domingo, 17 de abril de 2022

A Páscoa numa semana de semanas ou o Grande Domingo

 

Reduzir a Páscoa à efemeridade dum único e simples dia significa não captar em pleno a “novidade perene da Páscoa”, tão bem aflorada por Dom José Cordeiro, Arcebispo de Braga, na homilia do domingo da Ressurreição do Senhor.

Considera o prelado bracarense que a festa da Páscoa do Senhor é o HOJE por excelência da “passagem à vida nova” e, por conseguinte, “a festa das festas”. Por isso, a Igreja nascida da Páscoa cumula a liturgia pascal da admiração, da exultação e da alegria: “este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria(Sl 118,24). Com efeito, a Páscoa, indo do domingo da Ressurreição ao domingo do Pentecostes, é a festa em que a Igreja é convidada a celebrar com mais solenidade “Cristo, nossa Páscoa, que foi imolado”, pois Ele é o Cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo: morrendo destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida(Prefácio Pascal I). Por isso, a Igreja celebra, como diz o Arcebispo, os 50 dias da Páscoa, uma semana de semanas, como ‘um grande Domingo’, sendo “o domingo do Pentecostes a celebração da plenitude da Páscoa”. E, como dizia Dom Manuel Linda, Bispo do Porto, o “Aleluia” (som “que nasce de um coração amoroso”) que entoamos nestes dias é efetivamente para “Cristo Ressuscitado”, mas também para a “Igreja” que se reconhece nascida da Páscoa, marcada pelo caráter pascal e fundada pelo Espírito Santo.

Em torno do binómio “ver e acreditar”, o Núncio Apostólico, na Catedral de Angra do Heroísmo, viu na Palavra de Deus que enforma a Liturgia de hoje vários anúncios pascais:

O Evangelho de João relata que Maria Madalena, na manhã do primeiro dia da semana, “foi ter com Simão Pedro e com o discípulo predileto de Jesus e disse-lhes: ‘Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram(Jo 20,2).” Depois de Pedro entrar no sepulcro vazio, entrou João que “viu e acreditou” (Jo 20,8), isto é, acreditou que Jesus tinha ressuscitado.

Nos Atos dos Apóstolos, Pedro anunciou com entusiasmo e coragem a toda a gente presente em Jerusalém: “eles mataram-No, suspendendo-O na cruz”, mas “Deus ressuscitou-O ao terceiro dia(At 10,39-40). E, no trecho da Carta aos Colossenses, tomado como 2.ª leitura, sobressai a exortação de Paulo: “Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas do Alto e não às da terra.(Cl 3,1-2).

Vê Dom Ivo Scapolo nestas citações um aspeto fundamental da missão da Igreja através dos séculos: “anunciar e testemunhar que Jesus ressuscitou”, a verdade principal que hoje a Igreja deve anunciar, a verdade que cada um de nós deve crer e testemunhar com coragem, como Pedro. Na verdade, “Jesus, o Salvador único e universal, foi ressuscitado por Deus Pai e reina no Céu à espera da sua vinda gloriosa e definitiva”. Este é o anúncio que há vinte séculos a Igreja, sobretudo pela sua ação evangelizadora e missionária, espalha pelo mundo, convidando as pessoas a crer em Jesus ressuscitado. Assim, a celebração do “Sacramento Pascal” (expressão de Dom José Cordeiro) é “um momento de graça no qual cada um de nós é convidado a verificar se a própria experiência de fé está verdadeiramente fundada no Mistério da Ressurreição de Jesus”, a verdade que forma o eixo central em torno do qual gravitam e adquirem significado e beleza todas as outras verdades de fé. Para os crentes, a Ressurreição é o grande axioma da fé.

No âmbito do mesmo binómio “ver e acreditar”, em que o Bispo do Porto releva que em João o amor ao Mestre conduz mais facilmente à caminhada da fé (“viu e começou a acreditar”), o Arcebispo de Braga observa que “não é fácil aceitar a novidade perene da Páscoa”, como “não é fácil aceitar as surpresas da vida”. Mais adverte que o facto da ressurreição de Jesus “não foi reconhecido a partir das Escrituras”, mas “as Escrituras é que são iluminadas a partir da ressurreição de Jesus”. Porém, Jesus, o que foi crucificado, ressuscitou. E o encontro com Ele transfigura o coração e é a razão para acolher o precioso dom e o compromisso da fraternidade e do cuidado integral”. Assim, “da Quaresma à Páscoa é uma grande peregrinação de Esperança”, com a Semana Santa a erguer-se como “uma grande manifestação pública da fé”.

E o prelado bracarense questiona os seus interlocutores sobre o que se passa “ao longo do tempo pascal e em cada dia do ano”.

Já Dom Ivo Scapolo, firmado na certeza de que a Ressurreição de Jesus ocupa o centro da nossa experiência de fé, considera que “há toda uma série de consequências na maneira de ver e realizar a nossa vida e a nossa ação apostólica”. E, a este respeito desdobra em duas as recomendações de São Paulo constantes da 2.ª leitura e retira delas os respetivos significados.

A primeira, “Aspirai às coisas do alto, onde está Cristo, significa: olhar sobretudo para os Céus onde está o nosso Deus, que Jesus nos ensinou a invocar com as palavras: ‘Pai nosso que estás nos Céus’; estar em comunhão com a Igreja triunfante constituída pela Virgem Maria, os anjos, os santos e todos os que já merecem gozar da glória do Paraíso; não se cansar de olhar o céu, a meta final onde está a nossa Pátria celeste; estar numa vigilante espera da vinda gloriosa de Cristo, que julgará a todos para avaliar se seremos dignos de receber o prémio ou o castigo; viver intensa, generosa e corajosamente esta vida, uma peregrinação terrena, para sermos depois dignos de receber o prémio eterno.

E a segunda recomendação de São Paulo, “Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra”, quer dizer: cortar os vínculos excessivos ou até desordenados que podemos ter com as pessoas e as coisas; estar dispostos a renunciar a coisas, projetos, e satisfações humanas para nos entregarmos totalmente ao Senhor; estar dispostos a doar até a própria vida e as próprias coisas para sermos fiéis ao Senhor e respondermos adequadamente ao seu imenso amor; não buscar o próprio interesse pessoal ou o que nos agrada para estarmos disponíveis para fazer, como a jovem Maria, a vontade do Senhor; mantermo-nos livres de muitas coisas para estarmos dispostos a sacrificar e oferecer a própria vida por amor a Deus e aos irmãos; crer na justiça divina e aceitar as limitações da justiça humana, mas tudo fazer para que tais limitações sejam ultrapassadas.

Tudo isto não é fuga das responsabilidades que temos na comunidade humana, ao invés, aspirando às coisas do Alto e afeiçoando-nos às do Céu, adquirimos a capacidade e a generosidade de, hoje e aqui, entregarmos tudo para merecermos o prémio eterno. Com efeito, se há menos pessoas dispostas a sacrificar-se pelo Senhor, pela Igreja, pelos irmãos, por um mundo melhor, é porque estão afeiçoadas às coisas da terra; se há poucas vocações à vida sacerdotal e religiosa, é porque falta nos jovens a capacidade de entrega pelos outros, ignorando que receberemos o cêntuplo nesta terra e a vida eterna (cf Mc 10,29-30).

***

É de recordar que Dom José Cordeiro, na Vigília Pascal, apontava que, pelas leituras do Antigo Testamento, se concluía que “o mistério da Páscoa de Cristo é o pleno cumprimento da vontade de salvação do nosso Deus, desde a criação à libertação do Egipto até à manhã do oitavo dia, o novo e eterno Testamento”. E, na sequência, foca o solene anúncio do Evangelho de Lucas:

Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui: ressuscitou. Lembrai-vos de como Ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: ‘O Filho do homem tem de ser entregue às mãos dos pecadores, tem de ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia’. Elas [as mulheres] lembraram-se então das palavras de Jesus.” (Lc 24,5-8).

A seguir, exaltou “a noite mais santa e luminosa” e de grande júbilo, “porque a luz de Cristo, o Rei eterno, dissipa as trevas de todo o mundo”, segundo o canto do Precónio pascal, que assegura que, nesta “noite ditosa, se une o céu à terra, se encontra o homem com Deus; e o círio aceso no fogo novo, qual símbolo da luz de Cristoassinala a vida que se consome em luz e ardor”.

Aproveitando a ministração do Batismo e da Confirmação a dois adultos, a que se iria seguir o rito “accendite no candelabro pascal com a admonição de que “por três vezes vai-se acender e apagar o Círio Pascal; este rito faz-nos sentir e viver o realismo da nossa adesão a Jesus ressuscitado; nem sempre é fácil ter bem acesa em nós a fé” – rito que significa as luzes e as sombras do nosso peregrinar na alegria da fé – teceu considerações sobre a iniciação cristã que, irradiando desta noite, “lança os alicerces de toda a vida cristã”. E, vincando que a expressão “iniciação cristã” designa, as etapas por que passa quem quer entrar na Igreja para nela prestar culto a Deus em Espírito e verdade (cf Jo 4,23.24), disse que os sacramentos estão ligados entre si, salientando-se o rito íntegro da Iniciação Cristã que produz os seus efeitos espirituais na alma, pelo que, citando Tertuliano, falou assim desta peregrinação da santidade:

Assim a carne é lavada, para que a alma seja purificada; a carne é ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o sinal da cruz, para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta com a sombra da imposição das mãos, para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne é alimentada com o Corpo e o Sangue de Cristo, para que a alma seja saciada de Deus. Não podem, por conseguinte, ser separadas na recompensa aquelas que estiveram unidas na ação.”.

E sublinhou que a ideia subjacente à compreensão sacramental é que “Deus Se comunica e Se torna presente, agindo espiritualmente sobre os homens, mediante os elementos materiais”. 

Depois, enuncia duas ideias basilares: a celebração do inteiro mistério pascal de Cristo – princípio alicerçante de toda a reforma litúrgica – constitui o momento privilegiado do culto cristão no seu desenvolvimento anual e no do quotidiano e semanal; e, para o cristão, celebrar a Páscoa significa “passar da Semana Santa ao Dia eterno”, isto é, “viver a vida em Cristo para lá das celebrações litúrgicas, das devoções, das procissões, do folar, das amêndoas”. E vai mais longe:

Significa reconhecer Cristo fora da Catedral e das igrejas e capelas, reconhecendo e amando-O nos irmãos e irmãs que sofrem, que são perseguidos, que têm de fugir à guerra e à fome, que estão doentes, que estão presos, que vivem sós, que são idosos, que são migrantes, que são marginalizados, que passam necessidades corporais e espirituais; significa respeitar os outros na verdade e na caridade; Significa estar no mundo sem ser mundano, porque a nossa pátria é a eternidade”.

E, para que não nos cinjamos àquilo que é passageiro, o Arcebispo é mais explícito:

Significa dar o contributo positivo na construção do Bem Comum e na promoção da dignidade inalienável da pessoa humana e na defesa da vida desde a sua conceção até à morte natural; significa ser pessoa de misericórdia, como o Pai é misericordioso; significa continuar a peregrinação na santidade com coragem e confiança”.

Por isso, a Liturgia convida-nos “a celebrar, na alegria do coração, o perene Aleluia em Cristo, a nossa Páscoa e a nossa Paz”.

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No domingo da Ressurreição, como que refeito da surpresa pascal, o prelado proclamou que a Igreja orante nos convida “a cantar, na alegria do coração, o perene Aleluia em Cristo, nossa Páscoa, a marcar a plenitude da vida eterna”, pois “sabemos e acreditamos: Cristo ressuscitou dos mortos”. Citando Sophia de Mello Breyner Andresen, bradou:

Aqui para além da morte da lacuna da perca e do desastre / Celebramos a Páscoa / Aqui celebramos a claridade / Porque Deus nos criou para a alegria”.            

E, em torno da bênção pascal, assegurou que Jesus Cristo, a maior bênção do Pai, é o sujeito de toda a bênção, pois é Ele que abençoa. Com efeito, toda a bênção é louvor de Deus e oração para obter os dons, porque “não é o Homem que bendiz a Deus, mas Deus que bendiz o Homem”.

Assim, a Igreja, a família dos filhos da luz, as famílias quais igrejas domésticas e todos renascidos pela água e pelo Espírito, anunciamos, celebramos e vivemos “o mistério de Cristo, nossa Páscoa e nossa Paz, como a maior bênção do Pai”. E “proclamamos a todos e a cada um, a sempre feliz notícia nesta Páscoa inaudita: Jesus Cristo Ressuscitou”. E temos a certeza de que Deus nos ama a cada um “inteira e imensamente”.

Por fim, não é descabido, à luz das reflexões pascais, pedir à Virgem Maria, como quer o Núncio Apostólico, “que nos ajude a adquirir um autêntico espírito pascal”, pelo qual “saibamos testemunhar com as palavras e as ações a nossa fé na Ressurreição de Jesus e a nossa esperança na nossa futura ressurreição”.

Enfim, queremos uma Páscoa de 50 dias, que se repercuta pelo ano todo em cada domingo e em cada celebração eucarística, bem como na assunção dos demais sacramentos. É certo que – diz o Bispo do Porto – o momento histórico internacional é de “agressão” não “somente a um país”, mas “à comunidade das nações que tem direito a viver em paz”; “o agressor confiou nas armas acumuladas ao longo de décadas e décadas e continuamente produzidas”; e os apoiantes do agredido fizeram a mesma coisa: “o mundo não aprendeu com o passado e continuou a armar-se até aos dentes”. Não obstante, os crentes não podem deixar de acalentar a esperança, acolher quem precisa e partilhar a alegria pascal – celebrando, crescendo e agindo.

2022.04.17 – Louro de Carvalho

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