Na
abertura do Ano Judicial 2022, o Bastonário da Ordem dos Advogados (OA) citou, no fim do seu discurso, as
seguintes palavras da falecida antiga Bastonária Maria de Jesus Serra Lopes, aquando
da atribuição à OA da Ordem da Liberdade pelo Presidente Soares, que
proclamava:
“Essa Liberdade que é, para os advogados, o
pão nosso de cada dia. O alimento diário sem o qual pereceríamos. A preocupação
quotidiana que nos leva a ter sempre presente que ‘Vigilia Pretium Libertatis’,
a vigilância é o preço da liberdade.”.
E
garantiu que os advogados permanecerão vigilantes ante qualquer violação dos direitos
fundamentais dos cidadãos, como sempre o fizeram na pandemia, recorrendo aos tribunais
em defesa dos seus constituintes, e que a OA estará sempre ao seu lado na
tarefa essencial da defesa da Liberdade e da Justiça.
Os
2 anos e 4 meses que passaram sem a realização da cerimónia de abertura do ano
judicial são um tempo prejudicial para a Justiça, já que as instituições vivem
de símbolos e esta cerimónia é, no dizer do Bastonário, “um símbolo da
continuidade da nossa Justiça” e a sua ausência simboliza “uma longa e negra
noite para a Justiça e o Estado de Direito em Portugal”.
E
Menezes Leitão sustenta que os direitos constitucionais dos cidadãos foram
suspensos pelos 15 de estados de emergência e que, findo o estado de
emergência, tais direitos continuaram suspensos através de resoluções do
Conselho de Ministros, meros regulamentos que nunca podiam restringir, muito
menos suspender, direitos fundamentais. Porém, instituíram no país imposições
de recolher obrigatório, proibição de circulação de cidadãos no território
nacional e colocação de pessoas em quarentena domiciliária por ordem
administrativa, sem controlo judicial, e sem que as pessoas apresentassem
qualquer infeção ou doença. E citou Edgar Morin para dizer: “quando o estado de exceção se tornar normal,
o estado normal tornar-se-á excecional”.
Anotando
que esta flagrante inconstitucionalidade das sucessivas medidas lesivas de
direitos dos cidadãos passou sem reação das entidades a que a Constituição
atribui a competência desencadear junto do Tribunal Constitucional (TC) o processo da fiscalização da
constitucionalidade das leis. Foram os advogados, o grupo profissional a quem
não foi concedido qualquer apoio na pandemia, que reagiram nos Tribunais em
defesa dos cidadãos, designadamente instaurando providências de habeas corpus contra a privação da
liberdade dos constituintes, com fundamento, pois o TC tem declarado
sistematicamente a inconstitucionalidade destas medidas. Por isso, o Bastonário
julga essencial que, finda pandemia, se faça um relatório sobre a violação dos
direitos fundamentais dos cidadãos ocorrida neste período, para que tais
situações não se repitam, e pretende que se reforce a fiscalização da
constitucionalidade em futura revisão constitucional, de modo que também seja atribuída
à OA competência para desencadear o processo da fiscalização da constitucionalidade
das leis, à semelhança do que ocorre no Brasil. Para tanto, citou José Alberto
Simonetti, presidente da OA do Brasil, que referiu “a necessidade de sempre
alimentarmos a democracia e seus valores, jamais abaixar a guarda”. E “isso significa
defender a Constituição”.
Depois,
sustentou que “é fundamental instituir o recurso de amparo para permitir aos
cidadãos recorrerem diretamente ao TC para defesa dos seus direitos
fundamentais, pois o período negro da pandemia mostrou que, sem o recurso de
amparo, os cidadãos “estão desamparados”.
Também
é motivo de desamparo dos cidadãos, segundo o Bastonário, o estado dos tribunais
administrativos e fiscais, em relação aos quais a presidente do Supremo
Tribunal Administrativo (STA) reconheceu ser “uma vergonha a morosidade existente,
onde há processos à espera de uma decisão há 10 ou 20 anos”, o que “só aproveita
ao Estado que não vê as medidas que ilegalmente toma contra os cidadãos
eficazmente sindicadas pelos tribunais”. Por isso, a OA decidiu criar um grupo
de trabalho para apresentar propostas de solução para este problema, que não
pode passar pelo mero recurso à arbitragem administrativa e fiscal, cabendo ao poder
político, no quadro das suas competências, decidir se acolhe ou não as
propostas formuladas para solução dum problema que já dura há tempo de mais.
Igualmente
preocupante, para Menezes Leitão, é o estado da justiça cível que só não é tão
morosa mercê do elevado valor das custas judiciais, que levam a que só lhe acedam
os muito ricos ou os muito pobres (estes por causa do
apoio judiciário). Ora,
há muitos anos se reconhece como imperiosa a redução das custas judiciais, “sendo
inaceitável que a água que deveria saciar a sede de justiça dos cidadãos seja
em Portugal paga pelos mesmos ao preço do champanhe francês”, pois a justiça,
não sendo um privilégio, mas um direito, tem que estar acessível a todos. E o
Bastonário espetou uma farpa no Programa do Governo por só propor a redução das
custas judiciais quando não houver meios alternativos de resolução de litígios.
Ora, tal alternativa existe quase sempre, como se verifica quando se propõe o
tratamento das heranças e das regulações do poder paternal nos julgados de paz.
Todavia, por tais questões serem da maior importância para qualquer pessoas e
fonte de grandes litígios entre os familiares, não faz sentido que sejam
arredadas dos tribunais.
No
quadro da justiça penal, Menezes Leitão deixa também fortes críticas. Em
primeiro lugar, foca a reforma do Código de Processo Penal (CPP) a que recentemente se procedeu no
Parlamento de forma absolutamente precipitada através duma série de iniciativas
legislativas aprovadas em contrarrelógio, após uma anunciada dissolução do
Parlamento. Tal alteração ao CPP, apesar de aprovada por unanimidade, foi fonte
de tantos problemas que já levou nos últimos dias a 150 declarações de
impedimento de magistrados, pelo que já foi apresentada pelo Governo nova
proposta de lei para alterar a alteração. Esta não é seguramente a forma
adequada de aprovar alterações a diplomas legais e muito menos, tratando-se de
um CPP, que tem vindo a merecer a qualificação de “direito constitucional
aplicado”. Além da legislação, verbera o que vemos no espaço público no sentido
de diminuir, ou mesmo retirar, as garantias de defesa dos arguidos, que o art.º
32.º da Constituição impõe no processo penal, aparecendo até posições a
defender o fim da instrução no processo penal. Ora, para o Bastonário, a fase
de instrução é essencial para assegurar a jurisdicionalização da investigação
criminal, pondo a acusação do Ministério Público (MP) sob controlo judicial. E recorda
as palavras de Francisco Salgado Zenha a referir em 1968 que “a
rejudicialização do processo penal, desde os pés à cabeça, desde o início ao
topo, convertendo-o num verdadeiro processo judiciário, e não numa pura
emanação policial toucada apenas por um julgamento judiciário no seu final, é
condição sine qua non para que haja
uma verdadeira justiça criminal, e não uma fachada de justiça criminal”. Por
isso, diz o Bastonário, temos o juiz de instrução como juiz das liberdades,
garantindo os direitos dos arguidos na fase de investigação criminal, e prevê-se
a possibilidade de se requerer a abertura da instrução para que o juiz averigúe
se há indícios suficientes para os arguidos serem submetidos a julgamento. Assim,
a eliminação da fase da instrução representaria duro golpe no processo penal,
em prejuízo dos direitos dos cidadãos. Porém, a conceção do juiz de instrução
como juiz das liberdades não se coaduna com situações de detenção de cidadãos
para interrogatório, filmadas pela comunicação social, os quais passaram vários
dias detidos, sem ter sido pedida a sua prisão preventiva. Não se vê justificação
para se deter um cidadão para interrogatório quando se apresenta voluntariamente
às autoridades judiciárias e muito menos para passar vários dias nessa
situação.
Referindo-se
à autonomia do MP como conquista do Estado de Direito, critica as iniciativas que
a querem limitar, designadamente pelo aumento do número de representantes do
poder político no seu conselho superior (CSMP). E recorda o que Fernando
Emygdio da Silva escrevia em 1909:
“Coloque-se o Ministério Público na
dependência absoluta dos governos, tirem-se-lhe todas as garantias de
independência e ponderação – e (ai de nós!) – a perseguição nascida de ódios
políticos encontra nele um instrumento dócil e obediente, e dentro do palácio
da justiça, forçando as suas portas, nós veremos na cadeira honrosa do
representante da sociedade o braço vingativo da animosidade partidária guiando
o gesto da acusação”.
E
conclui que a autonomia do MP tem que ser em absoluto defendida e não se pode
aderir a quaisquer tentativas de a controlar.
Porém,
se a autonomia do MP é essencial à Justiça, também deve ser associada à máxima
responsabilidade no exercício pelo MP dos seus poderes, evitando a dedução de
acusações sem fundamento, pois, como dizia Salgado Zenha, “ninguém sabe o que é
a justiça, mas todos sabem o que é a injustiça” e “uma das formas mais
evidentes de injustiça não é apenas condenar um inocente, mas também acusar,
injusta e deliberadamente, um inocente”. Ora, nos últimos tempos, tem havido
muitas absolvições de cidadãos que exerceram funções políticas ao mais alto
nível, os quais tiveram que viver anos sob o estigma da acusação criminal,
abundantemente relatada e visualizada na comunicação social, que foi julgada
improcedente pelos Tribunais. Como todos sabemos que a dedução de acusação não
basta para condenar, ante os danos que as acusações infundadas causam nos cidadãos,
esperar-se-ia que, sendo julgadas improcedentes nos Tribunais, os cidadãos
tivessem uma explicação pública por parte do MP sobre o que motivou a acusação.
Assentando
em que a credibilidade da justiça é fonte de preocupação, menciona a notícia de
que um inquérito da DECO colocou o sistema judiciário como a instituição em que
os portugueses menos confiam e atribui grande parte de tal perceção à falta de
investimento público na justiça. E desbobina dados sobre a enorme falta de
recursos humanos no sistema judiciário: temos 1960 juízes, mas só 1801 estão em
funções nos tribunais, sendo que grande parte dos restantes exercem funções não
judiciais; no MP faltam 195 magistrados; temos 1000 funcionários judiciais a
menos; o CEJ (Centro de Estudos Judiciários) perdeu 2/3 dos candidatos em 10
anos, o que afetará por muitas décadas a qualidade da justiça; sucedem-se as
jubilações de magistrados, sendo notório que uma das causas é a desmotivação
com a situação existente no sistema judiciário; e, na OA, já se nota um
abaixamento do número de candidaturas ao Sistema de Acesso de Direito e aos
Tribunais, que será resultado da desconsideração com que o Estado trata os
advogados que todos os dias dão o seu melhor na defesa dos cidadãos sem
recursos. Em relação àqueles advogados, o Governo recusa-se a aplicar a Lei n.º
40/2018, de 8 de agosto, que prevê a atualização anual das remunerações, que
permanecem congeladas há anos. Apenas em Junho de 2020 foi efetuada a atualização
de 0,08€ na unidade de referência, o que nem cobriu a inflação desse ano. E, sem
qualquer explicação, a DGAJ a altera sucessivamente as regras das escalas nos
tribunais, tornando cada vez mais difícil o trabalho daqueles advogados, que (digo
eu) não é imune ao
oportunismo.
Tudo
o que Bastonário denuncia constitui profunda violação do direito dos cidadãos à
justiça e total ineficácia das respostas para os problemas existentes. Mas ainda
lhe faltava dizer que a violência doméstica se tem vindo a tornar um flagelo e
que é confrangedora a notícia de que as equipas especializadas no combate a esse
crime têm metade dos funcionários que deveriam ter, pelo que se acumulam as
pendências processuais. Além disso, receia-se uma avalanche de prescrições na
justiça, devido à falta de magistrados e à escassez de recursos humanos nas
perícias e nos oficiais de justiça. E Menezes Leitão fala da surpresa de ser
colocado em risco um processo de extradição por ser difícil obter uma tradução
para inglês e diz que a Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, que estabeleceu
mecanismos de controlo da distribuição eletrónica de processos, em virtude das suspeitas
que surgiram de manipulação nessa distribuição, não se cumpre porque, apesar da
disponibilidade da OA para designar advogados para fiscalizar essa distribuição,
o Ministério da Justiça não criou as necessárias escalas para o efeito.
Ora,
enquanto a Justiça funcionar assim, a sua credibilidade será cada vez mais
reduzida. Não obstante, o Bastonário deixa uma nota otimista, querendo
acreditar num novo alvorecer em que “o poder político passará a tratar melhor a
nossa Justiça”.
***
Além
de não perceber o otimismo de Menezes Leitão depois do arrazoado crítico que lançou,
com razão, ao sistema judiciário e do subtexto segundo o qual o poder político
não abrange os magistrados, pergunto-me se não branqueia a perturbação do
sistema causada pelo expediente puramente dilatório de muitos advogados e se a
instrução que tanto defende não é um inútil pré-julgamento ou uma desautorização
judicial do MP. Por outro lado, a autonomia do MP não fica beliscada por o CSMP
ter o MP em minoria; e a autonomia do MP não lhe legitima um protagonismo que
obnubile a ação policial, nem a organização processual com base em orientações
suas como se fossem matéria legislativa, nem a ter uma agenda política conjuntural.
2022.04.20 – Louro de Carvalho
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