terça-feira, 5 de abril de 2022

O despertar da ecoconsciência leva hortas aos museus

 

Graças ao projeto “Horticultura”, a ecologia integral ganha terreno na “Terra dos Incêndios”, o reino das ecomáfias, para substituir pela beleza a degradação, pela agricultura a exploração do solo, e encaminhar as crianças para os cuidados ambientais – do Palácio Real de Caserta ao Parque Arqueológico de Pompeia e ao Anfiteatro da Campânia.

É o tema dum trabalho de Cecilia Seppia para a secção “A História”, referente ao mês de abril do “Vatican News”, órgão de comunicação do Vaticano. Dele se respigam as linhas gerais.

Nos primeiros meses da pandemia, com restrições à educação à distância, as crianças da região de Caserta esperavam frente ao computador pela aula de Horticultura para descobrirem com os professores as técnicas antigas da agricultura. Para ajuda neste roteiro de educação ambiental, cada uma recebeu uma caixa mágica, a “Horto Box”, com tudo aquilo de que precisam para criar uma horta e cuidar dela: pinças, enxadas, lentes que transformam um telemóvel num microscópio, ímãs, sacos com três tipos de solo, que diferem em permeabilidade e, portanto, nos produtos que a cultivar, sementes, fertilizantes, compostagem e fichas didáticas para acompanhar as experiências. Hoje, estão de volta para sujar as mãos: com os colegas de turma, ao ar livre, nas hortas nos museus, estando criadas as primeiras na Itália graças a uma iniciativa única.

Trata-se dum projeto da Terra Félix e da Legambiente Geofilos, que aproveitaram com outros parceiros a oportunidade propiciada pela Fundação “Con i Bambini” para combate à pobreza educacional entre as crianças. Criou hortas didáticas nos museus em áreas do património cultural: o Palácio Real de Caserta, o Parque Arqueológico de Pompeia, o Museu Arqueológico do Agro Atellano, o Museu de Cápua Antiga e o Anfiteatro Campaniano.

Este projeto para crianças nasceu duma ideia dos idosos. Com efeito, há alguns anos, no Casale di Teverolaccio, um edifício do século XVII em Succivo, hortas sociais são cuidadas por pessoas com mais de 60 anos marcadas pela fragilidade. São avós, “riqueza e raízes”, como o Papa os define, às vezes considerados inúteis, improdutivos e, portanto, deixados à margem da sociedade.

E Ivan Esposito, chefe de comunicação da Horticultura, relata:

Quando as crianças das escolas da região de Caserta vinham visitar o ‘Casale’ e encontravam esses idosos horticultores, ficaram maravilhadas com o seu trabalho, faziam perguntas sobre como cultivar a terra, como semear, como preparar o solo e recebiam aulas práticas, mas também descobriam histórias com um sabor antigo, que soavam como contos maravilhosos aos seus ouvidos”.

Foram, pois, os idosos que inspiraram a expansão desta experiência, que alia arte e ambiente, beleza e sabedoria, cuidado e proteção, não só do património cultural, em torno do qual já há certa solicitude, mas sobretudo de um bem, o ambiente, ainda muito ferido e desprezado.

Os adultos são os responsáveis pelos locais em que se organiza a horta. As crianças das 4 escolas primárias envolvidas (IC Calcara em Marcianise, IC Mazzocchi em Capua Vetere, DD Orta di Atella e CD Pompei em Nápoles), cerca de 400 alunos divididos em turmas, de enxada na mão, vêm com os professores cultivar a horta. Semeiam, fazem a manutenção, limpam e colhem, em processo que segue a sazonalidade dos vegetais, frutas ou legumes, que são levados para casa com grande satisfação e alegria assim que amadurecem. Quando o solo tem que descansar ou os produtos estão a incubar, trabalha-se a educação ambiental, a alimentação saudável; fazem-se experiências de física ou botânica para que as crianças entendam, por exemplo, o que é a fotossíntese ou a compostagem e para as tornar o mais conscientes possível do que vêm comendo ou de como funciona a natureza ao seu redor. O intercâmbio geracional no projeto é, como deve ser, um paradigma inestimável. Na verdade, uma horta precisa de manutenção e cuidados constantes, pelo que a maior parte do trabalho é feita pelos ‘avós horticultores’. Se não fossem eles, não haveria uma horta utilizável onde as crianças realizassem as suas atividades 3 ou 4 vezes por mês. Eles ensinam tudo às crianças. São aposentados, mas não inativos; ao invés, são motivados e generosos, com o tipo de generosidade que gera inovação social. E as crianças aproximam-nos, com a mesma paciência e amor, do mundo da informática, do uso de aplicativos para cuidar da horta ou para usufruírem duma alimentação saudável. Uma permuta que viaja em vários níveis e que é como a levedura que fermenta o pão! É a aplicação hodierna da “Mens sana in corpore sano”, aforismo latino transmitido através de gerações que diz sobre como o primeiro elemento de bem-estar e equilíbrio ecológico é o próprio homem na sua totalidade, a quem Deus dotou, através da natureza e do meio ambiente, de tudo o que é necessário para se sentir bem, nutrindo o corpo e a mente. Ao mesmo tempo, o projeto replica pontos importantes desenvolvidos pelo Papa na “Laudato si”. Por exemplo, o capítulo 6 é dedicado à educação ecológica, à necessidade de manter essa harmonia que começa com o crescimento interior – pontos que enformam a perspetiva com que se trabalha com as crianças para lhes transmitir o sentido de responsabilidade pela Casa Comum, o prazer da cooperação com outros e a ideia de manter o bem-estar psicofísico.  

Com efeito, a Horticultura trabalha com questões da alimentação saudável, pois muitos distúrbios alimentares têm raízes psicológicas e relacionais. Por exemplo, o consumismo leva a abordagem equivocada da alimentação e muitos jovens encobrem com alimentos a sua solidão, falta de autoestima e sofrimento. E no predito capítulo 6, o Pontífice aborda o valor e a importância da beleza, que o projeto concretiza na arte, nos bens arqueológicos e culturais, parte integrante do ambiente, que são ainda mais valorizados pelas hortas: muitas crianças vêm à horta e, depois, visitando os locais do museu, ficam extasiadas.

Porém, nesta área, conhecida como a “Terra dos Incêndios”, há o grave problema das ecomáfias, ou seja, a propagação de todas as atividades ilegais de organizações criminosas de tipo mafioso que produzem danos ao meio ambiente pela poluição ou pelo tráfico e descarte ilegal de lixo e pela construção ilegal em grande escala, os incêndios florestais e a ilegalidade no mercado agroalimentar: tudo crimes ambientais que rendem às ecomáfias milhões em lucros, mas que empobrecem o território e os cidadãos. De algum modo, o “bom fertilizante” da Horticultura vem amenizar o problema. Como refere Ivan Esposito, a partir dos anos 1990, entre Nápoles e Caserta, o tráfico de lixo e a sua disposição ilegal levaram ao aterro nesses lugares (especialmente no campo) de muitas substâncias nocivas ao ambiente e ao homem, causando danos materiais e problemas de saúde generalizados (afetando sobretudo as crianças). As ecomáfias são o emblema da mentalidade consumista, porque reduzem e tratam a natureza e as pessoas como coisas, como suas mercadorias. Por isso, a recuperação da beleza, do cultivo adequado, duma alimentação orgânica, atenta à biodiversidade, e duma educação ambiental que forme a ecoconsciência, num território tão rico, mas cheio de bolsões de degradação, parecem vetores necessários à mudança.

Para reabilitar estes lugares e afastá-los da máfia, devolvendo-os à comunidade, o projeto já alcançou excelente resultado no Parque Real (que circunda o Palácio Real de Caserta), no distrito de Liparoti, construído em 1769 para acomodar os marinheiros de Lipari. Até ao final do ano, a antiga aldeia será transformada em ponto de acolhimento experimental e utilizada para oficinas e atividades educacionais. Ora, ajudar as crianças a redescobrir a agricultura e a ligação com a terra significa ajudar toda a comunidade a redescobrir-se a si mesma e a sua vocação mais autêntica. E daqui, segundo Esposito, “podemos pensar juntos em modelos de desenvolvimento melhores do que os seguidos até agora, baseados principalmente no consumo da terra e na especulação imobiliária, durante anos a principal fonte de lucro do crime organizado”. É uma mudança de rumo, uma conversão ecológica, que começa pelos menores, mas se espalha a todos. A área de Liparoti, com cerca de 1.500 metros quadrados, estava coberta de lixo e vários tipos de material engolido pela vegetação; e havia barracos e edifícios não autorizados feitos de chapa metálica e todos os tipos de objetos que podem ser reciclados, bem como cercas, galpões de ferramentas, galinheiros. Depois da limpeza de toda a área de ervas daninhas e vegetação espinhosa e matagal, foram encontrados escombros de construção, metal, plástico e amianto. E o projeto foi uma oportunidade para promover a algo belo e útil a área desmatada e restaurada.

Por fim, é de referir que o projeto é levado no “Hortobus” pelas ruas e praças das áreas envolvidas. É um furgão elétrico de baixo impacto ambiental, colorido com imagens de frutas e legumes, revelando os seus tesouros a cada paragem e oferecendo um espaço para jogos interativos com crianças de 6 a 10 anos, com os temas típicos de Horticultura: alimentação saudável, agricultura e tradições alimentares. O escopo é combater a pobreza educacional. Muitas crianças estão convictas de que as coisas que comemos nascem nas prateleiras do supermercado e o ser humano é relegado à dimensão de comprador e cliente, significando que os adultos não foram capazes de lhes transmitir a verdadeira ligação com a natureza, com o meio ambiente. E as crianças precisam de entender que esta ligação existe e é muito forte: “existimos em virtude do nosso ambiente”. O furgão “Hortobus” já atrai muito apoio e simpatia, e muitas crianças de outras escolas vão a sítios arqueológicos para visitar as hortas nos museus. Muitos professores pedem a replicação da experiência das hortas nas suas escolas, dada sua versatilidade didática: afinal, a horta nada mais é do que uma grande sala de aula ao ar livre onde a ciência é ensinada ao vivo, onde as crianças podem aprender e conectar-se com a terra e abordar a arte e a história.

2022.04.05 – Louro de Carvalho

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