Após a listagem dos queixumes sobre o poder
político eleito da parte dos máximos representantes dos detentores do poder
político não decorrente de eleição, na solene cerimónia da Abertura do Ano
Judicial 2022, neste dia 20 de abril, importa ver o que pensam a Ministra da
Justiça, pelo Governo, o Presidente da Assembleia da República, pelos
deputados, e o Presidente da República, enquanto garante do regular
funcionamento das instituições democráticas.
O Chefe de Estado alertou para a “crónica queixa
da violação do segredo de justiça”, sem
resultados visíveis para “a tentação de fazer justiça na praça pública”, perante as “esperas
infindáveis” por alguns processos – que são alguns dos efeitos da visão ou perceção de muitos portugueses
– injusta, muitas vezes (admite), mas “que não pode ser ignorada por nenhum de
nós”.
Marcelo Rebelo de Sousa disse que a justiça em Portugal continua demasiado lenta, porque “os recursos continuam a
ser ou insuficientes ou pouco efetivos no seu uso”. E acrescentou:
“Essa lentidão, que é desigual, afeta em muitos casos o progresso
económico e social do país e, sobretudo, a própria perceção da
justiça pelos cidadãos; e curiosamente parece dar sinais de contaminar fórmulas
alternativas de jurisdição, como a arbitral – aliás, caríssima para o cidadão
comum”.
O Presidente da República admitiu que a perceção da justiça pelos
cidadãos “é muitas vezes injusta, por minorar o mérito e o trabalho de milhares
de protagonistas”, mas realçou que “acaba por ter efeitos que não podem
ser ignorados, num tempo em que aquilo que parece ser se sobrepõe com frequência
àquilo que é”. Mas “o que parece pesa imenso e não é só assacável à comunicação
social”. Depois, observou que prevalece “a ideia de que ainda há uma
justiça para os ricos e outra para os pobres” e defendeu “a
exigência de maior comunicação e melhor comunicação por parte do poder
judicial, incluindo naquela justiça que é menos mediática, mas não menos
relevante”.
Em seguida, alertou para “a concentração dos cidadãos num
número preciso de casos processuais, generalizando o que sobre eles entendeu à
justiça como um todo” e para “a crónica queixa da violação do segredo de justiça, sem resultados
visíveis, a não ser a crença de que os processos aparecem nos média por um
fenómeno de iluminação vinda de outra galáxia”.
Marcelo advertiu também para “a tentação de fazer justiça na
praça pública, porque a impaciência e a velocidade da opinião escrita e falada
se contenta cada vez menos com esperas infindáveis e prefere julgar logo a ter
de aguardar umas décadas” e para “a preocupação crescente com a
prevenção dos litígios ou da violação da lei, antes mesmo da intervenção dos
tribunais”.
O Presidente da República apelou a que se abra “uma nova fase” no combate
à corrupção em Portugal, considerando que a opinião pública exige
urgência nesta matéria, e a que se reafirmem os princípios democráticos. Referiu
que “o Governo avançou com novo mecanismo de combate à corrupção, que
se espera seja independente e que conjugue a sua atuação com o Tribunal de
Contas”. E afirmou:
“Podemos, se
quisermos, tentar abrir uma nova fase em que a vontade de combater essa
chaga não só permita multiplicar investigações – o que já começou a
ocorrer no passado recente – como converter esperas de década, década e meia,
duas décadas até uma decisão final num tempo muitíssimo mais razoável em
democracia”.
O Chefe de Estado vincou o facto de a Assembleia da República ter aprovado
no fim da anterior legislatura, “em muitos casos por unanimidade, um conjunto de diplomas contra a corrupção” e foi
“até perto de matéria sensível” para “mais reforçado combate ao
enriquecimento ilícito, mas que passe no juízo de apreciação do Tribunal
Constitucional”. Disse que, se as “leis para apertar a malha aos que
surgem com património incompatível com rendimentos de cargos políticos ou
públicos ou para travar favores, preferências” são ainda insuficientes, então
“que se façam, mas comedidamente, com ponderação, para serem eficazes”, e que
“se apliquem essas leis, ainda que imperfeitas ou incompletas, testando o seu
alcance e eficácia”. E, realçando que “as magistraturas desejam e
merecem mais e melhores meios”, pediu que, se “há falta de magistrados”
ou “problemas no acesso”, então “que se resolva”.
Rebelo de Sousa considerou que “a justiça relacionada com o combate à corrupção ganha aos olhos da opinião pública uma
ainda maior urgência coletiva” e “uma maior dramatização, mais acentuada ainda
na opinião publicada”. Questionou sobre como responder à sensação de
mal-estar social de convicção de que “a corrupção continuaria a estar imparável
e de que quase tudo e quase todos sucumbiriam às suas tentações: políticos,
funcionários, magistrados, grupos empresariais, entidades associativas,
cidadãos”. E respondeu: “Em tempos como
este cumpre manter cabeça fria e serena e agir consistentemente”; e, se “há
erros de perceção a esclarecer, com rigor e clareza, que se esclareçam”.
O Presidente da República terminou a sua intervenção com a defesa do regime
democrático, aduzindo que “a mais imperfeita das
democracias é sempre mais justa do que a mais sofisticada das ditaduras”. E
apelou:
“Queremos uma
muito melhor democracia, mas democracia, não queremos aventuras ou seduções de
democracias ditas iliberais, ou seja, ditaduras dissimuladas. Reafirmemos,
pois, os valores os princípios democráticos e pratiquemo-los no dia a dia.
Evitemos as condutas que enfraqueçam aqueles valores e princípios. Previnamos o
seu desrespeito. Combatamos a sua violação. Reformemos a
justiça onde e quando e como tal se revele necessário, sem messianismos, que
são próprios de instituições débeis ou frágeis, mas com instituições fortes e
prestigiadas e, sobretudo, com cidadania exemplar”.
E, sustentando que uma sociedade justa depende da “honestidade pessoal e
cívica de todos e de cada um”, sem a qual “não nascerá nem crescerá
espontaneamente a honestidade pessoal e cívica” dos seus representantes, que
são “o espelho” do povo, declarou:
“Eu persisto em
acreditar que nós somos um povo visceralmente honesto. Não vejo razão para
acreditar que esse povo honesto deixe de escolher pelo seu voto.”.
***
Por seu turno, o Presidente da Assembleia da República, estreante nestas
andanças, prometeu empenhar-se em que o Parlamento produza leis
mais claras, simples e rigorosas, compreensíveis por todos, considerando que há
ainda muito por fazer nesta matéria.
Augusto Santos Silva argumentou que “leis e decisões judiciais claras representam um meio poderosíssimo para
induzir a confiança nos contratos, agilizar procedimentos e diminuir burocracias, prevenir e
combater a corrupção, facilitar o acesso à justiça e imprimir celeridade na sua
administração”. E defendeu:
“Geram, além do
mais, substanciais reduções dos custos de contexto na realização de
investimentos e enormes poupanças na despesa das famílias, das empresas e do
Estado. Temos mesmo de avançar, em conjunto, no esforço de tornar as leis
mais rigorosas, mais simples e mais compreensíveis.”.
Santos Silva observou que em Portugal e na Europa vários programas
conduziram já a “melhorias concretas” na clareza e rigor da legislação, “mas
muito resta ainda por fazer”. Como exemplo de progresso, apontou a “operação de limpeza” do nosso ordenamento jurídico “de inúmeros
diplomas já caducos”.
E, advertindo que não se trata de “tarefa pouca ou menor, bem pelo contrário”, declarou:
“E o que eu quero
hoje aqui dizer a todos os operadores judiciários é que me empenharei para que o Parlamento faça, nesta tarefa de todos, a
sua parte – que enquanto assembleia representativa de todos os cidadãos
portugueses, na pluralidade e diversidade dos interesses e ideias,
e enquanto legislador por excelência, o Parlamento produza leis claras, tão
simples quanto possível, compreensíveis por todos”.
***
Quem tem o ónus de executar as leis emanadas do Parlamento é o Governo, a
quem incumbe verificar, a partir da avaliação do funcionamento dos sistemas e
suas necessidades, propor ao Parlamento novas leis e alterações às que estão em
vigor. E, em matéria de Justiça, tem específica responsabilidade a Ministra da
Justiça, sendo que esta afirmou que aumentar a confiança dos
cidadãos e das empresas na justiça é “um dos desígnios a perseguir” e,
por isso, um dos primeiros desafios práticos é contribuir para “a melhoria do
conhecimento”. Depois, do conhecimento há que partir para a confiança e da
confiança para a eficiência. Para tanto, “é decisivo que se reforce o
investimento na melhoria dos indicadores da Justiça, agora com recurso a
ferramentas eletrónicas renovadas, e se potencie o seu uso”, como “é
decisivo que se reutilize a abundante informação gerada, sempre no respeito
pelas regras de tratamento de dados”.
Segundo Catarina Sarmento e Castro, também estreante nestas lides, o conhecimento ajuda “a situar mais corretamente a perceção dos
destinatários sobre o sistema de justiça, em permanente escrutínio de
resultados”, permitindo o reforço da transparência e, com ela, da confiança.
Para a ministra, os dados do conhecimento também permitem
reconhecer e assinalar que o grau de eficiência ainda “não é homogéneo
em todos os tribunais e em todos os tipos de litígios”, e que “há um caminho
que importa percorrer”.
A governante salientou que os diagnósticos estão feitos e há medidas no
terreno, sendo agora necessário “resolver as disfuncionalidades que a prática
vai revelando”, e que o conhecimento é instrumento para um “outro
desafio importante destinado a garantir uma justiça mais eficiente, que é o
desafio de uma melhor gestão do sistema”. Referiu que, na procura da
eficiência, podem ser aprofundadas medidas gestionárias de modo a melhorar os
métodos de trabalho, a gestão dos recursos humanos, identificando onde fazem
falta, melhorando a gestão processual, documental e de apoio e a articulação
das instâncias judiciárias com serviços complementares da Justiça. E considerou
que tudo isto é fundamental para dar a resposta em várias vertentes,
designadamente na fase de inquérito criminal, e para proporcionar uma melhor
resposta multidisciplinar às vítimas de crimes, com destaque para aquelas que
se encontram sem situação de especial vulnerabilidade.
Dizendo ser “importante que se leve a sério o desafio da
tramitação judicial digital por definição, com a exclusividade da
tramitação processual eletrónica em todas as jurisdições e instâncias
judiciais, inclusive na fase de inquérito, para tornar efetiva a celeridade das
decisões”, enfatizou:
“Neste percurso
de transição digital, é fundamental a concretização dos
investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência”.
A ministra prometeu novo impulso ao processo de
digitalização, acelerando a modernização dos sistemas de informação e de
infraestrutura tecnológica da justiça, com o desenvolvimento e
implementação dos sistemas de tramitação processual, o Magistratus (sistema de
interface para Juízes dos Tribunais Comuns e Tribunais Administrativos e
Fiscais) e o MP Codex (de
Magistrados do Ministério Público).
Prometeu o reforço do sistema de informação para as
Secretarias Judiciais, de interface com mandatários, a assegurar a
interoperabilidade de sistemas, a desmaterialização das comunicações e a
incorporação de capacidades de analítica e de inteligência artificial.
A par dos desafios do conhecimento, da gestão, do digital e da formação de
magistrados, oficiais de justiça e outros operadores judiciários, apontou como prioridades implementar um sistema de apoio
judiciário efetivo e de qualidade, persistir no combate à corrupção,
através da “Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024” e dar resposta aos
desafios do sistema prisional. E disse:
“Merecerá reflexão
também o aprofundamento da presença no sistema de Justiça de meios alternativos
de resolução de conflitos, que potenciam o acesso à justiça, alargando a oferta
à procura de tutela”.
No novo ciclo que se abre na Justiça, a ministra garantiu que podem contar
com ela para “ouvir todos, mas sobretudo para fazer com todos”, exigindo
que “esse caminho de melhor justiça e para todos” seja percorrido por todos em
prol duma justiça mais eficiente e mais célere, mais próxima, de maior
qualidade e mais cognoscível, porque mais transparente e refundadora da
confiança”.
***
Tudo bem ao nível das intenções. E, quanto à prática, estará o Estado com
vontade política e com força anímica para investir na Justiça ou espera que os
privados constituam alternativa pela mediação arbitral ou espera que os
cidadãos se resignem a não incomodar o poder judicial? Não estará o Chefe de
Estado, com as palavras que abrangem todas as áreas da Justiça, a mascarar
discursivamente as insuficiências do Estado nesta matéria e a pactuar com o costumeiro
“lassez faire, laissez passer”?
2022.04.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário