quarta-feira, 27 de abril de 2022

Palavras “comprimento” e “cumprimento” – da alotropia à paronímia

Todos os falantes do português sabem distinguir entre os termos “comprimento” e “cumprimento” e os linguistas dão-no-los como parónimos, pois têm grafia e pronúncia muito semelhantes, mas têm significados muito diferentes e “supostamente” origens diferentes. Estamos, pois, ante o fenómeno da paronímia, fenómeno linguístico que ocorre entre palavras que têm significante parecido, mas significado distinto, isto é, que têm estrutura, escrita e/ou sonora, muito semelhante, porém sem qualquer relação de significado.

Assim, temos, por exemplo: absolver (declarar inocente, perdoar), adsorver (reter por adsorção ou assimilação) e absorver (sorver, incorporar); cavaleiro (aquele que monta em cavalos) e cavalheiro (aquele que é cortês, polido); descrição (definição, explicação aprofundada) e discrição (comedimento, modéstia, reserva); emigrante (que ou quem emigra ou vai estabelecer-se noutra região ou noutro país diferente do seu) e imigrante (que ou quem imigra ou vem estabelecer-se em região ou país diferente do seu); eminente (elevado, proeminente, distinto, ilustre, nobre) e iminente (próximo, imediato, prestes); exportar (mandar ou transportar para outro país ou região) e importar (introduzir num país ou região produtos provenientes de outros países ou regiões); perfeito (acabado, rematado, completo; sem defeito; magistral; primoroso, notável, destro; que não deixa dúvidas; [tempo verbal] que exprime que, no momento em que estamos já está realizado aquilo que o verbo significa; [acorde] formado por três ou mais notas; [número] igual à soma das suas partes alíquotas) e prefeito (o que preside ao estudo e vigia os estudantes nos colégios e seminários, chefe de prefeitura na antiga Roma ou do município no Brasil, superior de comunidade eclesiástica, chefe de departamento em França); ratificar (confirmar, aprovar) e retificar (corrigir, consertar, alinhar); soar (tocar, badalar, emitir som) e suar (transpirar, gotejar).

É de anotar que em casos como “emigrante” e “imigrante”, “eminente” e “iminente”, “soar” e “suar”, é preciso fazer um esforço para pronunciar as palavras de modo que não sejam homófonas, isto é, diferentes na escrita e iguais na pronúncia, distinguindo-se pelo contexto.

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Ora o vocábulo “comprimento” é assumido, na física, como grandeza de base que exprime a distância percorrida entre dois pontos e cuja unidade de medida é o metro (no grego, “métron”, medida); em termos geométricos é a medida do lado mais oblongo dum paralelogramo; em termos genéricos, é a extensão longitudinal entre duas extremidades, a distância, o tamanho, a grandeza; e, por extensão, comprimento de um terreno e também: duração, extensão de tempo, comprimento de fala.

Ao termo associa-se a noção de medida, no latim, “mensura” (do verbo “metior”, cujo pretérito perfeito e “mensus sum”) e, no português medieval, “mesura”. No quadro das dimensões (medidas) fica relacionado com a largura, a altura e/ou profundidade – todas condicentes com as noções de medida, grandeza, distância, extensão. E, quando temos um objeto com as três dimensões, chamamos-lhe corpo, sólido; e, se tem as faces planas, é um poliedro.   

Etimologicamente “comprimento” vem do radical antigo compr (comprir) + mento.

E o vocábulo “cumprimento” usa-se em diversas aceções: a) ato ou efeito de cumprir uma norma, observância, execução completa; b) gesto ou palavra de saudação; c) elogio, lisonja; d) (no plural) saudações, felicitações.

Então, “cumprimento” reporta-nos à saudação e ao elogio, quando referente ao verbo cumprimentar; ao ato de concluir alguma obrigação ou tarefa, quando referente ao verbo cumprir satisfazer; à observância de lei ou regulamento, quando referente ao verbo cumprir como contrário ao verbo transgredir; e à forma conjugada do verbo cumprimentar na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa.

Etimologicamente a palavra vem, como no caso do suposto parónimo acima referenciado, do radical antigo compr (comprir) + mento.

Quer dizer que no português arcaico só havia a forma “comprir”, não se usando a forma “cumprir”. Significa isto que “cumprimento” e “comprimento” têm uma origem etimológica comum, o “complementum” latino (complemento, enchimento, extensão), do verbo “complere” (encher inteiramente, concluir, acabar, completar, preencher, recrutar), derivado de “cum + plere”. 

Anote-se que no latim, embora exista a preposição e sufixo “cum” (equivalente ao grego “syn”), na formação de palavras por prefixação o prefixo surge como “com” antes de “b”, “m” e de “p” (v.g: combustio, communio, complector, amplexus …) e “con” nos outros casos (v.g: condo, conficio, connubium…). Veja-se que, mesmo as nossas palavras “cúmplice” e “cumplicidade” têm como étimo “complex”.

Se a “comprimento” associamos as noções de grandeza, medida e distância, também as devemos associar a “cumprimento”, pois o trovador medieval, em relação à sua “senhor”, tinha que guardar a mesura, a medida ou a distância, não fosse ela assanhar-se ou o marido vir a descobrir o caso amoroso. Por outro lado, o trovador chama-a “comprida de bem” a reconhecer a sua grandeza moral. E também havemos de associar a cumprimento a perfeição, o bom acabamento, a completude, a plenitude, pois o trovador reconhece na sua “senhor” a que Deus fez a maior e a mais comprida de bem que “todalas que en el mundo ay”. E nós saudamos a Mãe de Jesus como a Cheia de Graça (gratia plena).

 Também é corrente, quando nos dirigimos a alguém que reputamos mais elevado na sociedade dizermos “dá licença que o cumprimente”. Os romanos quando saudavam o imperador e outros superiores “estendiam” o braço direito. Os militares fazem a continência, mantendo alguma distância, perfilando-se em sentido e levando a mão à testa com alguma rigidez.

Os dois gladiadores romanos antes do início da luta, tantas vezes mortal para ambos, perfilavam-se diante do imperador à distância protocolar, estendiam a mão direita na sua direção e clamavam: Aue, Caesar uictor, morituri te salutant! (Os deuses te salvem, César vencedor, os que vão morrer saúdam-te!).

Trata-se de observância ou cumprimento de rituais, protocolos.

Em ambos os casos de “comprimento” e “cumprimento” falamos de extensão e complemento. Medir uma grandeza ou uma distância gera uma completude de conhecimento que pode revestir-se da necessária utilidade; cumprir uma lei ou norma significa completá-la na sua finalidade e objetivos e, quando avaliamos o seu cumprimento, percebemos a distância entre o que se deve fazer e o que efetivamente se fez ou se a norma, lei ou regulamento são adequados e exequíveis; saudar uma pessoa significa, por um lado, reconhecer a sua importância e grandeza e, por outro, guardar a distância que o respeito impõe, podendo eventualmente não haver sucesso, bem como satisfazer ou preencher os requisitos da boa relação interpessoal. É comunicar elevando à plenitude atitudinal duas ou mais pessoas que são ou passam a ser do mesmo universo de relação ou de interesse.

Repare-se que a temática do complemento é recorrente na vida. Em geometria, dizem-se complementares dois ângulos adjacentes cuja soma faz um ângulo reto; no casamento, os cônjuges são complemento um para o outro; na sintaxe gramatical, a proposição tem o complemento direto, o complemento indireto, o complemento oblíquo, o complemento do nome, o complemento do adjetivo, o complemento do advérbio, o complemento agente da passiva: e há orações que servem de complemento a outros elementos da frase.    

Ora como os dois vocábulos “comprimento” e “cumprimento” têm o mesmo étimo latino “complementum” e até começaram a ter a mesma história, mais do que parónimos, devem ser entendidos como divergentes ou alótropos com os significados que o uso especificou.

É o que sucede com tantos outros como “solitário” e “solteiro” (de “solitarium”), significando o primeiro “o que vive sozinho” e o segundo “o que não é casado”; “óculo” e “olho” (de “oculum”), significando o primeiro “óculo” e o segundo “olho”, “plano” e “chão” (de “planum”), significando o primeiro “plano” (superfície lisa) e o segundo “chão” (solo), “mácula”, “malha”, “mancha”, (de “maculam”), significando o primeiro “impureza” e os seguintes “marca” e “nódoa”, respetivamente.

Assim, mais do que a paronímia, deveríamos considerar a alotropia gramatical – em que um étimo dá origem a várias formas lexicais – por analogia com a alotropia física e química, propriedade segundo a qual alguns corpos simples apresentam diferentes estados a que correspondem propriedades distintas.

Brincando até dizemos muitos cumprimentos, larguras e alturas.

Os gregos saudavam-se com o “Khaîre” (Alegra-te), e “Khaírete” (Alegrai-vos). Os romanos saudavam-se com o “Salue” (Tem saúde) e “Saluete” (Tende saúde), “Aue” (Deus te salve ou os deuses te salvem) e “Auete” (Deus vos salve ou os deuses vos salvem), quando se aproximavam; e “Vale” (Tem valor, força) e “Valete” (Tende valor, força), à noite ou quando se afastavam. Alegria, saúde e valor são predicados do homem que vive em plenitude do homem completo, que tem todas as medidas.

Enfim, performances que o uso determina. Hoje, para mal dos nossos pecados, em “comprimento” e “cumprimento”, há paronímia, porque esquecemos a alotropia gramatical. É pena. Falta-nos química!  

2022.04.27 – Louro de Carvalho 

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