Dois anos
após a interrupção provocada pela pandemia, a Praça São Pedro, no Vaticano,
voltou a abrigar a celebração da missa com mais de 65 mil fiéis, sob a
presidência do Papa, no Domingo de Ramos, o pórtico de entrada na Semana Santa.
No obelisco situado
no centro da Praça, Francisco escutou a narração do Evangelho de Lucas evocativo
da triunfal entrada de Jesus em Jerusalém (Lc 19,28-40) e aguardou do palco a chegada dos cardeais e bispos que
traziam ramos de oliveira.
Na homilia
da missa, a seguir à proclamação da Paixão do Senhor segundo Lucas (Lc 22,14
-23,46), o Pontífice afirmou que a lógica
do “salva-te a ti mesmo” é o refrão da humanidade, que se manifesta em quem
comete violência:
“Cristo é pregado na cruz mais uma vez nas
mães que choram a morte injusta de maridos e filhos. É crucificado nos
refugiados que fogem das bombas com os meninos no braço. É crucificado nos
idosos deixados sozinhos a morrer, nos jovens privados de futuro, nos soldados mandados
a matar os seus irmãos.”.
No calvário,
confrontam-se duas mentalidades – a de Deus e a do mundo –, disse o Papa
frisando que “salvar-se a si mesmo, olhar
por si mesmo, pensar em si mesmo, (...) ter, poder
e aparecer, ‘salva-te a ti mesmo’ é o refrão da humanidade, que crucificou o
Senhor”. Porém, à mentalidade do mundo ou
do “eu” opõe-se a de Deus: o “salva-te a ti mesmo” transforma-se em oferecer-se
a Si mesmo. Jesus nunca reivindica algo para Si. Ao invés, diz: “Perdoa-lhes, Pai”. São palavras que
pronuncia ao sentir os cravos a perfurarem-lhe os pulsos e os pés. Quando Lhe
provocamos dor com as nossas ações, Ele sofre e o seu único desejo é poder
perdoar-nos. Para o entendermos, temos de contemplar o Crucificado, pois “é das
suas chagas que brota o perdão”.
No momento
da crucificação, Jesus vive o seu mandamento mais difícil: o amor aos inimigos.
Mas ensina-nos a romper o círculo vicioso do mal, quando nós, discípulos, oscilamos
em seguir o Mestre ou o nosso instinto rancoroso. Ora, se queremos verificar a
nossa pertença a Cristo, temos de ver como nos comportamos com quem nos feriu.
Pedindo
perdão ao Pai, Jesus explica-se: “porque
não sabem o que fazem”. Assim,
como nosso advogado, não
Se põe contra nós, mas por nós contra o nosso pecado. “Não sabem o que fazem” aqueles
que usam a violência, os que fazem absurdas crueldades.
O Papa
concluiu a sua reflexão homilética convidando os fiéis a abrirem-se à certeza
de que Deus pode perdoar todo pecado, à certeza de que há, com Jesus, sempre
lugar para mais um. E, sustentando que “nunca é tarde demais”, pois, com Deus,
sempre se pode voltar a viver, exortou à caminhada para a Páscoa com o seu
perdão. Com efeito, porque Jesus Cristo intercede continuamente por nós junto
do Pai e porque olha para o nosso mundo violento e ferido, não Se cansa de
repetir: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”.
***
No final da
missa, antes de rezar o Angelus com
os fiéis reunidos na Praça São Pedro, o Papa Francisco pediu uma trégua pascal.
Com efeito, evocando que o Anjo do Senhor, dirigindo-se a Nossa Senhora, disse
que “nada é impossível a Deus”, pensou em voz alta:
“Nada é impossível a Deus, inclusive fazer
cessar uma guerra da qual não se vê o fim, uma guerra que todos os dias nos
coloca diante dos olhos massacres hediondos e atrozes crueldades realizados
contra civis inermes”.
Pedindo que
“rezemos por esta intenção” e observando que “estamos nos dias que precedem a
Páscoa, ou seja, os dias de nos preparamos para celebrar a vitória de Jesus
sobre o pecado e a morte e não contra alguém”, considerou:
“Mas hoje há a guerra, porque se quer vencer
assim, de maneira mundana, mas assim somente se perde. Porque não deixar que
Ele vença? Cristo carregou a cruz para nos libertar do domínio do mal, morreu
para que reine a vida, o amor e a paz.”.
E fez o seu
enésimo apelo:
“Deponham-se as armas, inicie-se
uma trégua pascal, mas não para recarregar as armas e retomar o combate, não!
Uma trégua para se chegar à paz através de uma verdadeira negociação,
disponíveis também a qualquer sacrifício pelo bem das pessoas. Com efeito, que
vitória será aquela que fincará uma bandeira sobre um acúmulo de escombros?
Nada é impossível a Deus. N’Ele confiamos por intercessão da Virgem Maria.”
Porém, é de
registar que, antes da oração mariana, o Pontífice saudara os peregrinos
oriundos de vários países e quem acompanhou a celebração pelos meios de comunicação.
Em especial, saudou o povo do Peru, que vem atravessando um difícil momento de
tensão social, pelo que lhe garantiu sua oração, fazendo votos de que todas as
partes encontrem o mais rápido possível uma solução pacífica pelo bem do país.
***
Entre as
linhas e arcos do Coliseu, palco do martírio de milhares de pessoas no passado
por terem permanecido fiéis a Cristo, a Cruz abraça as dores do mundo, abalado
pela pandemia e pelos conflitos. E a guerra na Ucrânia é hoje uma “via
dolorosa” onde a voz clangorosa das vítimas e refugiados, incluindo mulheres e
crianças, desafia o coração de cada homem, especialmente dos que podem e devem
promover a paz. Por consequência, a Via Sacra, que foi realizada na Praça de
São Pedro durante e anos, devido à emergência do coronavírus, volta ao Coliseu.
As
meditações da Via Sacra de 2020 foram realizadas pela paróquia da prisão de
Pádua “Due Palazzi”. Em 2021, os textos das 14 estações foram preparados pelos
alunos do catecismo da paróquia romana dos Santos Mártires de Uganda e pelos
escoteiros de “Foligno I”. E, para a Via Sacra de 2022, a 15 de abril, as
meditações foram confiadas a famílias ligadas a comunidades católicas e
associações de voluntariado e assistência. Assim, o caminho da Cruz de Jesus no
nosso tempo está entrelaçado com os caminhos dolorosos da Ucrânia, onde as
imagens arrepiantes de corpos sem vida e o drama de pessoas em fuga testemunham
os horrores da guerra.
Segundo, o “Vatican News”, a XIII Estação – Jesus é
descido da Cruz e deposto no regaço de sua Mãe – terá a presença orante duma
família russa e duma família ucraniana, ou seja, a família duma enfermeira
ucraniana, Irina, do Centro de Cuidados Paliativos “Juntos no cuidado” da
Fundação Hospital Universitário Campus Biomédico, em Roma, e a família duma
estudante russa, Albina, do Curso de Licenciatura em Enfermagem da Campus Biomédico
University. As suas vozes, quotidianamente próximas de quem sofre, exprimem a
mesma esperança de paz e a mesma certeza de que o mundo precisa de paz e amor.
Os dois países sofrem com os horrores da guerra. De facto, para Albina, a guerra na Ucrânia é uma tragédia que também
leva profundo sofrimento à Rússia. À imensa dor do povo ucraniano atingido
pelas bombas soma-se a de muitos soldados russos, muitas vezes muito jovens,
que morreram em consequência do conflito. A dor das mães, de famílias inteiras.
O povo ucraniano e o povo russo sofrem, toda a humanidade sofre com a guerra.
Não se pode
imaginar quantos laços familiares há entre os povos da Ucrânia e da Rússia: muitos
russos vivem na Ucrânia e muitos ucranianos vivem na Rússia. É tragédia que
afeta os dois povos. Nem um nem outro dos dois povos querem a guerra. Todo o
povo gostaria duma vida normal.
Albina chegou à Itália em 1998 e é aluna do 3.º ano do Curso de
Licenciatura em Enfermagem do Campus Biomédico de Roma. A amizade com Irina,
enfermeira ucraniana, é mais forte do que qualquer lógica divisória que a
guerra queira impor e os povos ucraniano e russo, apesar da guerra, continuam a
ser povos irmãos. As duas conheceram-se no estágio,
em 2021, no Centro de Cuidados Paliativos “Juntos
no cuidado” da Fundação Hospital Universitário Campus Biomédico, em Roma. Albina
sentiu um grande apoio da parte de Irina. Agora, o povo de Irina precisa de
apoio. Com uma das amigas, também ela ucraniana, Albina enviou ajuda a famílias
carentes ainda antes da guerra. Agora organizam um jardim de infância para
ajuda a famílias refugiadas na Ucrânia. E muitos enfermeiros de cuidados
paliativos e colegas de curso ajudam a promover uma coleta de material escolar
e bens de primeira necessidade. Isto evidencia quão preciosa é a vida de cada
pessoa para os profissionais de saúde. A humanidade deste departamento não
conhece limites. E as manifestações da humanidade são mais fortes que qualquer
guerra.
No curso de formação no Campus Biomédico cuidam dos mais frágeis, dos
doentes. O Papa denunciou muitas vezes a cultura do descarte que põe os mais
vulneráveis à margem. Em vez disso, o empenho daqueles trabalhadores da saúde
mostra que se pode cuidar do outro, mesmo se as lesões e doenças parecem tirar a
esperança. É preciso ajudar a todos,
independentemente do país e da cor da pele. De facto, na enfermaria de cuidados
paliativos dá-se muito sentido à vida e os pacientes ensinam muito os
profissionais de saúde. Este centro de cuidados paliativos visa garantir uma
melhor qualidade de cuidados aos doentes em fase avançada. Pode-se pensar que
na fase terminal não há mais nada a fazer. Em vez disso, há muito a fazer: a
dor pode ser aliviada restaurando a dignidade da pessoa, colocando-a no centro.
E este departamento ensina-nos muito sobre o valor da vida humana.
Neste momento dramático para a Europa, Albina disse: “Sou russa e amo a Ucrânia”. É frase que pode
ser dirigida pelo povo russo a todo o povo ucraniano. São dois países irmãos e talvez num futuro muito
curto a amizade e o amor entre esses dois povos serão demonstrados outra vez.
Esperando que este dia chegue depressa, passam a Sexta-feira Santa, ao
rito da Via Sacra presidida pelo Papa. Rezam pela
paz, rezam pela Ucrânia. Rezam pelos parentes e por que todo este horror acabe
depressa, pois o mundo precisa de paz e amor. Estes dois povos irmãos provarão
isso.
À voz de
Albina soma-se a de Irina, que sublinha que “esta guerra está a destruir o que
os nossos povos construíram entre tantos sacrifícios”. E, ressaltando o seu
vínculo de amizade com a colega russa, acrescenta: “Ela sentia-se culpada e pedia desculpas. Eu assegurei-lhe que ela não
tinha nada a ver com tudo isso.”. Para
Irina, a guerra no seu país é uma via dolorosa que nos lembra como as armas
trazem apenas destruição, mesmo entre povos irmãos como o ucraniano e o russo.
O drama da guerra semeia morte e destruição mas um dia, esperamos que em breve,
como disse a colega russa, os povos da Ucrânia e da Rússia voltarão a ser povos
irmãos como eram antes do conflito. Esperam isso de todo o coração.
Esperam que a paz volte e, sobretudo, a paz entre os seus povos. Este conflito
não era desejado pelas pessoas. São dois povos próximos com muitas coisas em
comum: famílias, amizades. Tantas relações unem estes povos; e a guerra está a
destruir essas relações.
Os povos ucraniano e russo devem voltar a trilhar caminhos de
fraternidade e amizade. Para tanto, unem-se as vozes de Irina e Albina e elas
falam juntas a cuidar dos mais frágeis e elevam-se juntas a pedir paz. A sua
amizade nasceu no departamento de cuidados
paliativos “Juntos no cuidado”. Desde o primeiro momento, o vínculo foi muito
natural e espontâneo. Ao encontrarem-se logo após o início da guerra, Albina
veio à ala. Os olhos das duas encheram-se de lágrimas.
Irina chegou à Itália em 2004, mais cedo 4 anos que Albina. No seu
trabalho enfrentou e continua enfrentando a emergência da covid e ajuda os
afetados em fase avançada da doença, o que significa estar perto dos sofrimento
de quem se encontra no momento da Cruz. E este momento de guerra aumenta o sofrimento. Estar ao lado de pessoas que
sofrem uma fase frágil da vida devido a doença avançada constitui uma
assistência muito delicada. A pessoa que está nesta fase é assistida de todos
os pontos de vista. Tentam aliviar o sofrimento, tratar a dor, dar qualidade de
vida à pessoa e sua família.
Estar
“juntos” acompanha-as no seu trabalho. E, neste momento, “juntos” poderíamos
fazer muito. A humanidade deve unir-se para encontrar a paz e solução para tudo
o que está a acontecer.
***
Em
Semana Santa, já estamos marcados pelo cenário da crucifixão de Cristo no mundo
de hoje pela voz plangente do Papa e pelo grito da fraternidade solidária de
duas vozes de povos irmãos em guerra, o que os senhores que decidem a guerra
não querem ver. E decidem-na, com prejuízo crucificante de tantos e tantas, em
nome da história, da civilização, da religião, quando está em causa, afinal, a
hegemonia, a afirmação pessoal, o alto negócio, o interesse estratégico e
económico, o ser uma potência mundial superior às outras.
Mas
não podem esboroar-se a fraternidade e a dignidade!
2022.04.11 – Louro de Carvalho
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