terça-feira, 12 de abril de 2022

Na monstruosa loucura da guerra, Cristo é recrucificado

 

Dois anos após a interrupção provocada pela pandemia, a Praça São Pedro, no Vaticano, voltou a abrigar a celebração da missa com mais de 65 mil fiéis, sob a presidência do Papa, no Domingo de Ramos, o pórtico de entrada na Semana Santa.

No obelisco situado no centro da Praça, Francisco escutou a narração do Evangelho de Lucas evocativo da triunfal entrada de Jesus em Jerusalém (Lc 19,28-40) e aguardou do palco a chegada dos cardeais e bispos que traziam ramos de oliveira.

Na homilia da missa, a seguir à proclamação da Paixão do Senhor segundo Lucas (Lc 22,14 -23,46), o Pontífice afirmou que a lógica do “salva-te a ti mesmo” é o refrão da humanidade, que se manifesta em quem comete violência:

Cristo é pregado na cruz mais uma vez nas mães que choram a morte injusta de maridos e filhos. É crucificado nos refugiados que fogem das bombas com os meninos no braço. É crucificado nos idosos deixados sozinhos a morrer, nos jovens privados de futuro, nos soldados mandados a matar os seus irmãos.”.

No calvário, confrontam-se duas mentalidades – a de Deus e a do mundo –, disse o Papa frisando que “salvar-se a si mesmo, olhar por si mesmo, pensar em si mesmo, (...) ter, poder e aparecer, ‘salva-te a ti mesmo’ é o refrão da humanidade, que crucificou o Senhor”. Porém, à mentalidade do mundo ou do “eu” opõe-se a de Deus: o “salva-te a ti mesmo” transforma-se em oferecer-se a Si mesmo. Jesus nunca reivindica algo para Si. Ao invés, diz: “Perdoa-lhes, Pai”. São palavras que pronuncia ao sentir os cravos a perfurarem-lhe os pulsos e os pés. Quando Lhe provocamos dor com as nossas ações, Ele sofre e o seu único desejo é poder perdoar-nos. Para o entendermos, temos de contemplar o Crucificado, pois “é das suas chagas que brota o perdão”.

No momento da crucificação, Jesus vive o seu mandamento mais difícil: o amor aos inimigos. Mas ensina-nos a romper o círculo vicioso do mal, quando nós, discípulos, oscilamos em seguir o Mestre ou o nosso instinto rancoroso. Ora, se queremos verificar a nossa pertença a Cristo, temos de ver como nos comportamos com quem nos feriu.

Pedindo perdão ao Pai, Jesus explica-se: “porque não sabem o que fazem. Assim, como nosso advogadonão Se põe contra nós, mas por nós contra o nosso pecado. “Não sabem o que fazem” aqueles que usam a violência, os que fazem absurdas crueldades.  

O Papa concluiu a sua reflexão homilética convidando os fiéis a abrirem-se à certeza de que Deus pode perdoar todo pecado, à certeza de que há, com Jesus, sempre lugar para mais um. E, sustentando que “nunca é tarde demais”, pois, com Deus, sempre se pode voltar a viver, exortou à caminhada para a Páscoa com o seu perdão. Com efeito, porque Jesus Cristo intercede continuamente por nós junto do Pai e porque olha para o nosso mundo violento e ferido, não Se cansa de repetir: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem.

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No final da missa, antes de rezar o Angelus com os fiéis reunidos na Praça São Pedro, o Papa Francisco pediu uma trégua pascal. Com efeito, evocando que o Anjo do Senhor, dirigindo-se a Nossa Senhora, disse que “nada é impossível a Deus”, pensou em voz alta:

Nada é impossível a Deus, inclusive fazer cessar uma guerra da qual não se vê o fim, uma guerra que todos os dias nos coloca diante dos olhos massacres hediondos e atrozes crueldades realizados contra civis inermes”.

Pedindo que “rezemos por esta intenção” e observando que “estamos nos dias que precedem a Páscoa, ou seja, os dias de nos preparamos para celebrar a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte e não contra alguém”, considerou:

Mas hoje há a guerra, porque se quer vencer assim, de maneira mundana, mas assim somente se perde. Porque não deixar que Ele vença? Cristo carregou a cruz para nos libertar do domínio do mal, morreu para que reine a vida, o amor e a paz.”.

E fez o seu enésimo apelo:

Deponham-se as armas, inicie-se uma trégua pascal, mas não para recarregar as armas e retomar o combate, não! Uma trégua para se chegar à paz através de uma verdadeira negociação, disponíveis também a qualquer sacrifício pelo bem das pessoas. Com efeito, que vitória será aquela que fincará uma bandeira sobre um acúmulo de escombros? Nada é impossível a Deus. N’Ele confiamos por intercessão da Virgem Maria.

Porém, é de registar que, antes da oração mariana, o Pontífice saudara os peregrinos oriundos de vários países e quem acompanhou a celebração pelos meios de comunicação. Em especial, saudou o povo do Peru, que vem atravessando um difícil momento de tensão social, pelo que lhe garantiu sua oração, fazendo votos de que todas as partes encontrem o mais rápido possível uma solução pacífica pelo bem do país.

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Entre as linhas e arcos do Coliseu, palco do martírio de milhares de pessoas no passado por terem permanecido fiéis a Cristo, a Cruz abraça as dores do mundo, abalado pela pandemia e pelos conflitos. E a guerra na Ucrânia é hoje uma “via dolorosa” onde a voz clangorosa das vítimas e refugiados, incluindo mulheres e crianças, desafia o coração de cada homem, especialmente dos que podem e devem promover a paz. Por consequência, a Via Sacra, que foi realizada na Praça de São Pedro durante e anos, devido à emergência do coronavírus, volta ao Coliseu.

As meditações da Via Sacra de 2020 foram realizadas pela paróquia da prisão de Pádua “Due Palazzi”. Em 2021, os textos das 14 estações foram preparados pelos alunos do catecismo da paróquia romana dos Santos Mártires de Uganda e pelos escoteiros de “Foligno I”. E, para a Via Sacra de 2022, a 15 de abril, as meditações foram confiadas a famílias ligadas a comunidades católicas e associações de voluntariado e assistência. Assim, o caminho da Cruz de Jesus no nosso tempo está entrelaçado com os caminhos dolorosos da Ucrânia, onde as imagens arrepiantes de corpos sem vida e o drama de pessoas em fuga testemunham os horrores da guerra.

Segundo, o “Vatican News”, a XIII Estação – Jesus é descido da Cruz e deposto no regaço de sua Mãe – terá a presença orante duma família russa e duma família ucraniana, ou seja, a família duma enfermeira ucraniana, Irina, do Centro de Cuidados Paliativos “Juntos no cuidado” da Fundação Hospital Universitário Campus Biomédico, em Roma, e a família duma estudante russa, Albina, do Curso de Licenciatura em Enfermagem da Campus Biomédico University. As suas vozes, quotidianamente próximas de quem sofre, exprimem a mesma esperança de paz e a mesma certeza de que o mundo precisa de paz e amor. Os dois países sofrem com os horrores da guerra. De facto, para Albina, a guerra na Ucrânia é uma tragédia que também leva profundo sofrimento à Rússia. À imensa dor do povo ucraniano atingido pelas bombas soma-se a de muitos soldados russos, muitas vezes muito jovens, que morreram em consequência do conflito. A dor das mães, de famílias inteiras. O povo ucraniano e o povo russo sofrem, toda a humanidade sofre com a guerra.

Não se pode imaginar quantos laços familiares há entre os povos da Ucrânia e da Rússia: muitos russos vivem na Ucrânia e muitos ucranianos vivem na Rússia. É tragédia que afeta os dois povos. Nem um nem outro dos dois povos querem a guerra. Todo o povo gostaria duma vida normal.

Albina chegou à Itália em 1998 e é aluna do 3.º ano do Curso de Licenciatura em Enfermagem do Campus Biomédico de Roma. A amizade com Irina, enfermeira ucraniana, é mais forte do que qualquer lógica divisória que a guerra queira impor e os povos ucraniano e russo, apesar da guerra, continuam a ser povos irmãos. As duas conheceram-se no estágio, em 2021, no Centro de Cuidados Paliativos “Juntos no cuidado” da Fundação Hospital Universitário Campus Biomédico, em Roma. Albina sentiu um grande apoio da parte de Irina. Agora, o povo de Irina precisa de apoio. Com uma das amigas, também ela ucraniana, Albina enviou ajuda a famílias carentes ainda antes da guerra. Agora organizam um jardim de infância para ajuda a famílias refugiadas na Ucrânia. E muitos enfermeiros de cuidados paliativos e colegas de curso ajudam a promover uma coleta de material escolar e bens de primeira necessidade. Isto evidencia quão preciosa é a vida de cada pessoa para os profissionais de saúde. A humanidade deste departamento não conhece limites. E as manifestações da humanidade são mais fortes que qualquer guerra.

No curso de formação no Campus Biomédico cuidam dos mais frágeis, dos doentes. O Papa denunciou muitas vezes a cultura do descarte que põe os mais vulneráveis ​​à margem. Em vez disso, o empenho daqueles trabalhadores da saúde mostra que se pode cuidar do outro, mesmo se as lesões e doenças parecem tirar a esperança. É preciso ajudar a todos, independentemente do país e da cor da pele. De facto, na enfermaria de cuidados paliativos dá-se muito sentido à vida e os pacientes ensinam muito os profissionais de saúde. Este centro de cuidados paliativos visa garantir uma melhor qualidade de cuidados aos doentes em fase avançada. Pode-se pensar que na fase terminal não há mais nada a fazer. Em vez disso, há muito a fazer: a dor pode ser aliviada restaurando a dignidade da pessoa, colocando-a no centro. E este departamento ensina-nos muito sobre o valor da vida humana.

Neste momento dramático para a Europa, Albina disse: “Sou russa e amo a Ucrânia”. É frase que pode ser dirigida pelo povo russo a todo o povo ucraniano. São dois países irmãos e talvez num futuro muito curto a amizade e o amor entre esses dois povos serão demonstrados outra vez.

Esperando que este dia chegue depressa, passam a Sexta-feira Santa, ao rito da Via Sacra presidida pelo Papa. Rezam pela paz, rezam pela Ucrânia. Rezam pelos parentes e por que todo este horror acabe depressa, pois o mundo precisa de paz e amor. Estes dois povos irmãos provarão isso.

À voz de Albina soma-se a de Irina, que sublinha que “esta guerra está a destruir o que os nossos povos construíram entre tantos sacrifícios”. E, ressaltando o seu vínculo de amizade com a colega russa, acrescenta: “Ela sentia-se culpada e pedia desculpas. Eu assegurei-lhe que ela não tinha nada a ver com tudo isso.”. Para Irina, a guerra no seu país é uma via dolorosa que nos lembra como as armas trazem apenas destruição, mesmo entre povos irmãos como o ucraniano e o russo. O drama da guerra semeia morte e destruição mas um dia, esperamos que em breve, como disse a colega russa, os povos da Ucrânia e da Rússia voltarão a ser povos irmãos como eram antes do conflito. Esperam isso de todo o coração. Esperam que a paz volte e, sobretudo, a paz entre os seus povos. Este conflito não era desejado pelas pessoas. São dois povos próximos com muitas coisas em comum: famílias, amizades. Tantas relações unem estes povos; e a guerra está a destruir essas relações.

Os povos ucraniano e russo devem voltar a trilhar caminhos de fraternidade e amizade. Para tanto, unem-se as vozes de Irina e Albina e elas falam juntas a cuidar dos mais frágeis e elevam-se juntas a pedir paz. A sua amizade nasceu no departamento de cuidados paliativos “Juntos no cuidado”. Desde o primeiro momento, o vínculo foi muito natural e espontâneo. Ao encontrarem-se logo após o início da guerra, Albina veio à ala. Os olhos das duas encheram-se de lágrimas.

Irina chegou à Itália em 2004, mais cedo 4 anos que Albina. No seu trabalho enfrentou e continua enfrentando a emergência da covid e ajuda os afetados em fase avançada da doença, o que significa estar perto dos sofrimento de quem se encontra no momento da Cruz. E este momento de guerra aumenta o sofrimento. Estar ao lado de pessoas que sofrem uma fase frágil da vida devido a doença avançada constitui uma assistência muito delicada. A pessoa que está nesta fase é assistida de todos os pontos de vista. Tentam aliviar o sofrimento, tratar a dor, dar qualidade de vida à pessoa e sua família.

Estar “juntos” acompanha-as no seu trabalho. E, neste momento, “juntos” poderíamos fazer muito. A humanidade deve unir-se para encontrar a paz e solução para tudo o que está a acontecer.

***

Em Semana Santa, já estamos marcados pelo cenário da crucifixão de Cristo no mundo de hoje pela voz plangente do Papa e pelo grito da fraternidade solidária de duas vozes de povos irmãos em guerra, o que os senhores que decidem a guerra não querem ver. E decidem-na, com prejuízo crucificante de tantos e tantas, em nome da história, da civilização, da religião, quando está em causa, afinal, a hegemonia, a afirmação pessoal, o alto negócio, o interesse estratégico e económico, o ser uma potência mundial superior às outras.

Mas não podem esboroar-se a fraternidade e a dignidade!

2022.04.11 – Louro de Carvalho

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