domingo, 9 de outubro de 2022

Agradecer versus mostrar-se aos sacerdotes

 

A liturgia do 28.º domingo do Tempo Comum no Ano C coloca-nos na posição de quem, tendo implorado e obtido um benefício do Senhor, mais do que observar os formalismos legais, deve pautar a vida pelo agradecimento, que é apanágio da pessoa bem formada e que é, enquanto ação de graças (Eucaristia) por toda a obra salvífica, a expressão da Igreja como comunidade diaconal, sacrificial e de comunhão, pela unidade na diversidade. A Eucaristia é a expressão da Igreja.

O trecho bíblico tomado como primeira leitura (2Rs 5,14-17) refere o episódio do sírio Naaman, leproso, para mostrar que só o Senhor pode oferecer ao homem a vida e a salvação, sem limites e sem exceções, restando-lhe acolher o dom de Deus e, grato, reconhecer em Deus o único salvador.

O texto veterotestamentário em referência situa-nos em Israel (reino do Norte), no reinado de Jorão (853-842 a.C.). Os reis de Israel – preocupados em fazer do país um estado moderno e em marcar agenda no xadrez político do antigo Médio Oriente – mantêm intercâmbio muito vivo com os povos limítrofes. Mas tal política ocasiona a invasão de deuses, de cultos e de valores estrangeiros, que ameaçam a integridade da fé javista. E, apesar de Jorão ter tirado “as estátuas que o pai erigira a Baal” (2Rs 3,2), os deuses cananeus ganham significativo protagonismo e Baal substitui Javé no coração e na vida de muitos israelitas.

Neste contexto, surge Eliseu como o grande defensor da fé javista e o continuador da obra de Elias, seu antecessor. Eliseu integrava uma comunidade de “filhos dos profetas” (2Rs 2,3; 4,1), provavelmente, um círculo profético cujos membros eram seguidores incondicionais de Javé e em quem o Povo buscava apoio, ante os abusos dos poderosos.

O capítulo 5 do 2.º Livro dos Reis, contam-nos a história do general sírio Naaman, um dos heróis da Síria, que era leproso. Sabendo, por uma serva, que em Israel havia um profeta que podia curá-lo do seu mal, veio ao encontro de Eliseu, carregado de presentes. E Eliseu mandou, apenas, que Naaman se banhasse sete vezes no rio Jordão (cf 2Rs 5,1-13). Num primeiro momento, Naaman, que esperava uma cura espetacular, fixou desiludido, até porque, na Síria, havia rios bem mais interessantes do que o Jordão, mas, a instâncias de um servo, fez o que o profeta mandara.

A passagem proclamada nesta dominga descreve a cura de Naaman e as reações dos envolvidos. Porém, mais do que fazer reportagem, os autores deuteronomistas tecem considerações teológico-catequéticas, para que os israelitas, atraídos pelo culto de Baal, redescubram as bases da sua fé.

Primeiro, deixam claro que Javé é o Senhor da vida, tem o projeto de libertação do homem e só Ele pode salvar o que parece condenado à morte. Deus pode servir-se de homens para agir no mundo, mas é só d’Ele que brotam a salvação e a vida – o que os israelitas devem reconhecer, como o estrangeiro fez.

Em seguida, mostram que a intervenção salvadora de Javé não é ação circunstancial, que resolve apenas os problemas externos, mas ação que atua a nível profundo, transformando radicalmente a vida do homem. Naaman ficou curado de uma doença física que punha em risco a sua vida, mas a intervenção de Deus saldou-se numa transformação espiritual que fez do sírio um homem novo e o levou a deixar os ídolos para servir o verdadeiro e único Deus. Por isso, afirmou que “não há outro Deus em toda a terra senão o de Israel” e garantiu que jamais iria “oferecer holocausto ou sacrifício a quaisquer outros deuses, mas apenas ao Senhor, Deus de Israel”.

Por outro lado, clarificam que a oferta da salvação não é dom exclusivo de alguns, reservado a privilegiados ou a uma raça especial. Naaman é sírio e, como tal, inimigo tradicional do Povo de Deus. Mas Deus não faz distinção de pessoas e oferece a sua graça a todos. O que é decisivo é acolher o dom de Deus e aceitar deixar-se transformar por Ele.

Também a catequese deuteronomista realça a gratidão de Naaman. Liberto das maleitas que o afrontavam, quis agradecer a cura cumulando de presentes Eliseu. Mas o profeta ajudou-o a ver claro que não era a um homem que tinha de agradecer o dom da vida, mas a Deus. E a sua gratidão manifestou-se na adesão total a Javé. É esta a resposta que Deus espera do homem.

Por último, sobressai a atitude de Eliseu de nunca ter vontade de se aproveitar da intervenção de Deus em favor de Naaman para benefício próprio. Ao recusar aceitar qualquer presente de Naaman, dá a entender que não é a ele mas a Javé que o general sírio deve agradecer a cura. Haverá aqui uma implícita denúncia irónica da postura dos líderes religiosos de então, que usavam Deus em benefício dos seus esquemas.

O Evangelho (Lc 17,11-19) apresenta-nos um grupo de leprosos que se encontram com Jesus, em quem descobrem a misericórdia e o amor de Deus. Representam toda a humanidade, envolta na miséria e no sofrimento, sobre quem Deus derrama a bondade, o amor, a salvação. Também aqui se releva a resposta do homem ao dom de Deus: todos os que experimentam a salvação que Deus oferece devem reconhecer o dom, acolhê-lo e manifestar a Deus a sua gratidão.

Continuamos no caminho de Jerusalém, em que os discípulos progridem na aprendizagem e na interiorização dos valores e da realidade do Reino de Deus. No caminho de Jesus e de discípulos, surgem dez leprosos. O leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído (do excomungado). Além de causar repugnância pela aparência e de infundir medo de contágio, o leproso é um impuro ritual (cf Lv 13-14), a quem a teologia atribuía pecados especialmente gravosos (a lepra era o castigo de Deus para tais pecados). Por isso, o leproso não podia entrar na cidade de Jerusalém, para não a despurificar. Devia afastar-se de qualquer convívio humano a fim de não contaminar os outros com a sua impureza física e religiosa. Em caso de cura, devia apresentar-se ao sacerdote, para que ele, tal como declarara a lepra, comprovasse a cura e lhe permitisse a reintegração na vida normal (cf Lv 14). Podia, depois, retomar a participação nas celebrações cultuais.

Um dos leprosos (o que desempenha o papel principal no episódio) é samaritano. Os samaritanos eram desprezados pelos judeus, por causa do seu sincretismo religioso. A desconfiança dos judeus sobre os samaritanos começou quando, em 721 a.C. (após a queda do reino do Norte), os colonos assírios invadiram a Samaria e se misturaram com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram a paganizar-se. Após o regresso do exílio da Babilónia, os habitantes de Jerusalém recusaram a ajuda dos samaritanos na reconstrução do Templo e evitaram os contactos com essa “raça misturada com pagãos”. A construção do santuário samaritano no monte Garizim consumou a separação e, na ótica judaica, lançou, em definitivo, os samaritanos nos caminhos da infidelidade a Javé. Picardias mútuas nos séculos subsequentes consolidaram a inimizade entre judeus e samaritanos. Na época de Jesus, a relação era de grande hostilidade.

O episódio dos dez leprosos (exclusivo de Lucas) insere-se na ótica teológica de um evangelho cujo objetivo é apresentar Jesus como o Deus que Se fez pessoa para trazer, com gestos concretos, a salvação/libertação a todos os homens, em especial aos oprimidos e marginalizados.

Lucas mostra que Deus tem um desígnio de vida e de libertação para todos os homens. O número 10 tem o significado simbólico de totalidade (o judaísmo julgava necessária a presença de, pelo menos, 10 homens para haver oração comunitária, porque o “dez” representa a totalidade da comunidade. Ora, a presença de um samaritano no grupo insinua que a salvação oferecida por Deus, em Jesus, não se destina só à comunidade do Povo eleito, mas a todos os homens de todos os povos, mesmo aos que o judaísmo considerava arredados da salvação.

Porém, o acento do episódio – mais do que na cura – é colocado no facto de só um dos dez curados ter voltado para agradecer a Jesus e no facto de este ser um samaritano. Lucas está empenhado em mostrar que quem recebe a salvação deve reconhecer o dom de Deus e deve ser grato. E avisa que, frequentemente, são os hereges, os marginais, os desprezados, os que a teologia considera à margem da salvação, que estão mais atentos ao dom de Deus. Há, aqui, alusão à autossuficiência dos judeus que, por se sentirem o Povo eleito, achavam natural que Deus os cumulasse de dons, mas não reconheceram a salvação que, por Jesus, Deus lhes ofereceu. É premente, aqui, o apelo aos discípulos a que não ignorem o dom de Deus e Lhe respondam com a gratidão e com fé, entendida esta como adesão à pessoa de Jesus e à sua proposta de salvação. Sobressai, aqui, a crítica à hipervalorização dos formalismos rituais e sociais (como a apresentação aos sacerdotes), face à necessidade da valorização do encontro e da atitude de gratidão que uma relação intimista consolidada impõe – mais percetível por parte dos estranhos, que não se julgam com direitos aos benefícios, do que por parte dos da casa, que se julgam com direito a tudo, nada sobrando para os outros, ainda que mais necessitados.

Por fim, a segunda leitura (2Tm 2,8-13) define a existência cristã como identificação com Cristo. Quem acolhe o dom de Deus torna-se discípulo: identifica-se com Cristo, vive no amor e na entrega aos irmãos e chega à vida nova da ressurreição.

Depois de exortar Timóteo à dedicação total ao ministério, o autor epistolográfico apresenta o motivo supremo em que radica tal entrega: o exemplo de Cristo, que chegou à glória pelo caminho da cruz e do dom da vida. O próprio Paulo, porque seguiu esse duro caminho, está preso, mas não preocupado, pois o essencial é que a Palavra de Deus continue a transformar o mundo. Aliás, é preciso que alguns entreguem a própria vida para que a libertação em Jesus chegue a todos os homens, valendo a pena sofrer, a fim de que tal objetivo se concretize.

O parágrafo final corrobora as afirmações precedentes. O cristão é chamado a identificar-se com Cristo na entrega da vida e no serviço aos irmãos. Essa entrega não termina no fracasso, mas – a exemplo de Cristo – na ressurreição, na vida nova. E o cristão não pode recusar fazer da vida um dom de amor, se quiser identificar-se com Cristo. Cristo tem de ser o fulcro da sua vida e o protótipo do seu agir.

2022.10.09 – Louro de Carvalho

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