com que nos
comprazamos “dando rédea solta a uma paixão ou cultivando outra” e levar-nos a substituir, com os ídolos
escondidos, “a presença das
Pessoas divinas – a presença do Pai, do Filho e do Espírito –, que moram
dentro de nós”. E, embora digamos a nós mesmos que distinguimos perfeitamente um
ídolo e Deus, na prática tiramos espaço à Trindade para o dar ao demónio, numa
adoração indireta: a de quem o esconde, mas continuamente escuta as suas
sugestões e consome os seus produtos, de modo que não sobra nada para Deus. Além
disso, diz o Papa, há os demónios “educados”, acerca dos quais disse Jesus que “são
piores do que o outro que Ele tinha já expulsado”: tocam a campainha,
instalam-se e pouco a pouco apoderam-se da casa. E Francisco desenvolve o seu
pensamento:
“Os ídolos têm
qualquer coisa (um elemento) de pessoal. (…) Quando não deixamos que Jesus nos
faça ver que, errando, neles estamos a procurar-nos a nós mesmos sem motivo,
então deixamos um espaço onde se intromete o Maligno. Devemos recordar-nos de que
o demónio exige que façamos a sua vontade e o sirvamos… Mas nem sempre pede que
o sirvamos e adoremos continuamente; sabe como levar-nos. É um grande
diplomático: basta-lhe receber a adoração de vez em quando para lhe demonstrar
que é o nosso verdadeiro senhor e que até se sente deus na nossa vida e no nosso
coração.”.
Depois, o Papa enunciou três
espaços de idolatria escondida em que o Maligno se serve dos seus ídolos para “nos
separar da presença benéfica e amorosa
de Jesus, do Espírito e do Pai”.
Um primeiro abre-se onde
há mundanidade espiritual, ou seja, uma proposta de vida, uma
cultura do efémero, da aparência, da maquilhagem, cujo critério é o triunfalismo
sem Cruz. Ora, Jesus reza para que o Pai nos defenda dessa cultura. A tentação
duma glória sem Cruz vai contra Jesus que Se humilha na Encarnação e que é,
como sinal de contradição, o único remédio contra todo o ídolo. Com efeito, “ser
pobre com Cristo pobre e porque Cristo escolheu a pobreza é a lógica do Amor”. O
Senhor apresenta-Se na sua humilde
sinagoga e na sua pequena
aldeia a proferir o mesmo Anúncio que fará no final da história, quando vier na
sua Glória, rodeado pelos anjos. E os nossos olhos devem estar fixos em Cristo,
aqui e agora, como estarão na parusia. Na verdade, a procura da própria glória
rouba-nos a presença de Jesus humilde e humilhado, Senhor próximo de todos,
Cristo sofredor com todos os que sofrem, adorado pelo povo que sabe quais são
os seus verdadeiros amigos. E diz repetidamente o Pontífice: “um sacerdote mundano não passa dum pagão
clericalizado”. E diríamos: um
cristão mundano não passa dum pagão dito cristão.
O segundo dos espaços referido
pelo Papa cria raízes onde se dá a
primazia ao pragmatismo dos números, o amor às estatísticas,
“que podem apagar qualquer traço pessoal no debate e dar a proeminência às
maiorias”, que passam a ser “o critério de discernimento”. Ora, isto não pode
ser o único modo de proceder nem o único critério na Igreja, pois “as pessoas
não se podem reduzir a números”, quando Deus dá o Espírito “sem medida” (Jo 3,34). Comprazemo-nos no controlo que nos dá a lógica que não se interessa
pelos rostos, uma lógica sem encarnação, que não é a lógica do amor. Uma
caraterística dos grandes santos, que é o cunho do Espírito, é saberem
retirar-se para deixar todo o espaço a Deus. Com efeito, “o Espírito não tem
imagem própria, simplesmente porque todo Ele é Amor, que faz brilhar a imagem
do Filho e, nesta, a do Pai”.
O terceiro espaço de
idolatria escondida, aparentado com o anterior, é o que se abre com o funcionalismo,
ambiente sedutor em que muitos, “mais do que pelo percurso, se entusiasmam com
a tabela de marcha”, a carreira, não tolerando o mistério e apostando na
eficácia. Se o primeiro ídolo, o do triunfalismo, substitui a presença do
Filho, o segundo substitui a presença do Espírito e o terceiro substitui a
presença do Pai. O nosso Pai, que é o Criador, não é alguém que só faz funcionar
as coisas, mas é Alguém que cria como Pai, com ternura, ocupando-Se das criaturas
e agindo para que o homem seja mais livre. Ora, o funcionalista não sabe
alegrar-se com as graças que o Espírito derrama sobre o povo e de que pode
alimentar-se como trabalhador que recebe a sua recompensa. O funcionalismo
leva-nos a deixar de lado a adoração do Pai nas pequenas e grandes coisas da
nossa vida e a comprazermo-nos na eficácia dos nossos programas.
O pragmatismo
dos números e o funcionalismo levam-nos a substituir, pela verificação empírica,
a esperança, que é o espaço do encontro com Deus. É uma atitude de vanglória da
parte do pastor, como da parte do leigo, que devia ser empenhado, “uma atitude
que desintegra a união do seu povo com Deus e plasma um novo ídolo baseado em
números e programas”: o ídolo “o meu poder, o nosso poder”, o programa, os números,
os planos pastorais. E esconder estes ídolos prejudica a fidelidade da aliança
sacerdotal e resfria a relação pessoal com o Senhor.
Quase a
rematar a parénese, o Bispo de Roma porfia que “Jesus é o único caminho para
não nos enganarmos no conhecimento do que sentimos e para onde nos leva o nosso
coração”, o caminho para um bom discernimento”. Sendo sinal de contradição (“nem sempre é sinónimo de algo
cruento ou duro, pois a misericórdia é sinal de contradição como o é, e muito
mais, a ternura”), Jesus
faz com que os ídolos se manifestem, se veja a sua presença, raízes e funcionamento,
para que o Senhor os possa destruir. Por isso, a proposta é: “dar espaço ao
Senhor, para que Ele possa destruir os nossos ídolos escondidos” e prestar
atenção a que “não renasça a cizânia destes ídolos que soubemos esconder nas
dobras do nosso coração”.
Por fim, o Papa Francisco
concluiu pedindo a São José, o pai castíssimo e sem ídolos escondidos, que “nos
liberte de toda a avidez de possuir”, que “é o terreno fecundo onde crescem
estes ídolos”, e nos alcance “a graça de não desistir na árdua tarefa de discernir
estes ídolos que, com grande frequência, escondemos ou se escondem”. E exortou
a que peçamos a São José que, quando duvidarmos sobre como proceder melhor,
interceda por nós a fim de que o Espírito nos ilumine o discernimento, como
iluminou o dele quando esteve para deixar Maria “em segredo” (“láthrai”), para que saibamos, com nobreza de coração, subordinar à
caridade o que aprendemos com a lei.
Uma boa sugestão para pasto
espiritual de pastores e fiéis!
2022.04.14 – Louro de
Carvalho
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