segunda-feira, 25 de abril de 2022

Na sessão do 48.º aniversário do 25 de Abril, valores e insuficiências

 

Pela primeira vez desde o início da pandemia de covid-19, a Revolução dos Cravos foi assinalada no Parlamento sem número limitado de presentes e sem a obrigatoriedade da máscara – regra que deixou de vigorar no dia 22 –, ao invés dos dois anos anteriores, em que nesta data vigorava o estado de emergência.

Iniciada às 10 horas com o Hino Nacional, a sessão incluiu os discursos de deputados dos oito partidos com assento parlamentar, por ordem crescente de representatividade, Livre, PAN, BE, PCP, IL, Chega, PSD, PS, Presidente da Assembleia da República e Presidente da República.

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Rui Tavares (Livre) inaugurou o período das intervenções vincando que a revolução abrilina pôs termo a “décadas de compressão do potencial humano, de repressão das liberdades políticas”. E constitui “a história da liberdade e de tudo o que conseguimos falar com ela” e “a luta por garantir que toda a gente comum possa ter direito a uma vida melhor”. Foi “um dia que valeu por décadas” e, no atinente à guerra colonial e ao seu fim, “um dia que valeu por séculos”.

Enfatizou que “a luta pela liberdade e pela igualdade são a mesma luta”. De facto, amanhecemos com presos políticos, mas ao longo do dia “os presos políticos decidiram que ou saíam todos ou não saía nenhum”. E “o povo nas ruas deixou claro” que a ditadura não voltaria. Mas o 25 de Abril é “uma tarefa longa ainda a ser cumprida”.

Por seu turno, Inês Sousa Real (PAN), dedicando o seu discurso às mulheres para salientar muitas das desigualdades persistentes 48 anos após a Revolução, como o facto de as mulheres terem de trabalhar mais 51 dias para ganharem o mesmo que os homens, disse que “Abril ainda não tem rosto de mulher”. E lamentou que seja preciso esperar até 2052 para haver igualdade salarial entre géneros e que sejam as mulheres as mais afetadas pela pobreza. Isto, além de Portugal “ter uma justiça lenta” em que as mulheres “acabam a perder a própria vida” à espera da resolução de problemas de violência, havendo prazos de prescrição para os crimes sexuais que não têm em conta os tempos necessários para lidar com os traumas. Mais apontou o sexismo como “violação dos direitos humanos. E, lembrando Pintasilgo, frisou que no Parlamento há 84 mulheres em 230 deputados e que Portugal ainda não teve uma mulher na chefia do Estado.

José Soeiro (BE) falou de “um punhado de mulheres” que saíram da cama às 4 da manhã para virem limpar a Assembleia da República para que esta sessão acontecesse, para que o hemiciclo estivesse pronto para a solenidade. E, como estas, há centenas de pessoas nos bastidores da democracia, que ninguém vê. Ganham “700 e poucos euros”. É quanto “ganha quem limpa o mundo e o Parlamento”. Num país de salários baixos, a elite dos gestores das 15 maiores empresas aumentou em 90% o seu rendimento no ano passado”, denunciou.

E, mencionando a epígrafe das “Novas Cartas Portuguesas”, das Três Marias, publicado em abril de 1972, recordou que, no país da guerra colonial e da pobreza, em que uma mulher tinha de pedir autorização ao marido para ir ao estrangeiro, o livro não durou mais de três dias nas bancas, o que provocou ao grupo parlamentar do Chega sorrisos, incluindo Rita Matias. Mas Soeiro frisou que “estamos em 2022 e não estamos satisfeitos”, pois “não queremos ter só mais tempo de democracia, queremos ter mais democracia” e “falta-nos ainda quase tudo”, porque “o futuro não há de ser o passado, nem a perpétua repetição do presente”. Há que fazer “outro tempo”.

Paula Santos (PCP), o rosto e a voz nestes dias a justificar as posições comunistas sobre a Guerra na Ucrânia, levou a dita guerra à tribuna para se queixar do clima de “imposição de pensamento único” e de “silenciamento” das posições comunistas. Atacou “o descarado aproveitamento a guerra e das sanções para acumulação e lucros” e criticou “o Governo PS e os partidos à sua direita por insistirem em impor aos trabalhadores e ao povo que paguem a guerra”. Mas, sobretudo, alertou para o perigo do que considera “o levantamento de novas censuras” e condenou os ataques a “comunistas e outros democratas visando silenciar a sua intervenção”.

Bernardo Blanco (IL) começou por dizer que, “antes do 25 de Abril, tivemos quase 50 anos de arrepiante silêncio” e que “Portugal foi um país fantoche controlado por uma mão cerrada”. E, perguntando como é que isto sucedeu e como é que grande parte dos portugueses não quis saber, citou Fernando Pessoa, que declarou:

Sim, isto é um Estado Novo, pois é um estado de coisas que nunca antes se viu”.

Para o deputado, “o 25 de Abril é o dia em que os portugueses quiseram saber” e “é este espírito que tem de voltar com prontidão”. Fazendo o seu diagnóstico do país “economicamente estagnado, socialmente hipnotizado e politicamente desligado” apresentou a receita: “Temos de romper com o que o Estado Novo deixou e mudar o poucochinho e o receio, o respeitinho à autoridade, o desinteresse e a apatia”. Declarou que “falta a Portugal o inconformismo de Abril para romper a estagnação”. E, sobre a guerra que completou ontem dois meses, avisou:

Como Abril nos demonstrou e a guerra na Ucrânia nos confirma, a democracia é difícil de conquistar, mas fácil de perder”.

André Ventura (Chega) apelou a Marcelo, lembrando que foram adversários nas presidenciais de 2021: “Não condecore aqueles que torturaram, mataram e expropriaram em Portugal”. Segundo o deputado, “não podemos ter entre os condecorados pessoas que mataram bebés, que destruíram famílias e a economia portuguesa”. Aludia à polémica das condecorações que o Presidente da República quer dar até aos 50 anos do 25 de Abril em que inclui os membros da Junta de Salvação Nacional, entre os quais Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves e Spinola. Quem cometeu atos terroristas, quem conduziu expropriações não pode ser um herói”, disse Ventura, para quem “não teria havido 25 de abril se não tivesse havido 25 de novembro(Disparate!).

Depois, salientou o que falhou nos 48 anos de democracia: “falhámos na justiça que destruímos, no império que se dissolveu e deixou as famílias à sua sorte; falhámos aos pensionistas e reformados – estes cravos de nada valem para essas pessoas porque para irem ao supermercado têm de usar as suas pensões. E “falhámos na reconciliação”, vincou Ventura, para quem é preciso recordar todas as “vítimas de expropriação”, os retornados e os ex-combatentes, “alguns deles a viver na rua”.

E fez referência ao ex-ministro das Finanças, João Leão, embora sem o nomear, mas falando de ministros que saem do Governo para institutos que financiaram.

Rui Rio (PSD) disse que este dia não pode ser, tantos anos depois, mero repositório de afirmações laudatórias mil vezes repetidas. Defender os valores de Abril “é, antes do mais, ter a coragem e a frontalidade para apontar o que com o tempo se foi degradando e, dessa forma, enfraquecendo os principais propósitos” da Revolução. Impõe-se “um momento de autocrítica sério e realista do trajeto que temos seguido” porque “ficar pelo simples elogio do passado é objetivamente renunciar ao futuro”. De facto, a maioria do eleitorado valoriza mais “a promessa fácil da benesse imediata” que “a realização das reformas que preparam o seu futuro”. E declarou:

Ao cabo de 48 anos, esse descrédito e o descontentamento popular que lhe está associado foram-se transformando nos principais suportes de novas forças extremistas, que, com a sua tradicional demagogia, procuram saciar os impulsos emotivos de quem está mais fragilizado”.

Para Rio, a solução para travar os extremismos absurdos não está em “absurdo ‘cordões sanitários’, nem na desqualificação do voto de quem neles aposta”, mas “em nós próprios”.

Depois, reapresentou o que julga prioritário: alteração do sistema eleitoral, revisão constitucional; reforma da Justiça; descentralização; lei dos partidos políticos e lógica de funcionamento, entre outros, incluindo “uma atitude política de firme combate à corrupção”. Isto porque, defende, “se queremos um Portugal virado para o futuro, então teremos de ter o rasgo de fazer diferente”.

Pedro Delgado Alves (PS) lembrou que esta é a primeira celebração abrilina sem o ex-Presidente Sampaio, um dos líderes da revolta estudantil de 1962, um “homem livre antes de a liberdade raiar”. O deputado, que fez o discurso de defesa da conciliação entre todas as correntes da democracia, quis “homenagear todos os que desde a década de 20 – republicanos, anarquistas, comunistas, socialistas, todos os democratas – mantiveram acesa a chama da esperança de um Portugal livre, desamordaçado como Mário Soares ajudou a concretizar”. E disse que é preciso “honrar os que na madrugada decisiva quebraram os grilhões” e lidar com as divisões como lidaram os pais da democracia, pois “honrar Abril é também não esquecer que as contradições que então se enfrentaram foram resolvidas pelos contendores de então”. Há que não errar hoje “onde Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Eanes e Melo Antunes não falharam”.

Delgado Alves enunciou algumas das conquistas da democracia, como o serviço nacional de saúde, a escola pública, a liberdade religiosa e a integração europeia. E, sobretudo, apelou à convivência e conciliação democráticas “dando voz a todos os portugueses sem exclusões divergindo sem atacar, criticando sem fulanizar”.

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Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, começou por dizer que esta celebração do 25 de Abril “ocorre num contexto europeu e internacional particularmente dramático”, pois “a guerra desencadeada na Ucrânia constitui a mais grave ameaça, em décadas, à segurança europeia e à paz mundial”. A par disso, referiu que, “em tempos de fechamento e ódio, a abertura aos outros de um país como o nosso é um bem precioso que devemos acarinhar”.

Disse que falta “evocar o elo essencial entre a democracia e as comunidades, entre as comunidades e a democracia” e que “várias das portas que Abril abriu foram abertas pelos imigrantes”. Exortou à que julga ser a única palavra para “nomear o fundamento desta política”, “a palavra democrática por excelência: cidadania”. Lembrou que o número dos que votaram nos círculos da emigração nas últimas eleições foi “seis vezes superior” ao registado nas de 2015 e que vai continuar a aumentar, assim nos aproximando da ambição de qualquer democracia, que é tratar por igual todas as pessoas como cidadãos, quer dizer, sujeitos do seu destino”.

Frisando que, “ao contrário da ditadura, a democracia não esconde os problemas”, observou que “foi o 25 de Abril que investiu os portugueses residentes no estrangeiro como cidadãos de corpo inteiro”, acrescentando que “merecem ser finalmente tema principal do discurso de um presidente do Parlamento na sessão solene comemorativa da libertação”. E terminou agradecendo “do fundo do coração” aos capitães de Abril por terem “iniciado o movimento que permitiu a Portugal construir uma democracia onde cabem todos os portugueses”.

E o Presidente da República começou com uma referência a Sampaio, a que apôs o agradecimento aos capitães de Abril. Com efeito, “pense-se o que se pensar do que foram antes e depois desse gesto, ele foi único, singular e decisivo”, pelo que “não há como esquecê-lo na escrita ou reescrita da Historia”. Porém, dedicou o seu discurso deste ano à defesa das Forças Armadas (FA), tarefa que não é dum Presidente, nem dum Parlamento, nem dum Governo, mas “tem de ser de todos e exige um consenso nacional”. E apelou: “É urgente essa vontade popular constante e firme”.

Defendendo que o regresso da guerra à Europa obriga a que se volte a olhar para as FA, disse que, “nestes tempos em que a guerra na Europa entra nas nossas casas, falar das Forças Armadas é falar daquilo que, sendo passado, é muito presente e futuro”. E o comandante supremo das FA fez questão de lembrar o papel dos militares na proteção civil, seja no combate aos incêndios seja na organização da vacinação. Não são os únicos, mas são sempre dos fundamentais”, prosseguiu Marcelo, anunciando que as FA “ainda querem dar formação profissional para inserção ou reinserção na sociedade”. Por tudo isso, defendeu, é preciso valorizar os militares e dar-lhes os meios necessários. Não nos poderemos queixar que um dia descubramos que estamos a exigir as nossas Forças Armadas missões que não podem cumprir por falta de recursos”, disse Marcelo, que repetiu “depois não nos queixemos”.

O Presidente acredita que “pode ser tão simples mobilizar com pequenos gestos” e juntar às qualidades “excecionais” dos militares “mais meios imprescindíveis”. Fazer isto, que requer um consenso sobre as FA como pilar da vida coletiva é ser “patriota em liberdade e democracia”.

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Enfim, é preciso celebrar festivamente a revolução abrilina elegendo o 25 de Abril como data decisiva, típica e fundacional. E, apesar de algumas derivas, não é legítimo substituir a data por outra que agrade mais a A, B ou C. Advogar a celebração do 25 de novembro como data principal – Chega e quejandos, muitos deles disfarçados – é tão errado como querer celebrar, em alternativa, o 28 de setembro ou o 11 de março, ou como se os franceses, em vez de quererem celebrar a revolução de 1789, passassem a celebrar como festa nacional a coroação de Napoleão Bonaparte. Nem vejo com 60 manifestantes – a não ser por ignorância ou por desígnio político – ousaram apupar Marcelo, Santos Silva, Costa e os deputados, mas aplaudir expressamente Eanes…

Porém, como entenderam em tempo – e bem – o Presidente da República, o Parlamento e o Governo, o cinquentenário da revolução dos cravos deve abranger todo o processo que vem a culminar nas eleições autárquicas em dezembro de 1976, tendo passado por todos os atos que enformam a democracia formal.

Quanto às insuficiências, desvios ou falhas largamente denunciadas por alguns oradores, é preciso dizer claramente que elas não devem impedir ou subvalorizar a celebração, nem esta as deve esquecer, encobrir ou silenciar. E elas resolvem-se não as atirando como pedras de arremesso partidário ou dizer que o povo falhou ou que não aprendeu, nem pretendendo ressuscitar o regime ditatorial, mas reconhecendo-as e estabelecendo políticas públicas que as ultrapassem de forma a melhorar a democracia e incrementar o desenvolvimento, tão caros aos obreiros da revolução, tanto como a descolonização em nome da liberdade, autonomia e independência dos povos.

Por fim, uma palavra sobre a verificação presidencial da necessidade de fornecer muito mais recursos às FA. Se o tema não fosse sério, até diria que o Presidente teria ouvido a crítica dominical mordaz de Ricardo Araújo Pereira com o espetáculo parlamentar de Zelensky a pedir armas aos portugueses. De facto, com FA que só dispõem praticamente da força e jeito humanos, para mais sucessivamente desautorizadas pelos poderes, como é que auxiliaremos qualquer país em guerra? Quem está por trás de tal desvalorização e depauperamento material e de efetivos? Pôr as barbas de molho quando a casa do vizinho está a arder não é boa solução estratégica e equivale a estar à espera do milagre. Mas não devíamos ter aplaudido o apelo público dum líder estrangeiro a envio de armas, que pode ser atendido como resposta tácita a declaração de guerra!

Todavia, o 25 de Abril merece a celebração parlamentar, a da rua, a da cultura, a da festa.

2022.04.25 – Louro de Carvalho

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