domingo, 16 de outubro de 2022

Fé, Sagrada Escritura e Oração – uma trilogia para a vida cristã

 

A vida cristã – quer na perspetiva pessoal, que não pode ser individualista, quer na perspetiva comunitária (eclesial), que não pode ser gregária – é enformada pela fé, que faz da pessoa de Jesus Cristo a grande e única referência de salvação, o espelho em que podemos ver a graça de Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo. Mas esta fé estriba-se na Palavra de Deus, que, para lá de estar consignada na Bíblia, vivificada pela Tradição, precisa de ser proclamada para que a fé nasça e cresça ex auditu (a partir do ouvido) e para que provoque e alimente a oração, necessária para estabelecer e intensificar o encontro com o Deus que está próximo do seu Povo, dos seus fiéis. Reza quem tem fé e tem mais fé quem reza. Por outro lado, quem reza e tem fé, sente mais vontade de ler a Bíblia, de proclamar ou ouvir proclamar a Palavra e de rezar mais.

Assim, a Palavra que a liturgia do 29.º Domingo do Tempo Comum no Ano C nos disponibiliza insta a que mantenhamos com Deus estreita relação, íntima comunhão, insistente diálogo, para aceitarmos o desígnio de Deus, compreendermos os seus silêncios, respeitarmos os seus ritmos, acreditarmos no seu amor.

A primeira leitura (Ex 17,8-13a) põe-nos na rota dos Hebreus pelo deserto (antes da entrada na Terra Prometida), num clima de violento confronto com um grupo de habitantes do deserto, os “Amalek”, que as listas de Gn 36,12.16 ligam à descendência de Esaú, por isso, etnicamente aparentados com os hebreus. São tribos nómadas, violentas e belicosas que habitavam o Negev e que se opuseram, desde sempre, à penetração israelita na Terra Prometida. Mais tarde, estes amalecitas aparecerão como adversários de Saul (cf 1Sm 15) e de David (cf 1Sm 30). Por tudo isso, os hebreus consideravam-nos os inimigos por excelência.

É de anotar que as tradições sobre a libertação (Ex 1-18) visam catequizar sobre o Deus libertador, que salvou o seu Povo da opressão e da morte, que o fez atravessar a pé enxuto o mar Vermelho e o encaminhou pelo deserto, não interessando relatar diaristicamente o acontecimento, mas concitar a gratidão do Povo para com Deus, pela vida e pela liberdade, que lhe concedeu.

O trecho bíblico em referência faz-nos visualizar um confronto entre os hebreus em marcha pelo deserto e os amalecitas. Enquanto o Povo chefiado por Josué combatia contra o inimigo, Moisés, no cimo do monte, rezava a implorar a ajuda de Deus. E os catequistas de Israel registam que, enquanto Moisés mantinha as mãos levantadas, os hebreus levavam vantagem sobre o inimigo, mas, logo que Moisés, vencido pelo cansaço, deixava cair as mãos, os amalecitas que dominavam. Assim, puseram um homem de cada lado a segurar os braços de Moisés. E os inimigos caíam.

Não importa saber se a história se passou assim e se Deus estava só do lado dos hebreus, ajudando-os a massacrar os amalecitas. O que interessa é acentuar que a libertação se deve à ação de Deus, muito mais do que aos esforços do Povo. Além disso, torna-se evidente a relevância da oração.

Os teólogos de Israel querem deixar a mensagem de que é necessário invocar o Deus libertador, usando toda a nossa capacidade de perseverança, insistência e teimosia. Com efeito, para vencer as duras batalhas que a vida nos propicia, precisamos da ajuda e da força de Deus, que brotam do contínuo diálogo do crente com Deus, diálogo nunca interrompido e nunca acabado.

Não estamos perante o retrato de um Deus injusto e parcial, que ajuda um Povo a derrotar e a chacinar outros povos, mas contemplamos a face de um Deus presente e atuante no processo de libertação que tirou o Povo da escravidão para o levar ao reino da liberdade. Os teólogos israelitas, embora o façam com formas de expressão epocais, mostram que Deus não ficou de braços cruzados diante do sofrimento do Povo e que, por isso, veio ao seu encontro, conduziu-o, deu-lhe forças e permitiu-lhe assenhorar-se do seu destino. Por isso, é a Deus que Israel deve agradecer a salvação. E, como Israel, deve hoje fazer o crente e a Igreja que integra: tentar escutar o seu Deus e falar com Ele, a sós e em comunidade, mesmo que nem sempre a oração seja verbalizada.

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O Evangelho (Lc 18,1-8) continua a pôr-nos no “caminho de Jerusalém”. O trecho desta dominga vem na sequência do discurso escatológico sobre a vinda gloriosa do Filho do Homem (cf Lc 17,20-37). A parábola do juiz e da viúva deve, pois, ser entendida neste contexto. Trata-se de um episódio exclusivo de Lucas e é similar da parábola do amigo importuno que vem pedir pão a meio da noite e que é atendido por causa da sua insistência (cf Lc 11,5-8).

É de recordar que Lucas escreveu o seu Evangelho na década de 80, quando as comunidades cristãs sofriam pela hostilidade de judeus e de pagãos, estando iminentes as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final do século I d. C. Os crentes, inquietos e desanimados, anelam pela segunda vinda de Cristo, isto é, a intervenção definitiva de Deus na história para derrotar os maus e salvar o Povo.

As personagens centrais da parábola são a viúva e o juiz. A viúva, pobre e injustiçada (protótipo do pobre sem defesa, vítima da prepotência dos ricos e dos poderosos), passava a vida a queixar-se do seu adversário e a exigir justiça; o juiz, “que não temia Deus nem os homens”, não lhe dava atenção. Entretanto, apesar da sua dureza e insensibilidade, mas cansado dos pedidos da viúva, o juiz acabou por lhe fazer justiça, a fim de se livrar definitivamente da sua insistência importuna.

A seguir, vem a aplicação teológica. Se um juiz prepotente e insensível resolveu o problema da viúva por causa da insistência, Deus, que é justo e de magnânimo coração, não escutaria os “seus eleitos que por Ele clamam dia e noite e iria fazê-los esperar muito tempo?” É óbvio que, se um juiz insensível acaba por fazer justiça a quem lhe pede com insistência, por maioria de razão Deus, rico em misericórdia e defensor dos débeis, estará sempre atento às súplicas dos seus filhos.

A comunidade cristã, cercada pela hostilidade do mundo, estava já a ver no horizonte próximo o espectro das perseguições e estava desanimada porque, aparentemente, Deus não escutava as súplicas dos crentes e não intervinha no mundo para salvar a Igreja. Porém, a mensagem de Lucas para os seus cristãos é a de que, ao invés do que parece, Deus não abandonou o seu Povo, nem é insensível aos seus apelos, mas tem o seu plano e o seu tempo próprio para intervir.

Ora, esta é uma parábola sobre a necessidade de rezar (“Jesus disse-lhes uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem desanimar”). Portanto, Lucas insiste com os cristãos a quem se dirige, fazendo-lhes ver que, apesar do aparente silêncio de Deus, nunca podem deixar de dialogar com Ele. Com efeito, é nesse diálogo – feito de escuta e palavra - que entendemos o projeto e os ritmos de Deus; é nele que Deus transforma os corações; e é nele que aprendemos e nos dispomos a entregar-nos a Deus e a confiar n’Ele. Portanto, nada (nem o desânimo ou a desconfiança ante o silêncio de Deus) nos pode levar a desistir da comunhão e do diálogo com Deus.

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A segunda leitura (2Tm 3,14-4,2) mostra-nos, mais uma vez, o autor da segunda Carta a Timóteo a convidar os crentes (e os animadores das comunidades, em particular) a redescobrirem o entusiasmo pelo Evangelho e a defenderem-se de tudo o que ponha em causa a verdade recebida de Jesus, pelos apóstolos. E o trecho em referência é uma exortação a Timóteo, no sentido de permanecer fiel à verdadeira doutrina aprendida da Tradição e da Escritura.

Insinuam-se, aqui, os critérios de discernimento adotados no século II para distinguir a verdadeira doutrina da falsa: a verdade está garantida quando quem ensina é legítimo sucessor dos apóstolos (deles recebeu a autoridade para pastorear e animar a Igreja) e quando transmite fielmente a verdade recebida dos apóstolos, em conformidade com a Escritura.  

A Palavra da Escritura é “inspirada por Deus”. O termo grego “théopneustos”, de sentido passivo, sugere que, na composição dos livros da Escritura, interveio, além do autor humano, o próprio Deus. Por isso, nela está “a sabedoria que leva à salvação”. A utilidade da Escritura é descrita em torno de quatro verbos: “ensinar”, “persuadir”, “corrigir” e “formar”, ficando claro que a Escritura é a fonte para toda a formação e educação cristã, para fazer aparecer o “homem perfeito”.

Nos últimos versículos do trecho desta dominga, continua a exortação a Timóteo no sentido de que satisfaça, de forma adequada e entusiasta, a tarefa de animador da comunidade cristã. O autor da carta convida Timóteo a proclamar a Palavra “a propósito e fora de propósito” (mesmo que a ocasião não pareça propícia), sem medo, sem respeito humano, sem falsos pudores, mas “com toda a paciência e doutrina”, ou seja, com uma adequada pedagogia pastoral.

Na verdade, importa que a Palavra incremente a fé e a oração. Por outro lado, dizer que a Escritura é inspirada por Deus significa que ela contém as palavras que Deus quer dirigir-nos, a fim de nos indicar o caminho para a vida plena. Efetivamente, no dizer de Leão XIII, a Escritura é “uma carta outorgada pelo Pai celeste ao género humano viandante longe da sua pátria, e que os autores sagrados nos transmitiram” (Providentissimus Deus, n.º 4). Portanto, a Escritura não pode ser ignorada, desprezada ou descurada pelos cristãos; antes, deve assumir um lugar preponderante na nossa vida pessoal e na vida das nossas comunidades cristãs.

E, porque a Palavra de Deus aparece envolta em roupagens e géneros literários típicos de uma época e de uma cultura determinada, é preciso estudá-la, aprender a conhecer o mundo e a cultura bíblica, compreender o enquadramento e o ambiente em que o autor sagrado escreve. Nesse sentido, as comunidades cristãs devem ter o cuidado de organizar iniciativas no campo da informação e do estudo bíblico, de forma a proporcionar aos nossos cristãos uma informação adequada para compreender melhor a Palavra de Deus, de modo que a fé cresça e contagie.

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Antes da oração do Angelus deste domingo, Francisco evocou uma preocupação de Jesus: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). E disse que é uma pergunta séria, que deve cada um fazer já hoje. Se o Senhor visse hoje à Terra, mais do que fé, veria guerras, pobreza e desigualdades. No entanto, o Papa leva-nos a questionar-se cada um sobre o que o Senhor encontraria na vida de cada crente e sobre que prioridades veria.

Depois, salientando a importância de não negligenciarmos o que mais interessa, não deixando que o nosso amor por Deus se esfrie pouco a pouco, sugeriu: “Hoje Jesus oferece-nos o remédio para aquecer uma fé ressequida. E qual é? A oração. Sim, a oração é o remédio da fé, o reconstituinte da alma. Porém, deve ser uma oração constante.”

Em seguida, disse que a constância significa “nutrir”, todos os dias, a vida cristã como uma planta, caso contrário a nossa fé pode “entrar em letargia” e secar. Observou que devemos dedicar tempo a Deus, com orações, para que Ele possa entrar no nosso tempo, e afirmou que precisamos de momentos constantes em que Lhe abramos o coração, para que Ele possa derramar sobre nós todos os dias amor, paz, alegria, força, esperança, enfim, nutrir a nossa fé. E o Pontífice ponderou que poderão objetar: “Como faço eu? Não vivo num convento, não tenho muito tempo para rezar.”

Aqui, Francisco avançou com as jaculatórias, explicitando: “Pode vir em nosso auxílio uma prática espiritual sábia, mesmo que hoje esteja um pouco esquecida, que os nossos idosos, especialmente as avós, conhecem bem: a das chamadas orações jaculatórias. O nome é um pouco ultrapassado, mas a substância é boa.” E, explicando que são orações muito curtas, fáceis de memorizar, que podemos repetir com frequência durante o dia, no decorrer das várias atividades, para ficarmos em sintonia com o Senhor, deu exemplos: “Assim que acordamos, podemos dizer: ‘Senhor, eu Te agradeço e Te ofereço este dia’; depois, antes de uma atividade, podemos repetir: ‘Vem, Espírito Santo’; e entre uma coisa e outra, podemos rezar: ‘Jesus, eu confio em ti e te amo’. Com quanta frequência enviamos ‘pequenas mensagens’ às pessoas que amamos! Façamos isso também com o Senhor, para que os nossos corações permaneçam conectados com Ele.”.

E, concluindo, exortou a que “não nos esqueçamos de ler as suas respostas”, pois o Senhor responde sempre. Encontraremos as respostas No Evangelho, que deve estar sempre à mão para ser aberto todos os dias, para receber uma Palavra de vida dirigida a cada um de nós.

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A fé exige disponibilidade orante e atuante!

2022.10.16 – Louro de Carvalho

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