Pela
primeira vez desde o início da pandemia de covid-19, a Revolução dos Cravos foi
assinalada no Parlamento sem número limitado de presentes e sem a obrigatoriedade
da máscara – regra que deixou de vigorar no dia 22 –, ao invés dos dois anos
anteriores, em que nesta data vigorava o estado de emergência.
Iniciada
às 10 horas com o Hino Nacional, a sessão incluiu os discursos de deputados dos
oito partidos com assento parlamentar, por ordem crescente de
representatividade, Livre, PAN, BE, PCP, IL, Chega, PSD, PS, Presidente da
Assembleia da República e Presidente da República.
***
Rui
Tavares (Livre) inaugurou o período das intervenções
vincando que a revolução abrilina pôs termo a “décadas de compressão do
potencial humano, de repressão das liberdades políticas”. E constitui “a
história da liberdade e de tudo o que conseguimos falar com ela” e “a luta por
garantir que toda a gente comum possa ter direito a uma vida melhor”. Foi “um
dia que valeu por décadas” e, no atinente à guerra colonial e ao seu fim, “um
dia que valeu por séculos”.
Enfatizou
que “a luta pela liberdade e pela igualdade são a mesma luta”. De facto,
amanhecemos com presos políticos, mas ao longo do dia “os presos políticos
decidiram que ou saíam todos ou não saía nenhum”. E “o povo nas ruas deixou
claro” que a ditadura não voltaria. Mas o 25 de Abril é “uma tarefa longa ainda
a ser cumprida”.
Por seu
turno, Inês Sousa Real (PAN), dedicando o seu discurso às
mulheres para salientar muitas das desigualdades persistentes 48 anos após a
Revolução, como o facto de as mulheres terem de trabalhar mais 51 dias para
ganharem o mesmo que os homens, disse que “Abril ainda não tem rosto de mulher”.
E lamentou que seja preciso esperar até 2052 para haver igualdade salarial
entre géneros e que sejam as mulheres as mais afetadas pela pobreza. Isto, além
de Portugal “ter uma justiça lenta” em que as mulheres “acabam a perder a
própria vida” à espera da resolução de problemas de violência, havendo prazos
de prescrição para os crimes sexuais que não têm em conta os tempos necessários
para lidar com os traumas. Mais apontou o sexismo como “violação dos direitos
humanos. E, lembrando Pintasilgo, frisou que no Parlamento há 84 mulheres em
230 deputados e que Portugal ainda não teve uma mulher na chefia do Estado.
José
Soeiro (BE) falou de “um punhado de mulheres”
que saíram da cama às 4 da manhã para virem limpar a Assembleia da República
para que esta sessão acontecesse, para que o hemiciclo estivesse pronto para a
solenidade. E, como estas, há centenas de pessoas nos bastidores da democracia,
que ninguém vê. Ganham “700 e poucos euros”. É quanto “ganha quem limpa o mundo
e o Parlamento”. Num país de salários baixos, a elite dos gestores das 15
maiores empresas aumentou em 90% o seu rendimento no ano passado”, denunciou.
E,
mencionando a epígrafe das “Novas Cartas
Portuguesas”, das Três Marias, publicado em abril de 1972, recordou que, no
país da guerra colonial e da pobreza, em que uma mulher tinha de pedir
autorização ao marido para ir ao estrangeiro, o livro não durou mais de três
dias nas bancas, o que provocou ao grupo parlamentar do Chega sorrisos,
incluindo Rita Matias. Mas Soeiro frisou que “estamos em 2022 e não estamos
satisfeitos”, pois “não queremos ter só mais tempo de democracia, queremos ter
mais democracia” e “falta-nos ainda quase tudo”, porque “o futuro não há de ser
o passado, nem a perpétua repetição do presente”. Há que fazer “outro tempo”.
Paula
Santos (PCP), o rosto e a voz nestes dias a
justificar as posições comunistas sobre a Guerra na Ucrânia, levou a dita
guerra à tribuna para se queixar do clima de “imposição de pensamento único” e de
“silenciamento” das posições comunistas. Atacou “o descarado
aproveitamento a guerra e das sanções para acumulação e lucros” e criticou “o
Governo PS e os partidos à sua direita por insistirem em impor aos
trabalhadores e ao povo que paguem a guerra”. Mas, sobretudo, alertou para o
perigo do que considera “o levantamento de novas censuras” e condenou os
ataques a “comunistas e outros democratas visando silenciar a sua intervenção”.
Bernardo
Blanco (IL) começou por dizer que, “antes do 25
de Abril, tivemos quase 50 anos de arrepiante silêncio” e que “Portugal foi um
país fantoche controlado por uma mão cerrada”. E, perguntando como é que isto
sucedeu e como é que grande parte dos portugueses não quis saber, citou
Fernando Pessoa, que declarou:
“Sim,
isto é um Estado Novo, pois é um estado de coisas que nunca antes se viu”.
Para o
deputado, “o 25 de Abril é o dia em que os portugueses quiseram saber” e “é
este espírito que tem de voltar com prontidão”. Fazendo o seu diagnóstico do
país “economicamente estagnado, socialmente hipnotizado e politicamente
desligado” apresentou a receita: “Temos
de romper com o que o Estado Novo deixou e mudar o poucochinho e o receio, o
respeitinho à autoridade, o desinteresse e a apatia”. Declarou que “falta a
Portugal o inconformismo de Abril para romper a estagnação”. E, sobre a guerra
que completou ontem dois meses, avisou:
“Como
Abril nos demonstrou e a guerra na Ucrânia nos confirma, a democracia é difícil
de conquistar, mas fácil de perder”.
André
Ventura (Chega) apelou a Marcelo, lembrando
que foram adversários nas presidenciais de 2021: “Não condecore aqueles que torturaram, mataram e expropriaram em
Portugal”. Segundo o deputado, “não podemos ter entre os condecorados
pessoas que mataram bebés, que destruíram famílias e a economia portuguesa”. Aludia
à polémica das condecorações que o Presidente da República quer dar até aos 50
anos do 25 de Abril em que inclui os membros da Junta de Salvação Nacional,
entre os quais Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves e Spinola. “Quem cometeu atos
terroristas, quem conduziu expropriações não pode ser um herói”, disse
Ventura, para quem “não teria havido 25
de abril se não tivesse havido 25 de novembro” (Disparate!).
Depois,
salientou o que falhou nos 48 anos de democracia: “falhámos na justiça que
destruímos, no império que se dissolveu e deixou as famílias à sua sorte; falhámos
aos pensionistas e reformados – estes cravos de nada valem para essas pessoas
porque para irem ao supermercado têm de usar as suas pensões. E “falhámos na
reconciliação”, vincou Ventura, para quem é preciso recordar todas as “vítimas
de expropriação”, os retornados e os ex-combatentes, “alguns deles a viver na
rua”.
E fez
referência ao ex-ministro das Finanças, João Leão, embora sem o nomear, mas
falando de ministros que saem do Governo para institutos que financiaram.
Rui
Rio (PSD) disse que este dia não pode ser,
tantos anos depois, mero repositório de afirmações laudatórias mil vezes
repetidas. Defender os valores de Abril “é, antes do mais, ter a coragem e a
frontalidade para apontar o que com o tempo se foi degradando e, dessa forma,
enfraquecendo os principais propósitos” da Revolução. Impõe-se “um momento de
autocrítica sério e realista do trajeto que temos seguido” porque “ficar pelo
simples elogio do passado é objetivamente renunciar ao futuro”. De facto, a
maioria do eleitorado valoriza mais “a promessa fácil da benesse imediata” que “a
realização das reformas que preparam o seu futuro”. E declarou:
“Ao
cabo de 48 anos, esse descrédito e o descontentamento popular que lhe está
associado foram-se transformando nos principais suportes de novas forças
extremistas, que, com a sua tradicional demagogia, procuram saciar os impulsos
emotivos de quem está mais fragilizado”.
Para
Rio, a solução para travar os extremismos absurdos não está em “absurdo ‘cordões
sanitários’, nem na desqualificação do voto de quem neles aposta”, mas “em nós
próprios”.
Depois,
reapresentou o que julga prioritário: alteração do sistema eleitoral, revisão
constitucional; reforma da Justiça; descentralização; lei dos partidos
políticos e lógica de funcionamento, entre outros, incluindo “uma atitude
política de firme combate à corrupção”. Isto porque, defende, “se queremos um Portugal virado para o
futuro, então teremos de ter o rasgo de fazer diferente”.
Pedro
Delgado Alves (PS) lembrou que esta é a primeira
celebração abrilina sem o ex-Presidente Sampaio, um dos líderes da revolta
estudantil de 1962, um “homem livre antes de a liberdade raiar”. O deputado,
que fez o discurso de defesa da conciliação entre todas as correntes da
democracia, quis “homenagear todos os que desde a década de 20 – republicanos,
anarquistas, comunistas, socialistas, todos os democratas – mantiveram acesa a
chama da esperança de um Portugal livre, desamordaçado como Mário Soares ajudou
a concretizar”. E disse que é preciso “honrar os que na
madrugada decisiva quebraram os grilhões” e lidar com as divisões como lidaram
os pais da democracia, pois “honrar Abril é também não esquecer que as
contradições que então se enfrentaram foram resolvidas pelos contendores de
então”. Há que não errar hoje “onde Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Eanes
e Melo Antunes não falharam”.
Delgado
Alves enunciou algumas das conquistas da democracia, como o serviço nacional de
saúde, a escola pública, a liberdade religiosa e a integração europeia. E,
sobretudo, apelou à convivência e conciliação democráticas “dando voz a todos
os portugueses sem exclusões divergindo sem atacar, criticando sem fulanizar”.
***
Augusto
Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, começou por dizer que esta
celebração do 25 de Abril “ocorre num contexto europeu e internacional particularmente
dramático”, pois “a guerra desencadeada na Ucrânia constitui a mais grave
ameaça, em décadas, à segurança europeia e à paz mundial”. A par disso, referiu
que, “em tempos de fechamento e ódio, a abertura aos outros de um país como o
nosso é um bem precioso que devemos acarinhar”.
Disse
que falta “evocar o elo essencial entre a democracia e as comunidades, entre as
comunidades e a democracia” e que “várias das portas que Abril abriu foram
abertas pelos imigrantes”. Exortou à que julga ser a única palavra para “nomear
o fundamento desta política”, “a palavra democrática por excelência:
cidadania”. Lembrou que o número dos que votaram nos círculos da emigração nas últimas
eleições foi “seis vezes superior” ao registado nas de 2015 e que vai continuar
a aumentar, assim nos aproximando da ambição de qualquer democracia, que é
tratar por igual todas as pessoas como cidadãos, quer dizer, sujeitos do seu
destino”.
Frisando
que, “ao contrário da ditadura, a democracia não esconde os problemas”,
observou que “foi o 25 de Abril que investiu os portugueses residentes no
estrangeiro como cidadãos de corpo inteiro”, acrescentando que “merecem ser
finalmente tema principal do discurso de um presidente do Parlamento na sessão
solene comemorativa da libertação”. E terminou agradecendo “do fundo do
coração” aos capitães de Abril por terem “iniciado o movimento que permitiu a
Portugal construir uma democracia onde cabem todos os portugueses”.
E o Presidente da República começou com uma referência a Sampaio, a que
apôs o agradecimento aos capitães de Abril. Com efeito, “pense-se o que se pensar do que foram antes e depois desse gesto,
ele foi único, singular e decisivo”, pelo que “não há como esquecê-lo na escrita ou
reescrita da Historia”. Porém, dedicou o seu discurso deste
ano à defesa das Forças Armadas (FA),
tarefa que não é dum Presidente, nem dum Parlamento, nem dum Governo, mas “tem
de ser de todos e exige um consenso nacional”. E apelou: “É urgente essa vontade popular constante e
firme”.
Defendendo que o regresso da guerra à Europa obriga a
que se volte a olhar para as FA, disse que, “nestes tempos em que a guerra na Europa entra nas nossas casas,
falar das Forças Armadas é falar daquilo que, sendo passado, é muito presente e
futuro”. E o comandante supremo das FA fez questão de lembrar o papel dos
militares na proteção civil, seja no combate aos incêndios seja na organização
da vacinação. “Não são
os únicos, mas são sempre dos fundamentais”, prosseguiu Marcelo, anunciando
que as FA “ainda querem dar formação
profissional para inserção ou reinserção na sociedade”. Por tudo isso,
defendeu, é preciso valorizar os militares e dar-lhes os meios necessários.
“Não nos poderemos queixar
que um dia descubramos que estamos a exigir as nossas Forças Armadas missões
que não podem cumprir por falta de recursos”, disse Marcelo, que repetiu
“depois não nos queixemos”.
O Presidente acredita que “pode ser tão simples
mobilizar com pequenos gestos” e juntar às qualidades “excecionais” dos
militares “mais meios imprescindíveis”. Fazer isto, que requer um consenso sobre as FA como pilar da vida
coletiva é ser “patriota em liberdade e democracia”.
***
Enfim, é preciso celebrar festivamente a revolução
abrilina elegendo o 25 de Abril como data decisiva, típica e fundacional. E,
apesar de algumas derivas, não é legítimo substituir a data por outra que
agrade mais a A, B ou C. Advogar a celebração do 25 de novembro como data principal
– Chega e quejandos, muitos deles disfarçados – é tão errado como querer
celebrar, em alternativa, o 28 de setembro ou o 11 de março, ou como se os
franceses, em vez de quererem celebrar a revolução de 1789, passassem a celebrar
como festa nacional a coroação de Napoleão Bonaparte. Nem vejo com 60
manifestantes – a não ser por ignorância ou por desígnio político – ousaram
apupar Marcelo, Santos Silva, Costa e os deputados, mas aplaudir expressamente Eanes…
Porém, como entenderam em tempo – e bem – o Presidente
da República, o Parlamento e o Governo, o cinquentenário da revolução dos
cravos deve abranger todo o processo que vem a culminar nas eleições
autárquicas em dezembro de 1976, tendo passado por todos os atos que enformam a
democracia formal.
Quanto às insuficiências, desvios ou falhas largamente
denunciadas por alguns oradores, é preciso dizer claramente que elas não devem
impedir ou subvalorizar a celebração, nem esta as deve esquecer, encobrir ou
silenciar. E elas resolvem-se não as atirando como pedras de arremesso
partidário ou dizer que o povo falhou ou que não aprendeu, nem pretendendo ressuscitar
o regime ditatorial, mas reconhecendo-as e estabelecendo políticas públicas que
as ultrapassem de forma a melhorar a democracia e incrementar o desenvolvimento,
tão caros aos obreiros da revolução, tanto como a descolonização em nome da liberdade,
autonomia e independência dos povos.
Por fim, uma palavra sobre a verificação presidencial da
necessidade de fornecer muito mais recursos às FA. Se o tema não fosse sério, até
diria que o Presidente teria ouvido a crítica dominical mordaz de Ricardo Araújo
Pereira com o espetáculo parlamentar de Zelensky a pedir armas aos portugueses.
De facto, com FA que só dispõem praticamente da força e jeito humanos, para mais
sucessivamente desautorizadas pelos poderes, como é que auxiliaremos qualquer país
em guerra? Quem está por trás de tal desvalorização e depauperamento material e
de efetivos? Pôr as barbas de molho quando a casa do vizinho está a arder não é
boa solução estratégica e equivale a estar à espera do milagre. Mas não devíamos
ter aplaudido o apelo público dum líder estrangeiro a envio de armas, que pode
ser atendido como resposta tácita a declaração de guerra!
Todavia, o 25 de Abril merece a celebração parlamentar,
a da rua, a da cultura, a da festa.
2022.04.25
– Louro de Carvalho
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