Com exceção dos últimos dois versículos (24-25), o trecho evangélico tomado,
na sua forma longa, para a Missa do 3.º domingo da Páscoa no Ano C é o último
capítulo do Evangelho de João (Jo 21,1-23), que a versão da Bíblia apresentada
pela CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) considera o epílogo e intitula de “A
presença do Ressuscitado na vida e na missão da Igreja”, subsequente ao
capítulo anterior em que a parte central (vv 19-29) recebe o título “Jesus e os discípulos: a comunidade
dominical”, ou seja, a comunidade do Senhor, a que celebra o Dia do Senhor.
No trecho em
referência para esta dominga, vemos Jesus que Se manifesta de novo aos discípulos
junto ao mar de Tiberíades. O número de discípulos indicado é de sete, número
da totalidade, o que, para os comentadores bíblicos, simboliza a totalidade da
Igreja, cuja missão pastoral se vai apresentar e que fluirá sob a batuta de
Pedro. E é de anotar, pelos nomes referidos, que se trata de discípulos emblemáticos
na vida da comunidade dominical – que celebra não só o primeiro dia em que o
Criador fez brilhar a luz e transformou a matéria caótica e informe, mas
sobretudo o dia da Ressurreição do Senhor qual nova Criação. Os nomes referidos
são os de: Simão Pedro, destemido e pronto para tudo, até para cortar a orelha
a um servo do sumo sacerdote, e que negou o Mestre cujo olhar o fez chorar amargamente,
mas sobre quem Jesus prometeu fundar a Igreja; Tomé, o convertido da falta de
fé e das dúvidas desafiantes à prostração de quem reza “Meu Senhor e Meu Deus” (“ho Kýrios mou kaì ho Theós mou”); os dois filhos de Zebedeu – João e Tiago – que pretendiam lugar de
destaque no Reino, mas a quem Jesus selecionou para O acompanharem nos momentos
mais nevrálgicos juntamente com Pedro, sendo que um dos dois era o discípulo
que Jesus amava; Natanael, o israelita que disse na cara ao Mestre que de
Nazaré não podia vir coisa boa, mas que foi admirado pela sua franqueza; e dois
cujos nomes não são explicitados, o que dá a entender que há na Igreja muito trabalho
de gente que ficará escondida no anonimato, mas cujo labor é importante, quiçá mais
que o dos que estão expostos aos holofotes da ribalta.
É de
apreciar a determinação de Pedro, que não manda, vai: “vou pescar” (“hypágô halieúein”). Mas os outros, numa linha de sinodalidade,
resolveram ir com ele. Entregues a si próprios, a faina de toda a noite não
resultou. Foi então que Jesus, ao raiar da manhã, se postou na margem, mas os
discípulos não sabiam que era Ele.
Disse-lhes
Jesus: “Filhinhos (“Paidía”), não tendes algo para comer?” (“mê ti prosphágion ékhete;”). Responderam que não. E Ele mandou-lhes lançar a rede
para estibordo, pois encontrariam. Fizeram como Ele mandou e já nem conseguiam
atrair a rede mercê da enorme quantidade dos peixes. Há aqui a alusão ao
segredo da eficácia da ação pastoral: é preciso ter em conta o apoio de Jesus e
obedecer à sua palavra, para lá da determinação solidária. Por outro lado, não
conseguir atrair a rede (“helkýsai” –
o mesmo verbo que em Jo 12,32) parece
evocar a dificuldade em deixar concretizar a promessa de Jesus de que, na sua
morte e ressurreição, atrairia todos a si. É preciso qualificar a quantidade
para que a quantidade bruta não obstaculize a missão.
Aqui o
discípulo, aquele que Jesus amava, disse a Pedro: “É o Senhor!” (“Ho Kýrios estín”).
É de
comparar esta perspicaz intervenção do discípulo amado com o que se passou quando
Pedro e João, movidos pelo anúncio das mulheres de que Jesus ressuscitara,
foram ao sepulcro e viram o vazio, mas todos os adereços que o tumulado deixara
estavam em boa ordem. De Pedro temos o silêncio sem comentários; de João temos
o comentário do narrador: “E viu e acreditou” (“Kaì eîden kaì
epísteusen”).
Atribui o
Bispo do Porto esta clarividência de João ao amor: quem ama acredita.
Os filósofos
medievais apregoavam que, para amar, era necessário conhecer (non amat qui
non cognoscit). Porém,
Santo Agostinho considera que não se conhece quem não se ama. Conhecer exige
esforço e o esforço do conhecimento resulta do amor. Assim, não sou capaz de saber
se Deus nos ama porque nos conhece muito bem ou se nos conhece muito bem porque
muito nos ama. Seja como for, a perspicácia de João em reconhecer o Senhor é
fruto do amor atento, dos olhos abertos e do coração disponível.
Depois,
porque João ama o Senhor, tem a ousadia de o dizer de imediato a quem ainda não
O tinha reconhecido. É preciso dizer que é o Senhor que está presente nos
nossos êxitos.
Pedro, mais
do que o entusiasmo por ver o Senhor, passou de imediato à ação: cingiu as
vestes, pois estava nu, e lançou-se ao mar, indo ao encontro de Jesus, enquanto
os outros foram no barco arrastando a rede dos peixes, pois não estavam longe
da terra.
Jesus não se
limita a orientar-lhes a pesca: alimenta-os.
Ao descerem
para terra, viram um braseiro, com peixe em cima e pão. Disse-lhes Jesus que
trouxessem dos peixes que tinham apanhado então. Pedro subiu e puxou
a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes, mas a rede
não se rompeu. E Jesus chamou-os para comerem. Porém, nenhum ousava
perguntar-lhe quem era, pois sabiam que era o Senhor.
Jesus estava
recordado, quer da ousada profissão de fé de Simão Pedro em Cesareia de Filipe,
quer da sua tríplice negação perante o pessoal do sumo sacerdote. Em certa
medida a cena da pesca milagrosa e a subsequente refeição, até pelo convite de
Jesus – Ele convida-nos para o seu banquete – e pelo gesto que mostrou similar
do que fez aquando da multiplicação dos pães e dos peixes e na instituição da
Eucaristia, têm um sabor eucarístico.
Como à Eucaristia
estão umbilicalmente associados o serviço e o amor, Pedro que estava apto pela
fé e pela capacidade de agir e levar os outros a agir, precisava de passar no
teste do amor. Era importante que passasse também à condição de “o discípulo, o
que Jesus amava” (“ho mathtês,
hòn êgápa ho Iêsoûs”).
Por isso,
após terem comido, disse Jesus a Pedro: “Simão,
filho de João, amas-me mais do que estes?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”.
Disse-lhe Ele: “Apascenta os meus
cordeiros”. Disse-lhe de novo Jesus: “Simão,
filho de João, amas-me?”. Disse-lhe: “Sim,
Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Jesus: “Pastoreia as minhas ovelhas”. Disse-lhe pela terceira vez: “Simão, filho de João, és meu amigo?”.
Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vez
“És meu amigo?” e disse-lhe: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!”. Disse-lhe então
Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”.
E acrescentou:
“Amen, amen te digo: quando eras
mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando
envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não
queres”.
Disse isto,
assinalou com que género de morte Pedro glorificaria Deus. E disse-lhe: “Segue-me” (“Akoloúthei moi”).
Jesus recebe
a confissão de amor da parte de Pedro, dá-lhe o encargo do pastoreio do rebanho
e indica-lhe o género de morte que iria sofrer – tudo sob o imperativo do
seguimento. E os factos posteriores bem mostram como Pedro, levado pelo amor,
teve a clarividência de perceber a vontade do Senhor, obviamente com altos e
baixos, mas atento às moções do Espírito Santo, às sugestões dos outros
discípulos e ao sentir da Igreja nascente. E, com esta clarividência, estava operativa
a audácia do anúncio do Ressuscitado: “Nós
não podemos deixar de falar de tudo quanto vimos e ouvimos” (At 4,20: “ou dynámetha gàr hêmeîs hà eídomen kaì
êkoúsamen mê laleîn”).
Ao
voltar-se, Pedro viu que o seguia o discípulo que Jesus amava, o que na ceia se
reclinara sobre o seu peito e dissera: “Senhor,
quem é o que te vai entregar?”. E Pedro disse a Jesus: “Senhor, e que será dele?”. Disse-lhe
Jesus: “Se Eu quiser que ele permaneça
até que Eu venha, que te importa? Tu segue-me!”.
Interpretando
mal as palavras de Jesus, difundiu-se o dito de que tal discípulo não morreria.
Com efeito, Jesus não lhe disse que ele não morreria, mas: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu
venha, que te importa?”. Em todo o caso, mais que pensar na tendência para
a emulação entre os obreiros do Reino, há que relevar a fidelidade apostólica
de Pedro até à morte de cruz, à semelhança do Senhor, e na permanência do
testemunho de João pela vida apostólica, pelo martírio e pelos seus livros: “Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as
escreveu, e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro” (Jo 21,24).
2022.04.30 – Louro de Carvalho
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