sábado, 30 de abril de 2022

Perspicácia de ver que é o Senhor e ousadia de O anunciar

 

Com exceção dos últimos dois versículos (24-25), o trecho evangélico tomado, na sua forma longa, para a Missa do 3.º domingo da Páscoa no Ano C é o último capítulo do Evangelho de João (Jo 21,1-23), que a versão da Bíblia apresentada pela CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) considera o epílogo e intitula de “A presença do Ressuscitado na vida e na missão da Igreja”, subsequente ao capítulo anterior em que a parte central (vv 19-29) recebe o título “Jesus e os discípulos: a comunidade dominical”, ou seja, a comunidade do Senhor, a que celebra o Dia do Senhor.

No trecho em referência para esta dominga, vemos Jesus que Se manifesta de novo aos discípulos junto ao mar de Tiberíades. O número de discípulos indicado é de sete, número da totalidade, o que, para os comentadores bíblicos, simboliza a totalidade da Igreja, cuja missão pastoral se vai apresentar e que fluirá sob a batuta de Pedro. E é de anotar, pelos nomes referidos, que se trata de discípulos emblemáticos na vida da comunidade dominical – que celebra não só o primeiro dia em que o Criador fez brilhar a luz e transformou a matéria caótica e informe, mas sobretudo o dia da Ressurreição do Senhor qual nova Criação. Os nomes referidos são os de: Simão Pedro, destemido e pronto para tudo, até para cortar a orelha a um servo do sumo sacerdote, e que negou o Mestre cujo olhar o fez chorar amargamente, mas sobre quem Jesus prometeu fundar a Igreja; Tomé, o convertido da falta de fé e das dúvidas desafiantes à prostração de quem reza “Meu Senhor e Meu Deus(“ho Kýrios mou kaì ho Theós mou”); os dois filhos de Zebedeu – João e Tiago – que pretendiam lugar de destaque no Reino, mas a quem Jesus selecionou para O acompanharem nos momentos mais nevrálgicos juntamente com Pedro, sendo que um dos dois era o discípulo que Jesus amava; Natanael, o israelita que disse na cara ao Mestre que de Nazaré não podia vir coisa boa, mas que foi admirado pela sua franqueza; e dois cujos nomes não são explicitados, o que dá a entender que há na Igreja muito trabalho de gente que ficará escondida no anonimato, mas cujo labor é importante, quiçá mais que o dos que estão expostos aos holofotes da ribalta.

É de apreciar a determinação de Pedro, que não manda, vai: “vou pescar(“hypágô halieúein”). Mas os outros, numa linha de sinodalidade, resolveram ir com ele. Entregues a si próprios, a faina de toda a noite não resultou. Foi então que Jesus, ao raiar da manhã, se postou na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele.

Disse-lhes Jesus: “Filhinhos (“Paidía”), não tendes algo para comer?” (“mê ti prosphágion ékhete;”). Responderam que não. E Ele mandou-lhes lançar a rede para estibordo, pois encontrariam. Fizeram como Ele mandou e já nem conseguiam atrair a rede mercê da enorme quantidade dos peixes. Há aqui a alusão ao segredo da eficácia da ação pastoral: é preciso ter em conta o apoio de Jesus e obedecer à sua palavra, para lá da determinação solidária. Por outro lado, não conseguir atrair a rede (“helkýsai” – o mesmo verbo que em Jo 12,32) parece evocar a dificuldade em deixar concretizar a promessa de Jesus de que, na sua morte e ressurreição, atrairia todos a si. É preciso qualificar a quantidade para que a quantidade bruta não obstaculize a missão.     

Aqui o discípulo, aquele que Jesus amava, disse a Pedro: “É o Senhor!(“Ho Kýrios estín”).

É de comparar esta perspicaz intervenção do discípulo amado com o que se passou quando Pedro e João, movidos pelo anúncio das mulheres de que Jesus ressuscitara, foram ao sepulcro e viram o vazio, mas todos os adereços que o tumulado deixara estavam em boa ordem. De Pedro temos o silêncio sem comentários; de João temos o comentário do narrador: “E viu e acreditou (“Kaì eîden kaì epísteusen”).     

Atribui o Bispo do Porto esta clarividência de João ao amor: quem ama acredita.

Os filósofos medievais apregoavam que, para amar, era necessário conhecer (non amat qui non cognoscit). Porém, Santo Agostinho considera que não se conhece quem não se ama. Conhecer exige esforço e o esforço do conhecimento resulta do amor. Assim, não sou capaz de saber se Deus nos ama porque nos conhece muito bem ou se nos conhece muito bem porque muito nos ama. Seja como for, a perspicácia de João em reconhecer o Senhor é fruto do amor atento, dos olhos abertos e do coração disponível.

Depois, porque João ama o Senhor, tem a ousadia de o dizer de imediato a quem ainda não O tinha reconhecido. É preciso dizer que é o Senhor que está presente nos nossos êxitos.    

Pedro, mais do que o entusiasmo por ver o Senhor, passou de imediato à ação: cingiu as vestes, pois estava nu, e lançou-se ao mar, indo ao encontro de Jesus, enquanto os outros foram no barco arrastando a rede dos peixes, pois não estavam longe da terra.

Jesus não se limita a orientar-lhes a pesca: alimenta-os.

Ao descerem para terra, viram um braseiro, com peixe em cima e pão. Disse-lhes Jesus que trouxessem dos peixes que tinham apanhado então. Pedro subiu e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes, mas a rede não se rompeu. E Jesus chamou-os para comerem. Porém, nenhum ousava perguntar-lhe quem era, pois sabiam que era o Senhor.

Jesus estava recordado, quer da ousada profissão de fé de Simão Pedro em Cesareia de Filipe, quer da sua tríplice negação perante o pessoal do sumo sacerdote. Em certa medida a cena da pesca milagrosa e a subsequente refeição, até pelo convite de Jesus – Ele convida-nos para o seu banquete – e pelo gesto que mostrou similar do que fez aquando da multiplicação dos pães e dos peixes e na instituição da Eucaristia, têm um sabor eucarístico.

Como à Eucaristia estão umbilicalmente associados o serviço e o amor, Pedro que estava apto pela fé e pela capacidade de agir e levar os outros a agir, precisava de passar no teste do amor. Era importante que passasse também à condição de “o discípulo, o que Jesus amava” (“ho mathtês, hòn êgápa ho Iêsoûs”).

Por isso, após terem comido, disse Jesus a Pedro: “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Ele: “Apascenta os meus cordeiros”. Disse-lhe de novo Jesus: “Simão, filho de João, amas-me?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Jesus: “Pastoreia as minhas ovelhas”. Disse-lhe pela terceira vez: “Simão, filho de João, és meu amigo?”. Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vezÉs meu amigo?” e disse-lhe: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!”. Disse-lhe então Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas”. E acrescentou:

Amen, amen te digo: quando eras mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres”. 

Disse isto, assinalou com que género de morte Pedro glorificaria Deus. E disse-lhe: “Segue-me(“Akoloúthei moi”).

Jesus recebe a confissão de amor da parte de Pedro, dá-lhe o encargo do pastoreio do rebanho e indica-lhe o género de morte que iria sofrer – tudo sob o imperativo do seguimento. E os factos posteriores bem mostram como Pedro, levado pelo amor, teve a clarividência de perceber a vontade do Senhor, obviamente com altos e baixos, mas atento às moções do Espírito Santo, às sugestões dos outros discípulos e ao sentir da Igreja nascente. E, com esta clarividência, estava operativa a audácia do anúncio do Ressuscitado: “Nós não podemos deixar de falar de tudo quanto vimos e ouvimos(At 4,20: “ou dynámetha gàr hêmeîs hà eídomen kaì êkoúsamen mê laleîn”).

Ao voltar-se, Pedro viu que o seguia o discípulo que Jesus amava, o que na ceia se reclinara sobre o seu peito e dissera: “Senhor, quem é o que te vai entregar?”. E Pedro disse a Jesus: “Senhor, e que será dele?”. Disse-lhe Jesus: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha, que te importa? Tu segue-me!”. 

Interpretando mal as palavras de Jesus, difundiu-se o dito de que tal discípulo não morreria. Com efeito, Jesus não lhe disse que ele não morreria, mas: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha, que te importa?”. Em todo o caso, mais que pensar na tendência para a emulação entre os obreiros do Reino, há que relevar a fidelidade apostólica de Pedro até à morte de cruz, à semelhança do Senhor, e na permanência do testemunho de João pela vida apostólica, pelo martírio e pelos seus livros: “Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as escreveu, e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro(Jo 21,24)      

2022.04.30 – Louro de Carvalho

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