Reduzir a Páscoa à efemeridade dum único e simples dia significa não
captar em pleno a “novidade perene da Páscoa”, tão bem aflorada por Dom José Cordeiro,
Arcebispo de Braga, na homilia do domingo da Ressurreição do Senhor.
Considera o prelado
bracarense que a festa da Páscoa do Senhor é o HOJE por excelência da “passagem
à vida nova” e, por conseguinte, “a festa das festas”. Por isso, a Igreja
nascida da Páscoa cumula a liturgia pascal da admiração, da exultação e da
alegria: “este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria”
(Sl 118,24). Com efeito, a Páscoa, indo do domingo da Ressurreição
ao domingo do Pentecostes, é a festa em que a Igreja é convidada a celebrar com
mais solenidade “Cristo, nossa Páscoa, que foi imolado”, pois “Ele é o Cordeiro de Deus
que tirou o pecado do mundo: morrendo destruiu a morte e ressuscitando
restaurou a vida” (Prefácio Pascal I). Por isso, a Igreja celebra, como diz o Arcebispo, os 50 dias da
Páscoa, uma semana de semanas, como ‘um grande Domingo’, sendo “o domingo do
Pentecostes a celebração da plenitude da Páscoa”. E, como dizia Dom Manuel
Linda, Bispo do Porto, o “Aleluia” (som
“que nasce de um coração amoroso”) que entoamos nestes dias é efetivamente para “Cristo Ressuscitado”, mas também
para a “Igreja” que se reconhece nascida da Páscoa, marcada pelo caráter pascal
e fundada pelo Espírito Santo.
Em
torno do binómio “ver e acreditar”, o Núncio Apostólico, na Catedral de Angra
do Heroísmo, viu na Palavra de
Deus que enforma a Liturgia de hoje vários anúncios pascais:
O Evangelho de João relata que Maria Madalena, na manhã do primeiro dia da
semana, “foi ter com Simão Pedro e com o discípulo predileto de Jesus e
disse-lhes: ‘Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram’ (Jo 20,2).” Depois de Pedro entrar no sepulcro vazio, entrou João
que “viu e acreditou” (Jo 20,8), isto é,
acreditou que Jesus tinha ressuscitado.
Nos Atos dos Apóstolos, Pedro anunciou com entusiasmo e coragem a toda a gente
presente em Jerusalém: “eles mataram-No,
suspendendo-O na cruz”, mas “Deus
ressuscitou-O ao terceiro dia” (At 10,39-40). E, no trecho da Carta aos Colossenses, tomado como
2.ª leitura, sobressai a exortação de Paulo: “Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está
Cristo, sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas do Alto e não às da
terra.” (Cl 3,1-2).
Vê Dom Ivo Scapolo nestas citações um aspeto fundamental da missão da
Igreja através dos séculos: “anunciar e
testemunhar que Jesus ressuscitou”, a verdade principal que hoje a Igreja
deve anunciar, a verdade que cada um de nós deve crer e testemunhar com coragem,
como Pedro. Na verdade, “Jesus, o
Salvador único e universal, foi ressuscitado por Deus Pai e reina no Céu à
espera da sua vinda gloriosa e definitiva”. Este é o anúncio que há vinte
séculos a Igreja, sobretudo pela sua ação evangelizadora e missionária, espalha
pelo mundo, convidando as pessoas a crer em Jesus ressuscitado. Assim, a celebração
do “Sacramento Pascal” (expressão de Dom José Cordeiro) é “um momento de graça no qual cada um de nós é
convidado a verificar se a própria experiência de fé está verdadeiramente
fundada no Mistério da Ressurreição de Jesus”, a verdade que forma o eixo
central em torno do qual gravitam e adquirem significado e beleza todas as
outras verdades de fé. Para os crentes, a Ressurreição é o grande axioma da fé.
No âmbito do mesmo binómio “ver e acreditar”, em que o Bispo do Porto
releva que em João o amor ao Mestre conduz mais facilmente à caminhada da fé (“viu e começou a acreditar”), o Arcebispo de Braga observa que “não é fácil
aceitar a novidade perene da Páscoa”, como “não é fácil aceitar as surpresas da
vida”. Mais adverte que o facto da ressurreição de Jesus “não foi reconhecido a
partir das Escrituras”, mas “as Escrituras é que são iluminadas a partir da
ressurreição de Jesus”. Porém, Jesus, o que foi crucificado, ressuscitou. E o
encontro com Ele “transfigura o
coração e é a razão para acolher o precioso dom e o compromisso da fraternidade
e do cuidado integral”. Assim, “da Quaresma à Páscoa é uma grande peregrinação
de Esperança”, com a Semana Santa a erguer-se como “uma grande manifestação
pública da fé”.
E o prelado
bracarense questiona os seus interlocutores sobre o que se passa “ao longo do tempo pascal e em cada dia do
ano”.
Já Dom Ivo Scapolo, firmado na certeza de que a Ressurreição de Jesus ocupa
o centro da nossa experiência de fé, considera que “há toda uma série de
consequências na maneira de ver e realizar a nossa vida e a nossa ação
apostólica”. E, a este respeito desdobra em duas as recomendações de São Paulo
constantes da 2.ª leitura e retira delas os respetivos significados.
A primeira, “Aspirai às coisas do alto, onde está Cristo”, significa: olhar sobretudo
para os Céus onde está o nosso Deus, que Jesus nos ensinou a invocar com as
palavras: ‘Pai nosso que estás nos Céus’;
estar em comunhão com a Igreja triunfante constituída pela Virgem Maria, os
anjos, os santos e todos os que já merecem gozar da glória do Paraíso; não se
cansar de olhar o céu, a meta final onde está a nossa Pátria celeste; estar
numa vigilante espera da vinda gloriosa de Cristo, que julgará a todos para
avaliar se seremos dignos de receber o prémio ou o castigo; viver intensa,
generosa e corajosamente esta vida, uma peregrinação terrena, para sermos
depois dignos de receber o prémio eterno.
E a segunda recomendação de São Paulo, “Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às
da terra”, quer dizer: cortar os vínculos excessivos ou até
desordenados que podemos ter com as pessoas e as coisas; estar dispostos a
renunciar a coisas, projetos, e satisfações humanas para nos entregarmos
totalmente ao Senhor; estar dispostos a doar até a própria vida e as próprias
coisas para sermos fiéis ao Senhor e respondermos adequadamente ao seu imenso
amor; não buscar o próprio interesse pessoal ou o que nos agrada para estarmos
disponíveis para fazer, como a jovem Maria, a vontade do Senhor; mantermo-nos
livres de muitas coisas para estarmos dispostos a sacrificar e oferecer a
própria vida por amor a Deus e aos irmãos; crer na justiça divina e aceitar as
limitações da justiça humana, mas tudo fazer para que tais limitações sejam
ultrapassadas.
Tudo isto não é fuga das responsabilidades que temos na comunidade humana, ao
invés, aspirando às coisas do Alto e afeiçoando-nos às do Céu, adquirimos a
capacidade e a generosidade de, hoje e aqui, entregarmos tudo para merecermos o
prémio eterno. Com efeito, se há menos pessoas dispostas a sacrificar-se pelo
Senhor, pela Igreja, pelos irmãos, por um mundo melhor, é porque estão
afeiçoadas às coisas da terra; se há poucas vocações à vida sacerdotal e
religiosa, é porque falta nos jovens a capacidade de entrega pelos outros,
ignorando que receberemos o cêntuplo nesta terra e a vida eterna (cf Mc 10,29-30).
***
É de recordar que Dom José Cordeiro, na Vigília Pascal, apontava que,
pelas leituras do Antigo Testamento, se concluía que “o mistério da Páscoa de Cristo é
o pleno cumprimento da vontade de salvação do nosso Deus, desde a criação à
libertação do Egipto até à manhã do oitavo dia, o novo e eterno Testamento”. E,
na sequência, foca o solene anúncio do Evangelho de Lucas:
“Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui:
ressuscitou. Lembrai-vos de como Ele vos falou, quando ainda estava na
Galileia: ‘O Filho do homem tem de ser entregue às mãos dos pecadores, tem de
ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia’. Elas [as mulheres] lembraram-se
então das palavras de Jesus.” (Lc 24,5-8).
A seguir, exaltou “a noite mais santa e luminosa” e de grande júbilo, “porque
a luz de Cristo, o Rei eterno, dissipa as trevas de todo o mundo”, segundo o canto do Precónio
pascal, que assegura que, nesta “noite ditosa”, se une o céu à terra, se
encontra o homem com Deus; e o círio aceso no fogo novo, qual
símbolo da luz de Cristo “assinala
a vida que se
consome em luz e ardor”.
Aproveitando
a ministração do Batismo e da Confirmação a dois adultos, a que se iria seguir
o rito “accendite” no candelabro pascal com a admonição de que “por
três vezes vai-se acender e apagar o Círio Pascal; este rito faz-nos sentir e
viver o realismo da nossa adesão a Jesus ressuscitado; nem sempre é fácil ter
bem acesa em nós a fé” – rito que significa as luzes e as sombras do nosso
peregrinar na alegria da fé – teceu considerações sobre a iniciação cristã que, irradiando desta noite, “lança os
alicerces de toda a vida cristã”. E, vincando que a expressão “iniciação
cristã” designa, as etapas por que passa quem quer entrar na Igreja para nela
prestar culto a Deus em Espírito e verdade (cf Jo 4,23.24), disse que os sacramentos estão ligados
entre si, salientando-se o rito íntegro da Iniciação Cristã que produz os seus
efeitos espirituais na alma, pelo que, citando Tertuliano, falou assim desta
peregrinação da santidade:
“Assim a carne é lavada, para que a alma seja purificada; a carne é
ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o sinal da cruz,
para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta com a sombra da imposição
das mãos, para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne é alimentada
com o Corpo e o Sangue de Cristo, para que a alma seja saciada de Deus. Não
podem, por conseguinte, ser separadas na recompensa aquelas que estiveram
unidas na ação.”.
E
sublinhou que a ideia subjacente à compreensão sacramental é que “Deus Se
comunica e Se torna presente, agindo espiritualmente sobre os homens, mediante
os elementos materiais”.
Depois, enuncia duas ideias basilares: a celebração do inteiro mistério
pascal de Cristo – princípio alicerçante de toda a reforma litúrgica – constitui
o momento privilegiado do culto cristão no seu desenvolvimento anual e no do
quotidiano e semanal; e, para o cristão, celebrar a Páscoa significa “passar da
Semana Santa ao Dia eterno”, isto é, “viver a vida em Cristo para lá das
celebrações litúrgicas, das devoções, das procissões, do folar, das amêndoas”. E
vai mais longe:
“Significa reconhecer Cristo fora da
Catedral e das igrejas e capelas, reconhecendo e amando-O nos irmãos e irmãs
que sofrem, que são perseguidos, que têm de fugir à guerra e à fome, que estão
doentes, que estão presos, que vivem sós, que são idosos, que são migrantes,
que são marginalizados, que passam necessidades corporais e espirituais; significa
respeitar os outros na verdade e na caridade; Significa estar no mundo sem ser
mundano, porque a nossa pátria é a eternidade”.
E,
para que não nos cinjamos àquilo que é passageiro, o Arcebispo é mais
explícito:
“Significa dar o contributo positivo na
construção do Bem Comum e na promoção da dignidade inalienável da pessoa humana
e na defesa da vida desde a sua conceção até à morte natural; significa ser
pessoa de misericórdia, como o Pai é misericordioso; significa continuar a
peregrinação na santidade com coragem e confiança”.
Por
isso, a Liturgia convida-nos “a celebrar, na alegria do coração, o perene
Aleluia em Cristo, a nossa Páscoa e a nossa Paz”.
***
No domingo da Ressurreição, como que refeito da surpresa pascal, o
prelado proclamou que a Igreja
orante nos convida “a cantar, na alegria do coração, o perene Aleluia em
Cristo, nossa Páscoa, a marcar a plenitude da vida eterna”, pois “sabemos e
acreditamos: Cristo ressuscitou dos mortos”. Citando Sophia de Mello Breyner Andresen, bradou:
“Aqui para além da morte da lacuna da
perca e do desastre / Celebramos a Páscoa / Aqui celebramos a claridade / Porque
Deus nos criou para a alegria”.
E, em torno
da bênção pascal, assegurou que Jesus Cristo, a maior bênção do Pai, é o
sujeito de toda a bênção, pois é Ele que abençoa. Com efeito, toda a bênção é
louvor de Deus e oração para obter os dons, porque “não é o Homem que bendiz a
Deus, mas Deus que bendiz o Homem”.
Assim, a
Igreja, a família dos filhos da luz, as famílias quais igrejas domésticas e todos
renascidos pela água e pelo Espírito, anunciamos, celebramos e vivemos “o
mistério de Cristo, nossa Páscoa e nossa Paz, como a maior bênção do Pai”. E “proclamamos
a todos e a cada um, a sempre feliz notícia nesta Páscoa inaudita: Jesus Cristo
Ressuscitou”. E temos a certeza de que Deus nos ama a cada um “inteira e
imensamente”.
Por fim, não é descabido, à luz das reflexões pascais, pedir à Virgem
Maria, como quer o Núncio Apostólico, “que nos ajude a adquirir um autêntico
espírito pascal”, pelo qual “saibamos testemunhar com as palavras e as ações a
nossa fé na Ressurreição de Jesus e a nossa esperança na nossa futura
ressurreição”.
Enfim, queremos uma Páscoa de 50 dias, que se repercuta pelo ano todo em
cada domingo e em cada celebração eucarística, bem como na assunção dos demais
sacramentos. É certo que – diz o Bispo do Porto – o momento
histórico internacional é de “agressão” não “somente a um país”, mas “à
comunidade das nações que tem direito a viver em paz”; “o agressor confiou nas
armas acumuladas ao longo de décadas e décadas e continuamente produzidas”; e os
apoiantes do agredido fizeram a mesma coisa: “o mundo não aprendeu com o
passado e continuou a armar-se até aos dentes”. Não obstante, os crentes não
podem deixar de acalentar a esperança, acolher quem precisa e partilhar a
alegria pascal – celebrando, crescendo e agindo.
2022.04.17 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário