quarta-feira, 20 de abril de 2022

“Vigilia Pretium Libertatis” (a vigilância é o preço da liberdade)

 

Na abertura do Ano Judicial 2022, o Bastonário da Ordem dos Advogados (OA) citou, no fim do seu discurso, as seguintes palavras da falecida antiga Bastonária Maria de Jesus Serra Lopes, aquando da atribuição à OA da Ordem da Liberdade pelo Presidente Soares, que proclamava:

Essa Liberdade que é, para os advogados, o pão nosso de cada dia. O alimento diário sem o qual pereceríamos. A preocupação quotidiana que nos leva a ter sempre presente que ‘Vigilia Pretium Libertatis’, a vigilância é o preço da liberdade.”.

E garantiu que os advogados permanecerão vigilantes ante qualquer violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, como sempre o fizeram na pandemia, recorrendo aos tribunais em defesa dos seus constituintes, e que a OA estará sempre ao seu lado na tarefa essencial da defesa da Liberdade e da Justiça.

Os 2 anos e 4 meses que passaram sem a realização da cerimónia de abertura do ano judicial são um tempo prejudicial para a Justiça, já que as instituições vivem de símbolos e esta cerimónia é, no dizer do Bastonário, “um símbolo da continuidade da nossa Justiça” e a sua ausência simboliza “uma longa e negra noite para a Justiça e o Estado de Direito em Portugal”.

E Menezes Leitão sustenta que os direitos constitucionais dos cidadãos foram suspensos pelos 15 de estados de emergência e que, findo o estado de emergência, tais direitos continuaram suspensos através de resoluções do Conselho de Ministros, meros regulamentos que nunca podiam restringir, muito menos suspender, direitos fundamentais. Porém, instituíram no país imposições de recolher obrigatório, proibição de circulação de cidadãos no território nacional e colocação de pessoas em quarentena domiciliária por ordem administrativa, sem controlo judicial, e sem que as pessoas apresentassem qualquer infeção ou doença. E citou Edgar Morin para dizer: “quando o estado de exceção se tornar normal, o estado normal tornar-se-á excecional”.

Anotando que esta flagrante inconstitucionalidade das sucessivas medidas lesivas de direitos dos cidadãos passou sem reação das entidades a que a Constituição atribui a competência desencadear junto do Tribunal Constitucional (TC) o processo da fiscalização da constitucionalidade das leis. Foram os advogados, o grupo profissional a quem não foi concedido qualquer apoio na pandemia, que reagiram nos Tribunais em defesa dos cidadãos, designadamente instaurando providências de habeas corpus contra a privação da liberdade dos constituintes, com fundamento, pois o TC tem declarado sistematicamente a inconstitucionalidade destas medidas. Por isso, o Bastonário julga essencial que, finda pandemia, se faça um relatório sobre a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos ocorrida neste período, para que tais situações não se repitam, e pretende que se reforce a fiscalização da constitucionalidade em futura revisão constitucional, de modo que também seja atribuída à OA competência para desencadear o processo da fiscalização da constitucionalidade das leis, à semelhança do que ocorre no Brasil. Para tanto, citou José Alberto Simonetti, presidente da OA do Brasil, que referiu “a necessidade de sempre alimentarmos a democracia e seus valores, jamais abaixar a guarda”. E “isso significa defender a Constituição”.

Depois, sustentou que “é fundamental instituir o recurso de amparo para permitir aos cidadãos recorrerem diretamente ao TC para defesa dos seus direitos fundamentais, pois o período negro da pandemia mostrou que, sem o recurso de amparo, os cidadãos “estão desamparados”.

Também é motivo de desamparo dos cidadãos, segundo o Bastonário, o estado dos tribunais administrativos e fiscais, em relação aos quais a presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA) reconheceu ser “uma vergonha a morosidade existente, onde há processos à espera de uma decisão há 10 ou 20 anos”, o que “só aproveita ao Estado que não vê as medidas que ilegalmente toma contra os cidadãos eficazmente sindicadas pelos tribunais”. Por isso, a OA decidiu criar um grupo de trabalho para apresentar propostas de solução para este problema, que não pode passar pelo mero recurso à arbitragem administrativa e fiscal, cabendo ao poder político, no quadro das suas competências, decidir se acolhe ou não as propostas formuladas para solução dum problema que já dura há tempo de mais.

Igualmente preocupante, para Menezes Leitão, é o estado da justiça cível que só não é tão morosa mercê do elevado valor das custas judiciais, que levam a que só lhe acedam os muito ricos ou os muito pobres (estes por causa do apoio judiciário). Ora, há muitos anos se reconhece como imperiosa a redução das custas judiciais, “sendo inaceitável que a água que deveria saciar a sede de justiça dos cidadãos seja em Portugal paga pelos mesmos ao preço do champanhe francês”, pois a justiça, não sendo um privilégio, mas um direito, tem que estar acessível a todos. E o Bastonário espetou uma farpa no Programa do Governo por só propor a redução das custas judiciais quando não houver meios alternativos de resolução de litígios. Ora, tal alternativa existe quase sempre, como se verifica quando se propõe o tratamento das heranças e das regulações do poder paternal nos julgados de paz. Todavia, por tais questões serem da maior importância para qualquer pessoas e fonte de grandes litígios entre os familiares, não faz sentido que sejam arredadas dos tribunais.

No quadro da justiça penal, Menezes Leitão deixa também fortes críticas. Em primeiro lugar, foca a reforma do Código de Processo Penal (CPP) a que recentemente se procedeu no Parlamento de forma absolutamente precipitada através duma série de iniciativas legislativas aprovadas em contrarrelógio, após uma anunciada dissolução do Parlamento. Tal alteração ao CPP, apesar de aprovada por unanimidade, foi fonte de tantos problemas que já levou nos últimos dias a 150 declarações de impedimento de magistrados, pelo que já foi apresentada pelo Governo nova proposta de lei para alterar a alteração. Esta não é seguramente a forma adequada de aprovar alterações a diplomas legais e muito menos, tratando-se de um CPP, que tem vindo a merecer a qualificação de “direito constitucional aplicado”. Além da legislação, verbera o que vemos no espaço público no sentido de diminuir, ou mesmo retirar, as garantias de defesa dos arguidos, que o art.º 32.º da Constituição impõe no processo penal, aparecendo até posições a defender o fim da instrução no processo penal. Ora, para o Bastonário, a fase de instrução é essencial para assegurar a jurisdicionalização da investigação criminal, pondo a acusação do Ministério Público (MP) sob controlo judicial. E recorda as palavras de Francisco Salgado Zenha a referir em 1968 que “a rejudicialização do processo penal, desde os pés à cabeça, desde o início ao topo, convertendo-o num verdadeiro processo judiciário, e não numa pura emanação policial toucada apenas por um julgamento judiciário no seu final, é condição sine qua non para que haja uma verdadeira justiça criminal, e não uma fachada de justiça criminal”. Por isso, diz o Bastonário, temos o juiz de instrução como juiz das liberdades, garantindo os direitos dos arguidos na fase de investigação criminal, e prevê-se a possibilidade de se requerer a abertura da instrução para que o juiz averigúe se há indícios suficientes para os arguidos serem submetidos a julgamento. Assim, a eliminação da fase da instrução representaria duro golpe no processo penal, em prejuízo dos direitos dos cidadãos. Porém, a conceção do juiz de instrução como juiz das liberdades não se coaduna com situações de detenção de cidadãos para interrogatório, filmadas pela comunicação social, os quais passaram vários dias detidos, sem ter sido pedida a sua prisão preventiva. Não se vê justificação para se deter um cidadão para interrogatório quando se apresenta voluntariamente às autoridades judiciárias e muito menos para passar vários dias nessa situação.

Referindo-se à autonomia do MP como conquista do Estado de Direito, critica as iniciativas que a querem limitar, designadamente pelo aumento do número de representantes do poder político no seu conselho superior (CSMP). E recorda o que Fernando Emygdio da Silva escrevia em 1909:

Coloque-se o Ministério Público na dependência absoluta dos governos, tirem-se-lhe todas as garantias de independência e ponderação – e (ai de nós!) – a perseguição nascida de ódios políticos encontra nele um instrumento dócil e obediente, e dentro do palácio da justiça, forçando as suas portas, nós veremos na cadeira honrosa do representante da sociedade o braço vingativo da animosidade partidária guiando o gesto da acusação”.

E conclui que a autonomia do MP tem que ser em absoluto defendida e não se pode aderir a quaisquer tentativas de a controlar.

Porém, se a autonomia do MP é essencial à Justiça, também deve ser associada à máxima responsabilidade no exercício pelo MP dos seus poderes, evitando a dedução de acusações sem fundamento, pois, como dizia Salgado Zenha, “ninguém sabe o que é a justiça, mas todos sabem o que é a injustiça” e “uma das formas mais evidentes de injustiça não é apenas condenar um inocente, mas também acusar, injusta e deliberadamente, um inocente”. Ora, nos últimos tempos, tem havido muitas absolvições de cidadãos que exerceram funções políticas ao mais alto nível, os quais tiveram que viver anos sob o estigma da acusação criminal, abundantemente relatada e visualizada na comunicação social, que foi julgada improcedente pelos Tribunais. Como todos sabemos que a dedução de acusação não basta para condenar, ante os danos que as acusações infundadas causam nos cidadãos, esperar-se-ia que, sendo julgadas improcedentes nos Tribunais, os cidadãos tivessem uma explicação pública por parte do MP sobre o que motivou a acusação.

Assentando em que a credibilidade da justiça é fonte de preocupação, menciona a notícia de que um inquérito da DECO colocou o sistema judiciário como a instituição em que os portugueses menos confiam e atribui grande parte de tal perceção à falta de investimento público na justiça. E desbobina dados sobre a enorme falta de recursos humanos no sistema judiciário: temos 1960 juízes, mas só 1801 estão em funções nos tribunais, sendo que grande parte dos restantes exercem funções não judiciais; no MP faltam 195 magistrados; temos 1000 funcionários judiciais a menos; o CEJ (Centro de Estudos Judiciários) perdeu 2/3 dos candidatos em 10 anos, o que afetará por muitas décadas a qualidade da justiça; sucedem-se as jubilações de magistrados, sendo notório que uma das causas é a desmotivação com a situação existente no sistema judiciário; e, na OA, já se nota um abaixamento do número de candidaturas ao Sistema de Acesso de Direito e aos Tribunais, que será resultado da desconsideração com que o Estado trata os advogados que todos os dias dão o seu melhor na defesa dos cidadãos sem recursos. Em relação àqueles advogados, o Governo recusa-se a aplicar a Lei n.º 40/2018, de 8 de agosto, que prevê a atualização anual das remunerações, que permanecem congeladas há anos. Apenas em Junho de 2020 foi efetuada a atualização de 0,08€ na unidade de referência, o que nem cobriu a inflação desse ano. E, sem qualquer explicação, a DGAJ a altera sucessivamente as regras das escalas nos tribunais, tornando cada vez mais difícil o trabalho daqueles advogados, que (digo eu) não é imune ao oportunismo.  

Tudo o que Bastonário denuncia constitui profunda violação do direito dos cidadãos à justiça e total ineficácia das respostas para os problemas existentes. Mas ainda lhe faltava dizer que a violência doméstica se tem vindo a tornar um flagelo e que é confrangedora a notícia de que as equipas especializadas no combate a esse crime têm metade dos funcionários que deveriam ter, pelo que se acumulam as pendências processuais. Além disso, receia-se uma avalanche de prescrições na justiça, devido à falta de magistrados e à escassez de recursos humanos nas perícias e nos oficiais de justiça. E Menezes Leitão fala da surpresa de ser colocado em risco um processo de extradição por ser difícil obter uma tradução para inglês e diz que a Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, que estabeleceu mecanismos de controlo da distribuição eletrónica de processos, em virtude das suspeitas que surgiram de manipulação nessa distribuição, não se cumpre porque, apesar da disponibilidade da OA para designar advogados para fiscalizar essa distribuição, o Ministério da Justiça não criou as necessárias escalas para o efeito.

Ora, enquanto a Justiça funcionar assim, a sua credibilidade será cada vez mais reduzida. Não obstante, o Bastonário deixa uma nota otimista, querendo acreditar num novo alvorecer em que “o poder político passará a tratar melhor a nossa Justiça”.

***

Além de não perceber o otimismo de Menezes Leitão depois do arrazoado crítico que lançou, com razão, ao sistema judiciário e do subtexto segundo o qual o poder político não abrange os magistrados, pergunto-me se não branqueia a perturbação do sistema causada pelo expediente puramente dilatório de muitos advogados e se a instrução que tanto defende não é um inútil pré-julgamento ou uma desautorização judicial do MP. Por outro lado, a autonomia do MP não fica beliscada por o CSMP ter o MP em minoria; e a autonomia do MP não lhe legitima um protagonismo que obnubile a ação policial, nem a organização processual com base em orientações suas como se fossem matéria legislativa, nem a ter uma agenda política conjuntural.   

2022.04.20 – Louro de Carvalho

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