Todos
os falantes do português sabem distinguir entre os termos “comprimento” e “cumprimento”
e os linguistas dão-no-los como parónimos, pois têm grafia e pronúncia muito
semelhantes, mas têm significados muito diferentes e “supostamente” origens
diferentes. Estamos, pois, ante o fenómeno da paronímia, fenómeno linguístico que ocorre entre palavras que têm
significante parecido, mas significado distinto, isto é, que
têm estrutura, escrita e/ou sonora, muito semelhante, porém sem qualquer
relação de significado.
Assim, temos, por exemplo: absolver (declarar inocente, perdoar), adsorver (reter por
adsorção ou assimilação) e
absorver (sorver, incorporar); cavaleiro (aquele que monta em cavalos) e cavalheiro (aquele que é
cortês, polido); descrição (definição,
explicação aprofundada) e discrição (comedimento,
modéstia, reserva); emigrante (que ou quem emigra ou
vai estabelecer-se noutra região ou noutro país diferente do seu) e imigrante (que ou quem imigra ou vem
estabelecer-se em região ou país diferente do seu); eminente (elevado, proeminente, distinto, ilustre, nobre) e iminente (próximo, imediato, prestes); exportar (mandar ou transportar para outro país
ou região) e importar (introduzir num país
ou região produtos provenientes de outros países ou regiões); perfeito (acabado, rematado, completo; sem defeito;
magistral; primoroso, notável, destro; que não deixa dúvidas; [tempo
verbal] que exprime que, no momento em que estamos já está realizado aquilo que o verbo significa;
[acorde] formado por três ou mais notas; [número] igual à soma das suas
partes alíquotas) e prefeito (o que preside ao estudo e vigia os estudantes nos colégios
e seminários, chefe de prefeitura na antiga Roma ou do município no
Brasil, superior de comunidade eclesiástica,
chefe de departamento em França); ratificar (confirmar,
aprovar) e retificar (corrigir,
consertar, alinhar); soar (tocar, badalar,
emitir som) e suar (transpirar,
gotejar).
É de anotar que em casos como “emigrante” e
“imigrante”, “eminente” e “iminente”, “soar” e “suar”, é preciso fazer um
esforço para pronunciar as palavras de modo que não sejam homófonas, isto é,
diferentes na escrita e iguais na pronúncia, distinguindo-se pelo contexto.
***
Ora o vocábulo “comprimento” é assumido, na física,
como grandeza de base que
exprime a distância percorrida entre dois pontos e cuja unidade de medida é o
metro (no grego, “métron”,
medida); em termos
geométricos é a medida do lado mais oblongo dum paralelogramo; em termos
genéricos, é a extensão longitudinal entre duas extremidades, a distância, o tamanho,
a grandeza; e, por extensão, comprimento de um terreno e também: duração, extensão de tempo,
comprimento de fala.
Ao termo associa-se a noção
de medida, no latim, “mensura” (do verbo “metior”, cujo
pretérito perfeito e “mensus sum”) e, no português
medieval, “mesura”. No quadro das dimensões (medidas) fica relacionado com a largura, a altura e/ou profundidade – todas
condicentes com as noções de medida, grandeza, distância, extensão. E, quando
temos um objeto com as três dimensões, chamamos-lhe corpo, sólido; e, se tem as
faces planas, é um poliedro.
Etimologicamente “comprimento”
vem do radical antigo compr (comprir) + mento.
E o vocábulo “cumprimento”
usa-se em diversas aceções: a) ato ou efeito de cumprir uma norma, observância,
execução completa; b) gesto ou palavra de saudação; c) elogio, lisonja; d) (no plural) saudações, felicitações.
Então, “cumprimento” reporta-nos
à saudação e ao elogio, quando referente ao verbo cumprimentar; ao ato
de concluir alguma obrigação ou tarefa, quando referente ao verbo cumprir
satisfazer; à observância de lei ou regulamento, quando referente ao verbo
cumprir como contrário ao verbo transgredir; e à forma conjugada do verbo cumprimentar
na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa.
Etimologicamente a palavra vem, como no
caso do suposto parónimo acima referenciado, do
radical antigo compr (comprir) + mento.
Quer dizer que no português
arcaico só havia a forma “comprir”, não se usando a forma “cumprir”. Significa
isto que “cumprimento” e “comprimento” têm uma origem etimológica comum, o
“complementum” latino (complemento, enchimento, extensão), do verbo “complere” (encher inteiramente,
concluir, acabar, completar, preencher, recrutar),
derivado de “cum + plere”.
Anote-se que no latim,
embora exista a preposição e sufixo “cum” (equivalente ao
grego “syn”), na formação de palavras por prefixação o
prefixo surge como “com” antes de “b”, “m” e de “p” (v.g: combustio, communio, complector, amplexus …) e “con” nos outros casos (v.g: condo, conficio, connubium…). Veja-se que, mesmo as nossas palavras “cúmplice” e “cumplicidade” têm
como étimo “complex”.
Se a “comprimento”
associamos as noções de grandeza, medida e distância, também as devemos
associar a “cumprimento”, pois o trovador medieval, em relação à sua “senhor”,
tinha que guardar a mesura, a medida ou a distância, não fosse ela assanhar-se
ou o marido vir a descobrir o caso amoroso. Por outro lado, o trovador chama-a
“comprida de bem” a reconhecer a sua grandeza moral. E também havemos de
associar a cumprimento a perfeição, o bom acabamento, a completude, a
plenitude, pois o trovador reconhece na sua “senhor” a que Deus fez a maior e a
mais comprida de bem que “todalas que en el mundo ay”. E nós saudamos a Mãe de
Jesus como a Cheia de Graça (gratia plena).
Também é corrente, quando nos dirigimos a
alguém que reputamos mais elevado na sociedade dizermos “dá licença que o
cumprimente”. Os romanos quando saudavam o imperador e outros superiores
“estendiam” o braço direito. Os militares fazem a continência, mantendo alguma
distância, perfilando-se em sentido e levando a mão à testa com alguma rigidez.
Os dois gladiadores romanos
antes do início da luta, tantas vezes mortal para ambos, perfilavam-se diante
do imperador à distância protocolar, estendiam a mão direita na sua direção e
clamavam: Aue, Caesar uictor, morituri te
salutant! (Os deuses te salvem, César vencedor, os que
vão morrer saúdam-te!).
Trata-se de observância ou
cumprimento de rituais, protocolos.
Em ambos os casos de “comprimento”
e “cumprimento” falamos de extensão e complemento. Medir uma grandeza ou uma
distância gera uma completude de conhecimento que pode revestir-se da
necessária utilidade; cumprir uma lei ou norma significa completá-la na sua finalidade
e objetivos e, quando avaliamos o seu cumprimento, percebemos a distância entre
o que se deve fazer e o que efetivamente se fez ou se a norma, lei ou regulamento
são adequados e exequíveis; saudar uma pessoa significa, por um lado,
reconhecer a sua importância e grandeza e, por outro, guardar a distância que o
respeito impõe, podendo eventualmente não haver sucesso, bem como satisfazer ou
preencher os requisitos da boa relação interpessoal. É comunicar elevando à
plenitude atitudinal duas ou mais pessoas que são ou passam a ser do mesmo
universo de relação ou de interesse.
Repare-se que a temática do complemento
é recorrente na vida. Em geometria, dizem-se complementares dois ângulos adjacentes
cuja soma faz um ângulo reto; no casamento, os cônjuges são complemento um para
o outro; na sintaxe gramatical, a proposição tem o complemento direto, o complemento
indireto, o complemento oblíquo, o complemento do nome, o complemento do
adjetivo, o complemento do advérbio, o complemento agente da passiva: e há orações
que servem de complemento a outros elementos da frase.
Ora como os dois vocábulos
“comprimento” e “cumprimento” têm o mesmo étimo latino “complementum” e até
começaram a ter a mesma história, mais do que parónimos, devem ser entendidos
como divergentes ou alótropos com os significados que o uso especificou.
É o que sucede com tantos
outros como “solitário” e “solteiro” (de “solitarium”), significando o primeiro “o que vive sozinho” e o segundo “o que não é
casado”; “óculo” e “olho” (de “oculum”), significando o primeiro “óculo” e o segundo “olho”, “plano” e “chão” (de “planum”), significando o primeiro “plano”
(superfície lisa) e o segundo “chão”
(solo), “mácula”,
“malha”, “mancha”, (de “maculam”), significando o primeiro “impureza” e os seguintes “marca” e “nódoa”,
respetivamente.
Assim, mais do que a paronímia, deveríamos
considerar a alotropia gramatical – em que um étimo dá origem a várias formas
lexicais – por analogia com a alotropia física e química, propriedade segundo a
qual alguns corpos simples apresentam diferentes estados a que correspondem propriedades
distintas.
Brincando até dizemos muitos
cumprimentos, larguras e alturas.
Os gregos saudavam-se com o “Khaîre”
(Alegra-te), e “Khaírete” (Alegrai-vos). Os romanos saudavam-se com o “Salue”
(Tem saúde) e “Saluete” (Tende saúde), “Aue” (Deus te salve ou os deuses te
salvem) e “Auete” (Deus vos salve ou os deuses vos salvem), quando se aproximavam; e “Vale” (Tem valor, força) e “Valete”
(Tende valor, força), à noite ou quando se afastavam. Alegria, saúde e valor são predicados
do homem que vive em plenitude do homem completo, que tem todas as medidas.
Enfim, performances que o uso
determina. Hoje, para mal dos nossos pecados, em “comprimento” e “cumprimento”,
há paronímia, porque esquecemos a alotropia gramatical. É pena. Falta-nos química!
2022.04.27 – Louro de Carvalho
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