sexta-feira, 22 de abril de 2022

“Toda guerra é anacrónica neste mundo e a este ponto da civilização”

 

É uma afirmação radical e inequívoca do Papa em entrevista ao jornal argentino “La Nación”, publicada a 21 de abril e de que o jornal vaticano “L’Osservatore Romano” publicou uma síntese. E nela reafirma que as tentativas da Santa Sé para alcançar a paz “jamais cessarão”.

O Pontífice declarou-se disposto “a fazer de tudo para a guerra acabar”, pois, como afirmou sem rodeios, a prioridade é alcançar a paz na Ucrânia.

Francisco, confirmando ao jornalista Joaquín Morales Solá que “há sempre” esforços para se alcançar a paz, disse que “o Vaticano nunca descansa”, que não lhe podia contar os pormenores porque já não seriam mais esforços diplomáticos, mas “as tentativas jamais cessarão”.

Questionado sobre a sua visita na manhã do dia 25 de fevereiro (um dia após o início do conflito) à Embaixada da Federação Russa junto à Santa Sé, localizada na Via della Conciliazione, o Papa disse que fora sozinho, pois não queria que ninguém o acompanhasse, porque era sua “responsabilidade pessoal”. E, confessando ter sido uma decisão que tomou numa “noite de vigília pensando na Ucrânia”, explicitou:

É claro para aqueles que querem ver as coisas como elas são que eu estava indicando ao governo que ele pode terminar a guerra imediatamente. Para ser sincero, eu queria fazer algo para que não houvesse nem mesmo uma morte a mais na Ucrânia. Nem mesmo uma a mais. E estou disposto a fazer de tudo.”.

Sobre as motivações da eclosão da guerra, o Bispo de Roma disse:

Toda a guerra é anacrónica neste mundo e a este ponto da civilização. Foi por isso que beijei publicamente a bandeira da Ucrânia vinda da cidade da Bucha. Foi um gesto de solidariedade com os seus mortos, as suas famílias e aqueles que foram forçados a emigrar.”.

E, sobre a possibilidade de sua viagem a Kiev, o Pontífice explicou:

Não posso fazer nada que ponha em risco objetivos mais elevados, que são o fim da guerra, uma trégua, ou pelo menos um corredor humanitário. A que serviria que o Papa fosse a Kiev se a guerra continuasse no dia seguinte?”.

Isto é, uma eventual visita a Kiev, no atual cenário de guerra, poderia colocar em risco os “objetivos superiores” da sua ação e da diplomacia da Santa Sé. E, pelos vistos, o clero de Kiev e o ucraniano estavam com dificuldades em preparar tal visita neste contexto.

À curiosa pergunta do jornalista “Porque nunca menciona Putin ou a Rússia?”, Francisco respondeu que “um Papa nunca nomeia um chefe de Estado, muito menos um país, que é superior a seu chefe de Estado”.

Francisco falou também da “muito boa” relação e de um possível encontro com o Patriarca de Moscovo, Kirill, e lamenta que “o Vaticano tenha tido que cancelar um segundo encontro com o patriarca Kirill, que tínhamos planejado para junho em Jerusalém”. Porém, a diplomacia vaticana considerou que um encontro entre os dois “neste momento poderia levar a muita confusão”.

E lembrou que sempre promoveu o diálogo inter-religioso. Quando era arcebispo de Buenos Aires, reuniu cristãos, judeus e muçulmanos num diálogo frutífero. E disse que esta foi uma das iniciativas de que se orgulha mais.  É a mesma política que promove no Vaticano. Com efeito, como se ouve dizer muitas vezes, para o Papa, “o acordo é superior ao conflito”.

***

Entretanto, é do conhecimento público que, em coerência com o pedido papal, no Domingo de Ramos, de uma trégua pascal, para alcançar a paz, o Papa e a Santa Sé se uniram, a 21 de abril, ao apelo do secretário-geral da ONU, António Guterres, por um cessar-fogo nas celebrações da Páscoa na Ucrânia e Rússia. O mesmo tipo de apelo foi lançado a 19 de abril por sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, chefe da Igreja Greco-Católica Ucraniana, para uma trégua por ocasião da celebração da Páscoa segundo o calendário juliano, no dia 24 de abril”.

O comunicado sobre o tema emitido pelo Vaticano lembra as populações presas em zonas de guerra, pedindo que possam sair em segurança.

Conscientes de que nada é impossível para Deus, o Papa e a Santa Sé invocam o Senhor para que a população encurralada em zonas de guerra seja evacuada e a paz seja restabelecida rapidamente, pedindo a quem tem a responsabilidade das nações que escute o clamor pela paz das pessoas.

No dia 19, o secretário-geral da ONU apelou a uma trégua de 4 dias na guerra na Ucrânia, durante o período da Páscoa, uma ideia lançada a 10 de abril pelo Papa. Diz Guterres:

Peço aos russos e aos ucranianos que silenciem as armas e criem um caminho para a segurança de tantos em risco imediato. O período de quatro dias da Páscoa deve ser um momento de união para salvar vidas e promover o diálogo para acabar com o sofrimento na Ucrânia.”.

As comunidades católicas e ortodoxas de rito bizantino seguem o calendário juliano e celebram a Páscoa, este ano, a 24 de abril. O objetivo da trégua é a abertura de corredores humanitários para a saída da população civil das zonas de conflito.

Salvem vidas. Parem o derramamento de sangue e destruição. Abram uma janela para o diálogo e a paz”, declarou António Guterres.

O secretário-geral da ONU no dia 19, por telefone, com o arcebispo-mor de Kiev, D. Sviatoslav Shevchuk, a informá-lo do seu pedido de um cessar-fogo de Páscoa na Ucrânia.

A nota do Departamento de Informação da Igreja Greco-Católica Ucraniana refere o pedido inicial de Francisco para que todos os cristãos possam celebrar pacificamente a Páscoa.

No passado dia 18, o Conselho das Igrejas e Organizações Religiosas da Ucrânia apelou, em comunicado, à abertura de corredores humanitários em Mariupol, denunciando uma situação de “catástrofe”. O conselho inter-religioso diz-se pronto para ajudar na operação “a fim de evitar quaisquer provocações no processo de entrega de ajuda humanitária e evacuação de civis”.

Os episcopados católicos da União Europeia (COMECE) e a Conferência das Igrejas Cristãs (CEC) enviaram uma carta aos presidentes da Rússia e da Ucrânia, a pedir um cessar-fogo nas celebrações da Páscoa de 17 a 24 de abril.

A trégua seria benéfica para os cidadãos dos dois países, oferecendo-lhes uma pausa da incerteza preocupante sobre a vida dos seus entes queridos que lutam no conflito e são afetados por este.

O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) anunciou que mais de 5 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia desde o início da invasão. E a ONU estima que existam igualmente 7,1 milhões de deslocados internos.

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A 21 de abril, o Papa recebeu Viktor Orbán, Primeiro-Ministro da Hungria, reconhecendo o esforço do país no acolhimento de refugiados ucranianos. Os dois interlocutores estiveram reunidos no Vaticano, cerca de 40 minutos, naquela que foi a primeira viagem ao estrangeiro do chefe de Governo húngaro, após a sua reeleição para o cargo.

O portal ‘Vatican News’ precisa que se tratou duma audiência “privada”, pelo que Orbán não se encontrou com o Secretário de Estado do Vaticano. E a nota divulgada na internet, após o encontro, acompanhada por fotografias e um vídeo do encontro refere que “Francisco reconheceu a ação de proteção e acolhimento em favor dos refugiados em fuga da Ucrânia”.

O Papa saudou o Primeiro-Ministro, mostrando-se “feliz” pela sua presença e pedindo as bênçãos de Deus para o país, onde esteve em setembro de 2021, para o encerramento do Congresso Eucarístico Internacional. E Orbán manifestou a Francisco o desejo de o receber, numa viagem apostólica mais longa, visita para a qual o Papa já manifestou disponibilidade.

É de recordar que, no dia de Páscoa, antes da Bênção Urbi et Orbi, o Papa mencionou as “numerosas vítimas ucranianas, os milhões de refugiados e deslocados internos, as famílias divididas, os idosos abandonados, as vidas destroçadas e as cidades arrasadas”. E disse:

Não me sai da mente o olhar das crianças que ficaram órfãs e fogem da guerra. Vendo-as, não podemos deixar de nos dar conta do seu grito de sofrimento, juntamente com o de tantas outras crianças que sofrem em todo o mundo: as que morrem de fome ou por falta de cuidados médicos, as que são vítimas de abusos e violências e aquelas a quem foi negado o direito de nascer.”.

Francisco apontando o dedo ao “ódio fratricida”, pediu que deixemos entrar a paz na nossa vida:

Há ainda em nós o espírito de Caim, que vê Abel não como irmão, mas como rival, e pensa como há de eliminá-lo. Temos necessidade do Crucificado ressuscitado para acreditar na vitória do amor, para esperar na reconciliação.”, referiu.

E clamou com veemência:

Haja paz para a martirizada Ucrânia, tão duramente provada pela violência e a destruição da guerra cruel e insensata para a qual foi arrastada. Sobre esta noite terrível de sofrimento e morte, surja depressa uma nova aurora de esperança. Escolha-se a paz. (…) Que se deixe de exibir os músculos, enquanto as pessoas sofrem. Por favor, não nos habituemos à guerra, empenhemo-nos todos a pedir a paz, em alta voz, das varandas e pelas ruas! Paz! Quem tem a responsabilidade das nações, ouça o clamor do povo pela paz.”.

Ao mesmo tempo, o Papa apontou sinais encorajadores que surgiram no conflito, como as portas abertas de tantas famílias e comunidades que acolhem migrantes e refugiados em toda a Europa e exortou a que “estes numerosos atos de caridade se tornem uma bênção para as nossas sociedades, por vezes degradadas por tanto egoísmo e individualismo, e contribuam para torná-las acolhedoras com todos”.

2022.04.22 – Louro de Carvalho

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