segunda-feira, 3 de outubro de 2022

É cada vez mais necessário pedir o aumento da fé

 

Face à onda de crime que a denúncia – furtiva ou sistemática – tem posto a nu, sobretudo no seio da Igreja, além da condenação inequívoca dos erros e da preservação da dignidade da pessoa, seja ela quem for (mesmo do prevaricador, a quem deve ser dado o justo castigo, mas não a excomunhão), importa pedir ao Senhor que nos aumente a fé, para que ela não definhe e as pessoas não sejam empecilho ao advento do Reino de Deus, nem os promotores do Reino sejam generalizadamente descredibilizados. Ninguém está imune ao pecado e ninguém é irrecuperável.

A Palavra de Deus, proclamada e meditada no 27.º domingo do Tempo Comum no Ano C, que inspira vários temas, como a fé, a salvação, a radicalidade do “caminho do Reino de Deus”, etc., traz ao de cima a reflexão sobre a atitude correta que o homem deve assumir perante Deus.

Em primeira leitura é-nos oferecido um texto de Habacuc, de cuja pessoa nada se sabe: nem o lugar de nascimento, nem a família, nem o período em que viveu. Todavia, esta falta de dados não impede de ver no livro de Habacuc alguém profundamente enraizado na História do seu tempo e em toda a problemática da ação de Deus na História.

A menção dos caldeus, “aquele povo feroz e impetuoso / que se espalha pela superfície da terra / para se apoderar de habitações que não são suas” (Hab 1,6), leva a colocar a profecia de Habacuc na época em que os Babilónios começaram a dominar todas as regiões do Próximo Oriente Antigo (final do século VII a.C.) e impuseram o jugo a Judá. Era no tempo do rei Joaquim (609-597 a.C.) ou no período a seguir a 597, data da primeira deportação para a Babilónia.

Muitos elementos cultuais presentes no livro (o mais claro de todos é o capítulo 3) levam alguns comentadores a relacioná-lo com as liturgias penitenciais de tempos posteriores. Porém, importa discernir se os oráculos proféticos foram retocados para uso litúrgico ou se os elementos da liturgia foram reelaborados em forma profética. Como essa distinção não é fácil, mantém-se no início do domínio babilónico a provável composição do livro.

O livro está estruturado em três partes: diálogo entre o profeta e Deus (1,2-2,4), com duas queixas do profeta (1,2-4 e 1,12-17) e duas respostas de Deus (1,5-11 e 2,1-4); maldições contra o opressor (2,5-20), com cinco imprecações condenatórias de todos os crimes cometidos pela tirania dos poderosos; e um salmo (3,1-19), a celebrar o triunfo definitivo de Deus na Natureza e na História. A primeira das queixas do profeta coloca o problema da justiça: “porque triunfam os ímpios?” A primeira resposta divina não satisfaz o profeta, pois os babilónios acabam por se exceder e são mais cruéis do que os outros. Por isso, o profeta queixa-se de novo, não compreendendo como Deus olha silencioso para os traidores. E a segunda resposta aponta para o cumprimento da palavra divina: o profeta recebe a palavra e aguarda o seu cumprimento.

Em termos teológicos, o grande tema do livro é a justiça divina. Deus é o Senhor da História, mas a sua soberania de Deus só se entende na fé. A sucessão de crimes e violências que emolduram os impérios leva o profeta a interrogar-se diante de Deus, esperando o castigo dos opressores. Mas o castigo violento gera violência e o problema insolúvel. O profeta supera a questão, convicto de que Deus é a única fonte de fortaleza e todo o império opressor acabará por ser punido, mesmo que não se compreendam as circunstâncias históricas.

O trecho assumido para a liturgia desta dominga (Hab 1,2-3; 2,2-4) insere-se na primeira parte acima descrita. O rei de Judá é Joaquim (609-598 a.C.), um rei fraco e incompetente, que explora o povo, deixa aumentar as injustiças e cavar um fosso cada vez maior entre ricos e pobres. A par disso, desenvolve uma aventureirista política de alianças com as superpotências coevas. Apesar das simpatias de Joaquim pelo Egito, Judá sente o peso do imperialismo babilónio e vê-se coagido a pesado tributo a Nabucodonosor. Prepara-se a queda de Jerusalém nas mãos dos babilónios, a morte de Joaquim, a deportação de Joaquin, seu filho e sucessor (que reinou três meses), e o exílio de parte da classe dirigente de Judá (primeira deportação: 597 a.C.).

O texto em referência começa pela queixa de Habacuc: “Até quando, Senhor, clamarei sem que me escutes? Até quando gritarei ‘violência’, sem que me salves?” O profeta, sentindo-se interpelado pelo ambiente que o rodeia, grita a sua impaciência e a do seu Povo e questiona a complacência de Deus para com o pecado, pois não concebe que Deus, o libertador e salvador na história do Povo, que Se proclama fiel aos seus compromissos para com os homens, não ponha fim às grosseiras violações do seu plano para o mundo. O profeta não se cinge a escutar a Palavra do Senhor e a transmiti-la, mas toma a iniciativa de interpelar Deus, exigindo respostas. E, qual sentinela vigilante, fica à espera de que Deus Se justifique. Por sua vez, Deus responde com uma mensagem de esperança, pois não ficará indiferente ante o mal que desfeia o mundo, antes está para vir o momento da vingança divina, restando ao homem esperar com paciência o tempo da ação de Deus, pela qual o orgulhoso e o prepotente receberão o castigo e o justo triunfará.

Enfim, ante a injustiça e a opressão, o Senhor, que parece indiferente e ausente, encontrará o momento oportuno para intervir, punindo o imperialismo, o orgulho, a injustiça e a opressão.

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O texto lucano do Evangelho (Lc 17,5-10) mantém-nos nos passos do caminho de Jerusalém com as lições que preparam os discípulos para o repto de compreender e testemunhar o Reino. Porém, desta feita, junta-se um dito de Jesus sobre a fé e uma parábola que insta à humildade na realidade da vida. Jesus avisara os discípulos da dificuldade de percorrer o caminho do Reino (“entrar pela porta estreita”; humildade e gratuitidade; amar mais o Reino do que a família, os interesses os bens próprios; perdão como atitude permanente; …). Admiravelmente, neste passo, são os discípulos que, preocupados com a exigência do “Reino”, pedem mais “fé”.

O dito desta passagem evangélica sobre a fé, que aparece num teor um pouco diferente em Mt 17,20 (há um dito análogo em Mc 11,23 e Mt 21,21, acerca da figueira seca), serve para Lucas manifestar a preocupação dos discípulos com a dificuldade em percorrer o caminho do Reino.

Depois das exigências que Jesus lhes apresentou, quanto ao caminho que devem percorrer, a reação dos discípulos foi: “aumenta-nos a fé”. No Novo Testamento, em geral, e nos evangelhos sinóticos, em particular, a fé não é, primordialmente, a adesão a dogmas ou a verdades abstratas sobre Deus, mas a adesão à pessoa de Jesus e ao seu programa do Reino. Porém, os discípulos têm consciência de que não é cómoda e fácil tal adesão, pois requer um compromisso radical, a luta pela vitória sobre a própria fragilidade. Portanto, pedir a Jesus que lhes aumente a fé significa, para os discípulos, pedir o aumento da coragem da opção pelo Reino e pela sua exigência.

Jesus aproveita para recordar aos discípulos o resultado da fé. A imagem a que recorreu (a ordem à amoreira para se arrancar da terra e ir plantar-se ela própria no mar) mostra que tudo é possível com a fé, ou seja, quando o discípulo adere a Jesus com coragem e determinação, a sua pessoa fica totalmente transformada e, por consequência, gera a transformação do mundo que a rodeia. Aderir ao Reino com radicalidade é ter na mão a chave da mudança da história, mesmo que isso pareça impossível. Quem adere ao Reino a sério é capaz de autênticos “milagres”.

Em seguida, o evangelista descreve a atitude que o homem deve assumir ante Deus. Os fariseus estavam convictos de que bastava cumprir os mandamentos da Torah para alcançar a salvação: se o homem cumprisse as regras, Deus não teria outro remédio senão salvá-lo. A salvação dependia, nesta perspetiva, dos méritos do homem. Deus seria apenas o notário dos factos que o homem desejoso da salvação protagoniza. Ora, Jesus coloca as coisas numa dimensão diferente. A atitude do discípulo ante Deus não deve ser a de quem sente que fez tudo muito bem feito e que, por isso, Deus lhe deve o équo favor, mas a de quem desempenha o seu múnus com humildade, sentindo-se um servo que apenas fez o que lhe competia e que está sempre disponível para mais e melhor.

Isto não quer dizer que os senhores possam explorar até exaustão os seus servidores (Respeite-se imperativamente a dignidade e compreendam-se as limitações de cada pessoa!), mas que o servidor do Reino deve estar disponível para servir sempre e em todo o lugar aonde seja chamado.

O que Jesus pede no Evangelho desta dominga é que percorramos, com empenho e coragem, o caminho do Reino. E, cumprida a sua missão, resta ao discípulo sentir-se servo humilde de Deus, agradecer-Lhe pelos seus dons e entregar-se confiada e humildemente nas suas mãos.

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Também o texto escolhido para 2.ª leitura (2Tm 1,6-8.13-14) constitui um acervo de conselhos pastorais, tal como o da 1.ª Carta a Timóteo, grande colaborador e sucessor de Paulo na animação das Igrejas da Ásia, ele que acompanhou o apóstolo nas suas viagens missionárias e que, segundo a tradição, foi bispo de Éfeso.

Tal como na primeira, também na 2.ª Carta a Timóteo é duvidoso que seja Paulo o autor literal do texto. A linguagem é diferente da utilizada habitualmente pelo apóstolo, tal como o estilo, as doutrinas e, sobretudo, o contexto eclesial que nos situa mais no final do século I ou nos princípios do século II do que da época de Paulo. Em todo o caso, quem se apresenta na pele de Paulo está na prisão e pressente a proximidade da morte. Exorta insistentemente Timóteo a perseverar no ministério e a conservar a sã doutrina. É uma espécie de testamento, em que Timóteo, em representação de todos os animadores das comunidades cristãs, é instado a manter-se fiel ao ministério e à doutrina recebidos dos apóstolos. Recomenda a Timóteo que reanime o carisma que recebeu quando Paulo e os anciãos lhe impuseram as mãos, consagrando-o para o ministério apostólico. Mesmo tendo já sido tomada a opção de doar a vida a Deus e aos irmãos, essa decisão fundamental precisa, cada dia, de ser confirmada e aprofundada, pois as desilusões e os fracassos, a monotonia e a rotina, a fragilidade humana e a tentação do comodismo esfriam o entusiasmo.

Na sequência, são recordadas a Timóteo três das qualidades de base que devem estar sempre presentes: a fortaleza ante as dificuldades, o amor que o impele à entrega total a Cristo e aos homens e a prudência (ou moderação) adequada à animação e à orientação da comunidade.

Num segundo momento, Timóteo é exortado a conservar-se fiel à sã doutrina recebida de Paulo, pois, sobretudo em tempo de apostasia, de heresia e de pecado nefando, propício a contaminar a comunidade, a animador comunitário tem o dever de ensinar a sã doutrina e de defender a comunidade de tudo o que a afasta da verdade do Evangelho de Jesus, fielmente transmitido pelo testemunho apostólico. E, por sua vez, o crente deve implorar o aumento do dom da fé, que leve a resistir a todo o género de mal e de tibieza, deve apoiar a sua fé pessoal na fé comunitária e estar disponível para ajudar a reforçar a fé de todos, pois a fé é dom e fruto de esforço.

2022.10.02 – Louro de Carvalho

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