quinta-feira, 21 de abril de 2022

Na justiça, falta de meios e envelhecimento das magistraturas

 

Na cerimónia de Abertura do Ano Judicial a 20 de abril, a dois terços do seu encerramento, os dois representantes máximos do sistema, Lucília Gago, Procuradora-Geral da República (PGR), e Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), puseram o dedo nas feridas do sistema, mas fizeram jus, apesar de tudo, aos dados positivos do devir judiciário.

***

A Procuradora-Geral da República

A PGR sublinhou “a disrupção provocada pelo contexto pandémico que, desde 2020, se abateu no país e no mundo” marcando o formato e a cadência das vidas, bem como agora a guerra na Ucrânia, que traz instabilidade e agudiza a crise económica que estava já a ser combatida.

Depois, apontando o MP (Ministério Público) qual magistratura de iniciativa de matriz vocacionada para a defesa do interesse comunitário e de elevado sentido de responsabilidade social, referiu que este não se deixa tolher pela adversidade nem enjeita esforços para fazer prevalecer o sentido e os objetivos da sua missão. E assim prosseguirá enquanto “magistratura singular, autónoma, hierarquizada, de potencialidades inigualáveis”, em que o espírito de corpo único e de unidade na ação lhe confere dimensão essencial na estrutura do Estado para realização da Justiça e, em particular, da justiça penal.

A seguir, vêm as queixas: um expressivo e persistente défice de recursos materiais e humanos, a dificultar a prossecução das suas atribuições e a tornar a sua autonomia ilusória por lhe faltar a componente financeira; o grave défice dos quadros face à vastidão de competências, “avultando o ritmo de jubilações que vêm ocorrendo e que previsivelmente continuarão a ocorrer nos tempos mais próximos”; a generalizada insuficiência da afetação de oficiais de justiça e de recursos materiais e humanos para dar resposta às imprescindíveis perícias financeiras, contabilísticas e informáticas, com crescentes reflexos nesse desempenho.

Não obstante, segundo a PGR, os objetivos estratégicos para o triénio 2022-2024 atenderam aos objetivos de política criminal do biénio 2021-2022 e priorizaram: a corrupção e os crimes conexos; e o cibercrime, face ao incremento exponencial da utilização de meios digitais por cidadãos e empresas, em todas as vertentes da vida em sociedade.

Manteve-se prioritária a recuperação de ativos, abrangendo todos os crimes em que da sua prática decorram vantagens patrimoniais e a promoção de mecanismos de articulação com a prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Também é dada prioridade aos direitos das crianças e jovens, cuja situação de risco se agravou na pandemia e com a crise económica a ela associada. E a dinamização da intervenção tutelar educativa vem merecendo particular atenção ante os fenómenos de criminalidade violenta e grave praticados por jovens e face às potencialidades de prevenção criminal que encerra. Para tanto, o Gabinete da Família, da Criança e do Jovem da PGR concebeu e pôs em execução um plano de ação, integrando múltiplos contactos e iniciativas de cariz formativo e a elaboração e divulgação de um guião de procedimentos de comunicação intitulado “Educar para o direito: uma forma de (também) proteger”. Com efeito, pandemia e guerra geram acrescidas necessidades de proteção dos adultos vulneráveis, sendo a intervenção em sua defesa uma prioridade para o MP, reafirmada nos objetivos estratégicos 2022-2024, para garantir a sua plena participação na sociedade em condições de igualdade e no respeito da dignidade da pessoa humana.

Das conclusões preliminares do balanço da aplicação do Regime Jurídico do Maior Acompanhado resultou um grupo de trabalho de magistrados do MP, com vista a melhores práticas de atuação à luz da Constituição e da Convenção de Nova Iorque (Direitos das Pessoas com Deficiência).

A PGR anoutou que o crescimento do universo de cidadãos a trabalhar em casa revelou fragilidades que abriram espaço para a sua exploração ilícita e para expansão das atividades ilícitas nas redes de comunicações. Por isso, tem-se procurado melhorar os recursos disponíveis: pelo esforço de coordenação, dinamizando a Rede Cibercrime, integrada por um grupo de procuradores especializados que conta com várias dezenas de magistrados em todo o país; pelo desenvolvimento de iniciativas formativas para habilitar os magistrados com capacidade e ferramentas técnicas de investigação na área; e pelo esforço na cooperação internacional, estando o MP envolvido em redes especializadas, na UE, no espaço ibero-americano e na CPLP.

A emergência da prova digital, no dizer da PGR, desafia o MP pelas exigências técnicas e jurídicas que coloca, já que a obtenção de prova digital em processo penal reclama uma intervenção que ultrapassa muitas vezes as fronteiras do Estado que leva a cabo a investigação. Assim, a nova era digital dita a aceleração da transformação digital como prioridade no domínio da Justiça, pois apenas o reforço da qualidade e quantidade dos equipamentos informáticos e dos meios digitais disponíveis poderá, de modo efetivo, assegurar a transição digital na justiça visando a eficácia. Na verdade, o combate aos fenómenos criminais graves, integrados na cibercriminalidade, na criminalidade económico-financeira e na criminalidade violenta e organizada não se faz com a investigação criminal orientada só para a aplicação de pena; é indispensável assegurar que os agentes não retiram vantagem económica da sua prática, privando-os dos benefícios gerados pela atividade criminosa – princípio que reflete um sentido de justiça comum a todos os cidadãos que a comunidade espera ver traduzido na atuação do MP.

Na área da violência doméstica o MP tem empreendido assinalável esforço. Além da liderança do funcionamento dos Gabinetes de Apoio à Vítima em seis DIAP e profícua atividade em diversos grupos de trabalho interministeriais que lograram alcançar a produção de relevantes documentos, foi instituída inovatoriamente a atividade de acompanhamento, monitorização e avaliação dos crimes de homicídio por violência doméstica, a cargo da Procuradoria-Geral da República, para lá de se ter dedicado um capítulo ao tratamento das vítimas, nos domínios do direito à informação, proteção e acompanhamento. Assumem-se ao longo de 2022, com base numa estratégia refletida, as tarefas de acompanhamento e avaliação do desempenho das SEIVD-Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica e dos GAV-Gabinetes de Apoio à Vítima, respostas cuja crescente implementação se perfila de enorme mais-valia no combate ao fenómeno.

E merecem alusão os interesses difusos. Nos anos de 2020 e 2021, na execução da Lei de Política Criminal, elegeram-se, nas prioridades de investigação, os ilícitos relativos a poluição do meio hídrico, em sintonia com as linhas de intervenção e de preocupação comuns a outras entidades públicas, sinalizando os temas dos resíduos e do tráfico de espécies protegidas, para que sejam identificados como fonte de lucro ilícito e investigados na sua dimensão organizacional. Em matéria ambiental, comungamos do entendimento de que a Europa detém um edifício legislativo robusto, sendo o desafio a exigência de respeito pelo mesmo e a sua aplicação prática e devendo o MP trilhar um crescente caminho profícuo de entreajuda e articulação entre as diferentes jurisdições e a administração inspetiva e fiscalizadora.

A superação das dificuldades decorrentes da complexidade e instabilidade de regimes legais e da casuística em ordenamento do território e urbanismo reclama o aprofundamento da capacitação técnica e da articulação interna e externa em que o MP está empenhado. As sinergias agregadoras, apanágio desta magistratura, permitirão aos cidadãos depositar nela persistente confiança, como é crucial que depositem persistente confiança na Justiça, pilar essencial do Estado de Direito democrático. O MP não se deixará perturbar pelo ruído não raras vezes semeado, pelo caudal saturado da informação, pela poluição do pensamento dificultador da ação, pelos juízos distrativos que engendram engenhosas encruzilhadas e dificuldades acrescidas.  

Por fim, relembrou o que a Carta da Terra enfatiza há já mais de duas décadas:

Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida.”.

E, apoiada nestas palavras, formulou o voto de “um Ano Judicial de aquisições, positivas e substantivas, no caminho de mais e melhor Justiça”.

***

O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

O Presidente do STJ falou dos temas que reputou oportunos: a cerimónia de abertura do ano judicial como momento de reflexão, responsividade e projeção do futuro do sistema de justiça; a responsabilidade dos órgãos legiferantes; e o escrutínio da Justiça pela comunicação social.

Disse que esta cerimónia se realizou a primeira vez em 1940 e se repetiu até 1945. Entretanto, a Lei Orgânica n.º 38/87, de 23 de dezembro, estipulou que o início do ano judicial seria assinalado com uma sessão solene. Desde então, apesar de em 2021 não ter sido possível a realização da cerimónia por razões associadas à crise pandémica, as mesmas que, neste ano, impediram que tivesse lugar a 10 de janeiro, data aprazada para o efeito. Designada a data de 9 de março, não foi possível respeitá-la por motivos relacionados com as eleições legislativas. Agora a cerimónia realiza-se com cerca de 1/3 do ano judicial já transcorrido. Porém, o avanço do calendário não retira propriedade nem oportunidade ao ato. É tempo de prestar contas e apresentar aos cidadãos o ponto em que se encontra a ação geral da justiça. E é sempre tempo de projetar o futuro. Já neste item o Juiz Conselheiro Henrique Araújo deixa a sua alfinetada. Citando o Juiz Conselheiro Laborinho Lúcio, disse dos diversos intervenientes na cerimónia:

Cada um deles diz de si bem, relativamente mal dos outros, todos normalmente menos bem do poder político, e o poder político apresenta todos os anos medidas regeneradoras da Justiça. Acaba a sessão, vão todos embora e nunca mais se encontram até ao ano seguinte, em que dizem a mesma coisa ou coisas parecidas”.

E, por si, aponta que “tem havido pouco diálogo, nenhuma concertação e muito distanciamento quanto aos objetivos”, quando a cerimónia, mais que momento proclamatório dos intervenientes, “deve incorporar compromissos para um entendimento alargado das várias profissões forenses”, de modo a que, no ano seguinte, “se possa fazer balanço do que foi e do que não foi alcançado”.

E, neste espírito, prometeu enunciar medidas a desenvolver em prol dum sistema de justiça mais eficaz e mais transparente, pois há aspetos a reformar no atual modelo, mas a construção das soluções deve ser feita em diálogo e com a participação de todos os profissionais forenses: magistrados judiciais e do MP, advogados, solicitadores e agentes de execução, oficiais de justiça e funcionários.

E, além das medidas conjunturais, tem de haver abertura para alteração mais estrutural do modelo, mesmo que tal passe, como passará, pela revisão de algumas normas da Constituição.

A definição da intervenção estrutural cabe ao poder político e a atual distribuição de forças no Parlamento é oportunidade única para reformar o sistema de Justiça. De facto, numa sociedade com dinâmicas tão velozes e com necessidade de proteção mais efetiva e eficaz dos interesses dos cidadãos, a discussão sobre outra forma de organização da Justiça deve ser feita sem preconceitos ou extremismos corporativos, porque a Justiça não pertence a nenhum grupo, mas a todos; e representa a maior garantia da liberdade. Contudo, Henrique Araújo identifica um limite intransponível em qualquer reforma mais estrutural, a intocabilidade da independência do poder judicial, pois só assim os tribunais podem cumprir o Estado de Direito democrático e garantir a liberdade dos cidadãos. Muitos são os contributos que podem orientar a mudança, tanto no plano conjuntural como estrutural, todos com a dose de controvérsia indispensável à descoberta das melhores soluções. E falou da Sedes, que publicou um estudo para a Justiça, frisando que “esse e outros estudos ou ensaios publicados por pessoas ou organismos que se dedicam aos problemas da Justiça constituem uma base de trabalho proveitosa para mudar o que está mal e melhorar o que está menos bem”. Citando o discurso proferido, a 1 de março de 1959, na inauguração do Palácio de Justiça de Tomar, pelo Professor Antunes Varela, então Ministro da Justiça, disse:

Mais do que do desafogo ou do conforto das instalações, mais do que a própria perfeição técnica do sistema legislativo, é de bons magistrados e de honestos funcionários de justiça que a coletividade necessita para seu governo”.

Decorridos mais de 60 anos, tais palavras são atuais, mas então a técnica legislativa não sofria dos males de hoje. E Henrique Araújo entende que o sistema judicial tem de estar dotado de magistrados competentes e funcionários honestos, mas diz que “nenhum modelo de justiça resiste sem uma produção legislativa de qualidade”. E tem de ser uma legislação “que não obedeça a impulsos espoletados por este ou por aquele caso judicial, pela atuação deste ou daquele tribunal ou por critérios de oportunidade política” e que se faça “sem pressa, a rebate dos sinos”.

Aponta o Código Civil com mais de 50 anos e o Código Penal a celebrar 40 anos de vigência, elaborados cuidadosa e pacientemente, “assentando em estudos e trabalhos preparatórios orientados por metodologias adequadas” e “sem recurso aos modernos outsourcings legislativos”.

E, a par de produção legislativa de qualidade, preconiza “a existência de um programa integrado de avaliação legislativa para medição do impacto das medidas adotadas em cada momento”.

Sustenta que o escrutínio dos juízes e das suas decisões, ao invés do que se faz passar, “é bastante amplo”. As decisões dos tribunais são escrutinadas pelos académicos das Faculdades de Direito e por um sistema de recursos abrangente. A atuação funcional dos juízes é escrutinada pelo CSM (Conselho Superior da Magistratura) em processo de avaliação para progressão na carreira. Mas o maior escrutínio é o da opinião pública mediante a comunicação social e a publicação de todas as decisões dos tribunais superiores nas bases de dados de consulta livre. Ora, ao trazer para o espaço público a discussão sobre o trabalho dos tribunais e as suas decisões, a comunicação social presta relevante serviço à comunidade e importante contributo ao sistema de Justiça, já que põe a descoberto as suas insuficiências e falhas. Porém, contesta “o comentário jornalístico tecido sem base concreta ou científica”, “servido com farta adjetivação e carregado de generalizações”. E esconjura a crítica do colunista que caraterizava assim a justiça:

A Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes, mesmo ela própria corrupta. Permissiva.”.

Diz que tal descrição não coincide com a realidade, embora reconheça que alguma da adjetivação se relaciona com aspetos a melhorar. E lamenta que o que devia ser o escrutínio feito pela notícia séria e rigorosa se converta “em espalhafato mediático”; que repetidas e descaradas violações do segredo de justiça alimentem impunemente as primeiras páginas de jornais; que o comentário genérico, de crítica fácil e infundada, ocupe cada vez mais o espaço comunicacional; que a exposição da vida privada das pessoas a braços com processos judiciais transforme alguns meios de comunicação em arena da devassa. E preconiza o estancamento da violação do segredo de justiça e punição dos seus responsáveis.

A seguir, aflora a grande preocupação dos tribunais comuns: o envelhecimento das magistraturas. O acesso às Relações e ao STJ faz-se tardiamente. A promoção ao STJ verifica-se quando já se aproxima a idade da jubilação, pelo que há grande número de jubilações, tendência que se agravará em breve. A saída de magistrados do sistema não é compensada com a entrada de novos magistrados, pois o número daqueles excede o destes. E há que intervir, nomeadamente alterando a lei de acesso ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e reforçando-lhe a capacidade formativa.

Mas há outras questões urgentes. É necessário, em nome do princípio da transparência, repensar o regime das comissões de serviço de magistrados judiciais para cargos políticos ou para o exercício de funções relevantes de natureza política. Quando se escolhe a magistratura como profissão, tal escolha deve ser definitiva. Se a vocação política despontar no percurso de magistrado, a opção por esse caminho não deve permitir o regresso à judicatura. É crucial a revisão do regime de assessoria. O STJ continua há cerca de 30 anos com o mesmo número de assessores, as Relações não têm qualquer assessoria e os tribunais de 1.ª instância contam com um serviço de assessoria residual. É preciso ponderar e regular a forma como os sistemas de inteligência artificial podem intervir na ação judicial. O STJ tem em curso um projeto de inteligência artificial para anonimização e sumarização de acórdãos, mas há que refletir sobre a intervenção em procedimentos massificados com reduzido traço jurisdicional.

E a mudança do domínio e controlo do Ministério da Justiça para o CSM das plataformas digitais de tramitação e gestão processual é outro aspeto a merecer atenção para se garantir o princípio da separação de poderes. Por fim, as leis do processo civil e do processo penal devem adequar-se aos tempos presentes, tornando os processos mais ágeis e evitando que os litigantes com intuitos dilatórios se barriquem em expedientes que atrasam a decisão final e definitiva.

E o Presidente do STJ terminou com um agradecimento e um compromisso. O agradecimento é ao Presidente da República, bem como a todos os que comungam o propósito de se conseguir “um aparelho de Justiça que sirva melhor os interesses da comunidade”. O compromisso é o de que procurará contribuir afincadamente para que se alcancem melhores resultados e maior eficácia na administração da Justiça. Além disso, confia na Ministra da Justiça, que “está atenta aos problemas do setor e empenhada em resolvê-los em diálogo construtivo”.

***

Não percebo como o MP tem falta de meios e cumpre todos os objetivos. Só uma ação milagreira! E, se esta magistratura é singular e hierarquizada, como tem forte tendência para o protagonismo e para a justiça-espetáculo e não trava as fugas ao segredo de justiça? E como quer o STJ proibir de voltarem à magistratura os juízes em comissão política? Há o caso do Laborinho Lúcio a quem ninguém aponta algo de contraindicado. Não podemos diabolizar a atividade política stricto sensu nem privar, em caso algum, os cidadãos dos seus direitos e liberdades por tempo indeterminado...

2022.04.21 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário