A ideia de Igreja Samaritana, ora propalada aos quatro ventos e constante
de planos pastorais, como é o caso do da Arquidiocese de Braga, vem de São Paulo
VI:
“Vejo com clareza que aquilo
de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de
aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de
campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem
níveis altos de colesterol ou de açúcar no sangue. Primeiro curar as suas
feridas, depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as
feridas… É necessário começar de baixo.”.
O
livro “Accanto a Giovanni Paolo II. Gli
amici e i collaboratori raccontano”, preparado por Wlodzimierz Redzioch,
com contributo do Papa emérito, apresenta uma interessante panorâmica das
encíclicas do santo Papa Wojtyla em que está presente, nalgumas de modo
eminente, a ideia de fraternidade entre todos os homens numa dimensão cristã
que não exclui a humanidade. Na análise da “Splendor
veritatis”, Ratzinger chama a atenção para o fornecimento de dados muito
válidos sobre a justiça social e a sua ligação com a verdade. O próprio Bento
XVI na sua “Caritas in veritate”
destaca o papel da verdade na prática da caridade. E Francisco tem sido um constante
profeta da solidariedade e do encontro dos povos contra a hegemonia do lodaçal da
indiferença tão claramente expostos na “Evangelii
gaudium”; e recentemente com a “Fraetelli
tutti” desafia os crentes e o mundo inteiro para a fraternidade como
caraterística de todo o ser humano como fruto da paternidade comum em Deus em
relação a cada um de nós. E cabe aos irmãos o ónus alegre da solidariedade
entre todos, com especial atenção aos mais débeis – pobres, doentes, feridos,
refugiados –, de modo que ninguém fique para trás ou seja diminuído ou
beliscado na sua dignidade. E a Igreja, qual hospital de campanha, no dizer de Francisco,
a todos atende e de todos cuida com amor e misericórdia.
Não
faltaram Padres conciliares no Vaticano II a pugnar pela Igreja dos pobres na
linha do muito que já vinha a sentir-se e a fazer-se antes do Concílio. Na
radiomensagem de 11 de Setembro de 1962, um mês antes da abertura do Concílio, o
Papa São João XXIII vincou:
“Para os países subdesenvolvidos a Igreja
apresenta-se como é e como quer ser, como Igreja de todos, e em particular como
a Igreja dos pobres”.
Tais
palavras inspiraram um grupo de bispos que se fizeram ouvir pela voz de
Lercaro, Arcebispo de Bolonha, na XXXV congregação geral de 6 de Dezembro de
1962, o que não agradou muito ao episcopado italiano. Destacou-se “Consolez mon peuple. Le Concile et l'Église
des pauvres”, de Paul Gauthier, com textos de Mourroux e Congar. As raízes
espirituais remontam ao século XIX, aos padres operários que em 1944 obtiveram
a aprovação do Cardeal Suhard, anulada pelo Vaticano em 1953, e ao movimento “Les
Compagnons de Jésus” (na terminologia de H. Fesquet), nascido na Palestina sob as
batutas da Igreja melquita e do patriarca Máximos IV. É de lembrar o que se
passava nos povos do Terceiro Mundo com os seus múltiplos problemas. Às gentes
esquecidas por esse mundo fora chamou Gómez de Arteche “Grupos “extra aulam”.
Salientaram-se ainda no Vaticano II Hélder Câmara, Mercier (dos
Missionários de África, bispo de Laghouat, Saará argelino) que falou duma “Bandung cristã”.
De referir também os bispos dos países socialistas que enfrentavam a ideologia
marxista que apresentava o capitalismo como opressão dos povos, grupo que também
pensava nos oprimidos da Europa industrializada. Hakim, Arcebispo de Akka-Nazaré,
estimulou um primeiro texto de Gauthier, “Les
pauvres, Jésus et l’Église”. Havia a separação entre a Igreja e o mundo dos
pobres. A 26 de Outubro, reuniu-se no colégio belga o grupo com Himmer e Hakim,
presidindo Gerlier, arcebispo de Lião, que disse:
“O dever da Igreja, na época em que nos
encontramos, é de adaptar-se do modo mais sensível à situação criada pelo
sofrimento de tantos homens e da ilusão, que certas aparências favorecem,
tendente a fazer crer que a Igreja não teria a preocupação dominante...”.
Teve
grande impacto a nota de Mercier sobre vários aspetos relacionados com a
fidelidade da Igreja ao Evangelho e à Revelação no patriarca Máximos IV Saigh,
o qual citou São João XXIII:
“A Igreja e os pobres: deve antes de mais
fazer-se alguma coisa para que a Igreja seja de facto a Igreja de todos e
particularmente a Igreja dos Pobres. (...) A pobreza é uma questão de vida ou
de morte para a Igreja.”.
Foi
proposta a criação dum secretariado ou comissão especial para o exercício da
justiça pessoal e social, em especial para com os povos em via de
desenvolvimento, da paz e da unidade da família humana, da evangelização dos
pobres. São Papa João XXIII, já doente, não pôde receber o grupo, mas apoiou a
ideia. O grupo, embora não tenha conseguido um estatuto oficial, obteve de João
XXIII e de Paulo VI todo o apoio, mas sentiu-se marginalizado no Concílio e
mesmo o pedido de Paulo VI a Lercaro de fazer propostas concretas não obteve
êxito.
É
de relevar que, a 16 de novembro de1965, cerca de 40 bispos celebraram uma
Eucaristia nas catacumbas de Domitila, pediram para “ser fiéis ao espírito de
Jesus” e assinaram o “Pacto das Catacumbas” como “convite aos irmãos no
episcopado” para que levem uma “vida de pobreza” e sejam uma Igreja “serva e pobre”,
como queria São João XXIII.
Com
a publicação do livro “Pobre para os
pobres – a missão da Igreja”, com textos do Cardeal Müller, do padre
dominicano Gustavo Gutiérrez, fundador da teologia da libertação, e do teólogo
Josef Sayer, com prefácio do Papa Francisco, foi definitiva e solenemente
sancionada a teologia da libertação. Na apresentação participaram ainda o Cardeal
Rodriguez Maradiaga, coordenador do conselho de cardeais (G8) encarregado da reforma da Cúria,
e o então diretor da Sala de Imprensa vaticana, Padre Lombardi. As polémicas,
pelo menos oficialmente, passaram à história.
Gutiérrez
nunca teria pensado que chegaria essa hora. A conferência episcopal alemã
promoveu o programa “Misereor” em que entra o Peru, de que sobressaiu a
publicação das Edições do Mensageiro de Pádua escrito a 4 mãos com o título: “Do lado dos pobres. Teologia da libertação,
teologia da Igreja”.
Segundo
Maradiaga, sem Gutiérrez e a sua teologia da libertação, Müller não teria partilhado
a vida de laboriosos campesinos da região de Cuzco, nem – como salientou o
ex-presidente de “Misereor”, o teólogo Joseph Sayer – nunca teria “dormido no
pavimento de terra nas pobres casas de barro dos agricultores sobre uma pele de
alpaca, devendo suportar o fastídio das pulgas e dos porquinhos-da-índia”. Para
Maradiaga o primeiro violino é o Papa Francisco. Maradiaga, que lecionou música
durante 13 anos, definiu-o “pobre para os pobres” como verdadeira sinfonia, com
diversos solistas “de grande solidez teológica e humana”. O primeiro violino
“que dá o lá” é Francisco, que no prefácio recorda que o dinheiro por si “é um
instrumento bom, é um meio que alarga as nossas possibilidades, que de algum
modo prolonga e aumenta as capacidades da liberdade humana, permitindo-lhes
operar no mundo, de agir, de dar fruto”. Contudo, “dinheiro e poder económico
podem ser um meio que separa as pessoas, confinando-as num horizonte
egocêntrico e egoístico”.
A
opção pelos pobres é facto de coração, de experiência, mais do que uma questão
de livros.
Gutiérrez
evidenciou a necessidade e o significado de uma Igreja “samaritana”. O teólogo
peruano propôs uma releitura da parábola do bom Samaritano. É a parábola do ‘próximo’,
que permite conhecer plenamente o documento da Aparecida de 2007. ‘Próximo’
implica ‘fazer-se próximo’. O próximo não é o vizinho, mas aquele de quem nos aproximamos
para lhe levar ajuda, aquele a quem nos dirigimos, depois de abandonar o nosso
caminho. A “Igreja em saída”, como quer Francisco, tem de sair para encontrar
as pessoas. A Igreja, segundo um texto da conferência de Medellin (1968), muitas vezes citado por Eduardo
Pirónio, cardeal argentino, deve ser “pobre, missionária e pascal”. E Joseph
Sayer afirmou:
“O que nos impressiona em particular foi o
facto de Gutiérrez ter sempre advertido para o perigo duma romantização da
pobreza, quando afinal os pobres são os preferidos de Deus, não porque são
bons, mas porque Deus é bom. Deus dá gratuitamente o seu amor sobretudo a quem
é negada uma vida digna de ser vivida.”.
Müller,
a quem o presidente da Conferência Episcopal quis dar um poncho, vestido depois
pelo purpurado alemão, disse que o termo pobreza
está ligado à sua vida pela consciência amadurecida da presença da pobreza –
material e espiritual – no mundo. Müller, ainda jovem, alimentou-se em Mogúncia
da doutrina social do bispo do século XIX von Ketteler (1811-1891)
que se empenhou a
sério na questão social antes de Leão XIII.
***
“É preciso aprender a abraçar”, diz Francisco. Infelizmente vamos muito
devagar. As propostas de mudança ficam na periferia… “Igreja de Alfândega,
diz Francisco, é uma Igreja preocupada antes pelas normas a
aplicar do que pelas pessoas a acolher”. Igreja preocupada consigo mesma,
Igreja de conservação, voltada par as suas estruturas. As pessoas que mais nos ajudaram não foram
as que nos corrigiram, mas as que nos amaram. Por isso, diz o Papa:
“Só a misericórdia gera, amamenta, faz
crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Sem a misericórdia temos hoje
poucas possibilidades de nos inserir no mundo dos ‘feridos’, que têm
necessidade de compreensão, de perdão, de amor”.
Samaritana
é uma igreja cujos membros, no seu agir, procuram imitar o comportamento do Bom
Samaritano referido por Lucas (Lc 10,25-37), onde se diz não à indiferença e
ao passar ao lado, onde os que podem disponibilizam tempo e dinheiro em
benefício dos que precisam. É uma igreja onde as pessoas são muito mais
importantes que as coisas, os edifícios se constroem na medida em que são
exigidos pelo serviço às pessoas e cada um se preocupa com o bem do outro, seja
ele quem for, servindo-o, sem olhar se é do nosso grupo ou se é estranho, se é
bom ou se é mau, se é justo ou pecador, mas escutando o que nos quer dizer,
vendo o que nos mostra – e que precise da nossa dedicação pessoal e do empenho
de todos os que forem necessários. Igreja samaritana é uma comunidade cristã,
próxima, atenta e aberta, cujos membros, exercendo a sinodalidade de escuta e solidariedade,
praticam um verdadeiro diálogo e se preocupam com o serviço aos mais
carenciados, como sendo dos nossos, sejam eles quem forem.
Mas
a Igreja samaritana assume também a surpresa da Samaritana retratada no
Evangelho de João (Jo 4,1-42). Não tem dificuldade em
questionar o desconhecido, colocando-lhe todas as questões que precisa de ver
esclarecidas; está aberta à surpresa e à mudança; não tem dificuldade em
confiar os segredos da sua vida a Jesus; encanta-se com o conhecimento que Ele
tem de si mesma; perante a diversidade de locais de adoração, assume a adoração
ao Pai em espírito e verdade; pede a Jesus que lhe dê da água da vida, pois
quer conhecer “o dom de Deus”; não tem dificuldade em reconhecer Jesus como o
Messias; deixa cântaro e tudo para correr à cidade clamar que viu um homem que
lhe disse tudo quanto ela fizera, o Messias; sabe que os homens da cidade
acreditam em Jesus por causa das palavras dela, mas não leva a mal que digam
que já não é pelas suas palavras que creem em Jesus, mas porque eles O ouviram
e sabem que Ele é o Salvador do mundo.
Enfim,
a Igreja samaritana sabe e quer cuidar do outro, seja ele quem for, mas também
é aquela que tanto é Igreja quando lida com os estrangeiros como o é quando se
sente estrangeira; é samaritana quando tem sede do dom, quando sai a apregoar,
quando promove a fé, quando não é dona da fé e quando não é autorreferencial,
mas dá a primazia total ao Senhor Jesus, o Cristo.
2022.04.10 – Louro de Carvalho
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