quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Annie Ernaux vence Prémio Nobel da Literatura 2022

 

 

A romancista francesa Annie Ernaux, de 82 anos, autora de Os anos e O acontecimento, ambos publicados, neste ano, em Portugal, pelo grupo Porto Editora, foi laureada com o Prémio Nobel da Literatura de 2022, “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, estranhamentos e constrangimentos coletivos da memória pessoal”, como anunciou a Academia Sueca ao final da manhã do dia 6 de outubro, em Estocolmo.

Ernaux é a 17.ª mulher a receber o Nobel da Literatura, que foi instituído em 1901 e cujo vencedor – escolhido, de acordo com a vontade de Alfred Nobel, pela “produção no campo da literatura do trabalho mais excecional” com uma “direção ideal” – recebe um prémio monetário equivalente a aproximadamente 985 mil euros. Reagindo à atribuição, a laureada disse ao canal de televisão sueco SVT que considerava o prémio “uma grande honra” e “uma grande responsabilidade”.Parte inferior do formulário

Aquando do anúncio, a Academia informou que não tinha ainda conseguido entrar em contacto com a escritora, mas que esperava conseguir fazê-lo em breve.

Por sua vez, a romancista referiu à agência de notícias sueca TT que estivera a “trabalhar de manhã” e que “o telefone esteve sempre a tocar”, mas que não atendera. Segundo a Associated Press, foi apanhada de surpresa, tendo ficado a par da atribuição após uma chamada de um jornalista sueco. “Tem a certeza?” – questionou a escritora.  

Posteriormente, a romancista falou aos jornalistas em conferência de imprensa a partir dos escritórios da editora francesa Gallimard, que publica os seus livros desde o início da sua carreira literária, nos anos 70. “Estou muito comovida. Para mim, representa algo enorme, em nome daqueles de que provenho”, referiu, citada pelo The New York Times, aludindo à sua proveniência e meio familiar economicamente remediados. “Receber o Prémio Nobel significa, para mim, responsabilidade em continuar e em estar aberta ao curso do mundo, atenta a um desejo de paz que me guiou sempre. E falando da minha condição enquanto mulher, não me parece que nós, mulheres, tenhamos liberdades e poderes iguais [aos dos homens]”, acrescentou.

Questionada sobre as restrições ao aborto nos Estados Unidos da América (EUA), Ernaux, que publicou, em 2000, o livro O Acontecimento, escrito a partir da sua experiência na década de 1960, apontou: “Nunca imaginei que 20 anos depois [da publicação], o direito ao aborto estaria a ser posto em causa novamente”. E, inquirida sobre se o presidente francês lhe telefonou para lhe dar os parabéns, respondeu que tinha desligado o telefone.

Autora de mais de 30 trabalhos literários, Ernaux nasceu em 1940. Cresceu numa pequena aldeia na região da Normandia, no norte de França, onde os pais tinham um café e uma mercearia.

Na sua obra, que tem como principal inspiração a sua própria vida, a romancista “examina, consistentemente e de diferentes ângulos, a vida marcada por fortes disparidades em relação ao género, língua e classe”. Escrever é, para a autora, um ato político, que serve para abrir os olhos dos leitores para a “desigualdade social”. “Acredita manifestamente na libertação da força da escrita. O seu trabalho é intransigente e escrito numa linguagem simples, limada. E, quando, com grande coragem e acuidade clínica, revela a agonia da experiência da classe, descrevendo a vergonha, humilhação, inveja ou incapacidade de ver quem somos, alcançou alguma coisa admirável e duradoura”, referiu Anders Olsson, presidente do Comité do Nobel, vincando o seu “longo e difícil” caminho até à carreira literária.

Interpelado sobre se a Academia Sueca pretendia enviar algum tipo de mensagem com a escolha de uma autora que aborda questões sociais nas suas obras, Anders Olsson, que fez a apresentação da laureada e respondeu às perguntas dos jornalistas presentes em Estocolmo, declarou que o Comité se concentra na “literatura e na qualidade literária”, não tendo nenhuma mensagem para o mundo”. Não obstante, o Comité considera importante que “o trabalho do laureado tenha uma consequência universal, que consiga chegar a toda a gente” e, nesse aspeto, “a mensagem é que isto é literatura para toda a gente”. E, sobre o facto de o galardão não ter sido atribuído a um escritor não-europeu, Olsson explicou que o júri segue diferentes critérios e que não é possível satisfazê-los a todos. “Podemos apenas assegurar-nos de que aquilo que procuramos é qualidade literária”, afirmou, em resposta a uma pergunta do jornalista da Associated Press.

Tendo, em 2021, sido galardoado Abdulrazak Gurnah, escritor (romancista e contista) não-europeu (nascido na Tanzânia, mas residente no Reino Unido desde os anos 60) – pela “capacidade de mergulhar de forma intransigente, mas também compassiva, nos efeitos do colonialismo e nos destinos dos refugiados que estão num abismo, divididos entre culturas e continentes”, pela “dedicação à verdade” e pela “aversão às simplificações –, o presidente do Comité do Nobel salientou que, neste ano, o prémio foi atribuído a uma mulher. Houve, de facto, poucas mulheres laureadas no passado. Por isso, tem-se tentado alargar o espetro do Prémio Nobel, mas o foco “deve ser a qualidade literária” – precisou.

A última mulher a receber o prémio foi a poeta norte-americana Louise Glück, em 2020. Nos últimos anos, o Comité tem procurado incluir mais mulheres, que raramente eram contempladas, atribuindo o Nobel da Literatura a uma mulher de dois em dois anos desde 2013, quando foi galardoada a canadiana lice Munro.

O presidente francês, Emmanuel Macron, congratulou Annie Ernaux pela sua distinção com o Prémio Nobel da Literatura. Em reação à atribuição do prémio, através de uma nota difundida nas redes sociais, Macron escreveu: Annie Ernaux tem vindo a escrever, ao longo de 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso país. A sua voz é a da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século. Ela junta-se, graças a esta consagração solene, ao grande círculo de vencedores do Nobel da nossa literatura francesa.”

Por seu turno, a editora São José Sousa, da Livros do Brasil (responsável pela publicação da obra de Annie Ernaux em Portugal), encara a entrega do Prémio Nobel da Literatura à autora francesa, de 82 anos, como uma distinção “absolutamente justa” e um “reconhecimento muito merecido” a uma “escrita muito original e de coração aberto”. Para a editora, Ernaux “é uma autora que consegue pegar nas histórias mais íntimas da sua própria história para criar narrativas com universalidade, por falar de temas que são muito humanos e que, por isso, falam de todos nós.”

São José Sousa apontou que “é realmente muito original” a capacidade que Ernaux tem de “pegar nos acontecimentos mais pequeninos da vida, na especificidade de cada momento da sua história, e procurar esses reflexos no que contam sobre o país e o momento e o mundo em que vive”. E recordou que a “autoficção”, género literário que mistura ficção com relatos pessoais e biográficos, “tem vindo a ser muito trabalhada nos últimos anos”, mas, se “há alguns autores que se destacam nesse campo, a Annie é, sem dúvida, uma mestre a fazer a esta ponte. E é curioso que o faça “com uma escrita que é tão despida, tão direta, por vezes até um bocadinho crua, sem artifícios e sem pudores, sem necessidade de embelezar nada, porque a vida como ela é e com a simplicidade com que se pode relatá-la acaba por ganhar mais força”.

Já sobre o impacto da atribuição do Nobel na publicação de livros de Annie Ernaux em Portugal, a editora da Livros do Brasil disse não poder “especificar” se já existem obras previstas para editar ou reeditar, de entre a vasta produção literária da autora que está disponível em tradução portuguesa só em parte. Mas “a vontade é que aconteça isso mesmo”. Na verdade, como explica, “não sendo propriamente uma autora bestseller, era uma autora com um público fiel”, mas “agora, com certeza, será a oportunidade para que mais leitores a descubram.

Junta-se Ernaux ao painel dos outros 15 franceses laureados com o Nobel da Literatura (entre parêntesis, as áreas em que se distinguiram): Sully Prudhomme (1901, poesia e ensaio), Frédéric Mistral (1904, poesia e filologia), Romain Rolland (1915, romance), Anatole France (1921, romance e poesia), Henri Bergsson (1927, filosofia), Roger Martin du Gard (1937, romance), André Gide (1947 romance e ensaio), François Mauriac (1952, romance e conto), Albert Camus (1957, romance, conto, drama, filosofia e ensaio); Saint-John Perse (1960, poesia), Jean-Paul Sartre (1964, romance, filosofia, drama, crítica literária e roteiro), Claude Simon (1985, romance), Gao Xingjian (2000, romance, drama e crítica literária), Jean-Marie Gustave Le Clézio (2008, romance, conto, ensaio e tradução) e Patrik Modiano (2014, romance).

Apesar do estilo clássico, a autora autointitula-se “uma etimologista de si mesma”, mais do que uma escritora de ficção. A ambição de quebrar os padrões da ficção conduziu-a a uma tentativa de reconstituir metodicamente o seu passado, num tom autobiográfico que a Academia Sueca descreve como “uma prosa em bruto sob a forma de diário”.

Para José Mário Silva, crítico literário do Expresso, que prestou declarações à TSF, “é uma autora muito peculiar, porque escreve sobre ela própria, sobre a sua vida, sobre a sua história, como se fosse uma personagem de ficção” e “vai buscar factos reais da sua vida e transforma-os em romances”.

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É mais um motivo de congratulação e de festa para a literatura mundial num mundo tão utilitarista!

2022.10.06 – Louro de Carvalho

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