quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Reflexão sobre a democracia em dia da implantação da República

 

No discurso do 112.º aniversário da Implantação da República, o Presidente da República, na habitual sessão comemorativa na Câmara Municipal de Lisboa, recuou 100 anos e fez alguns paralelismos. Como agora, então vivia-se um pós-guerra (I Guerra Mundial) e um pós-pandemia (gripe espanhola), a inflação disparava e, na Europa, a agitação social fragilizava os partidos e os parlamentos e favorecia a ascensão de movimentos radicais.

Não deixa de ter razão, embora esqueça que agora, num mundo globalizado em todos os âmbitos, a pandemia do novo coronavírus surgiu antes da guerra e é mais abrangente e mais duradoura, quando, em 1922, se vivia no rescaldo da pandemia que surgira no contexto da guerra.

Assinalou que, ao invés de há 100 anos, os países dispõem, para se precaverem, de instrumentos de democracia e liberdade, mormente alternativas democráticas. Porém, tais instrumentos, que não são eternos, precisam de ser cuidados. Assim, há que assumir que a República e a Democracia se constroem todos os dias, na certeza de que “não há construções perfeitas”. Ao mesmo tempo, é preciso cuidar da qualidade da democracia, no quadro da justiça, da administração interna, da educação, da saúde, bem como da construção de alternativas em democracia.

Às fragilidades, abusos e omissões contrapõem-se liberdades e instrumentos de fiscalização, de exigência de mais e de melhor e, no limite, de “dissolução”. Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu que “não vai acontecer o que aconteceu à Primeira República, que acabou em ditadura porque não houve alternativas que nascessem”. E vincou: “Ou a alternativa nasce do próprio partido que está hoje no governo, ou nasce de ‘outros’. Cada um tem de fazer valer o seu projeto.”

A incursão presidencial pela História não foi um ato desgarrado. Acabando a extrema-direita de ganhar eleições e de ascender ao poder em Itália, o Presidente da República lembrou que, em outubro de 1922, milhares de fascistas fizeram a marcha sobre Roma que levou Benedito Mussolini ao poder. Também em Portugal a jovem República enfrentava os desafios do pós-guerra e tinha de “reencontrar-se com as pessoas”, num momento em que “novos problemas exigiam novas respostas”. Porém, tal como a Itália, Portugal teve o seu golpe militar de 28 de maio que abriria caminho à ditadura.

Observando que “sabemos como começam as ditaduras, o que são e o que duram”, tal como “sabemos como é difícil recriar a democracia depois delas”, o Presidente de todos os Portugueses evocou as conquistas democráticas dos últimos 100 anos que nos dão, enquanto país, mais capacidades de responder aos desafios e de encontrar alternativas para travar os autoritarismos que espreitam sempre. E, à cabeça dessas, está a República democrática, em que emergem poderes como o direito de voto, o pluralismo, mais meios de informação, a Constituição, a educação, a saúde, a segurança social, os instrumentos de regulação e de intervenção económica e um poder específico do Presidente da República, que é o poder de veto e o poder de dissolução do Parlamento, que provoca a queda do Governo e implica a marcação de eleições antecipadas.

Numa semana em que o Governo enfrentou casos de alegadas incompatibilidades de ministros, o chefe de Estado frisou que os instrumentos para evitar os autoritarismos não bastam. Não é suficiente ter democracia na Constituição e nas leis; importa tê-la nos factos, em melhores leis e em justiça mais atempada, équa, célere e eficaz, “com mais controlo dos abusos e omissões dos poderes e com mais força na prevenção e combate à corrupção.

E Marcelo Rebelo de Sousa terminou a sua intervenção com uma referência ao presidente da Câmara de Lisboa que tinha discursado antes, dizendo que é preciso a oposição “exigir mais e melhor”, mostrando “indignações e insatisfações”, porque isso é “saudável” em democracia, pois, em ditaduras, só “há uma verdade única”. E repisou: “É saudável a exigência crítica, porque em democracia cabe a todos não estagnar e fazer avançar. Nunca nos resignamos. Há sempre mais realidades, mais soluções, mais energias de mudanças. É isto que celebramos hoje.”

Efetivamente, Carlos Moedas acusou a estagnação económica do país e apontou a necessidade de crescer mais do que a média da União Europeia (UE), visto que estamos à beira da cauda da UE.

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Entretanto, o Presidente da República, depois de repetir alguns itens do discurso aos jornalistas no Palácio de Belém – neste dia aberto ao público, aliás como o Parlamento e a Residência Oficial do Primeiro-Ministro – e de sublinhar que é útil os Portugueses saberem que o Governo não prevê uma recessão, partiu para Malta, dizendo ir aproveitar o 17.º encontro de chefes de Estado do Grupo de Arraiolos (iniciativa de Jorge Sampaio, tendo sido a primeira reunião do grupo na vila alentejana de Arraiolos) para perceber as respostas dos vários países às consequências da guerra na Ucrânia, ou seja, as respostas que estão a dar e vão dar para combater a crise social e económica consequência da guerra. Com efeito, as expectativas para esse encontro “são de preocupação”, visto que uns países “estão perto da guerra” e outros “sofrem a parte económica e social”.

E vincou, ainda, que espera ver como é que o Governo de António Costa vai encarar o próximo ano em termos de efeitos da guerra e que vai “comparar” com o que encaram os presidentes dos outros países. Enfim, estando sempre atento, não espera por 2024 para avaliar, como dizem.

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Em declarações aos jornalistas, o primeiro-ministro, reagindo aos discursos do autarca de Lisboa e do Presidente da República, lembrou as funções dos autarcas e as dos órgãos de soberania.

Disse que, apesar dos paralelismos de Carlos Moedas para assinalar a implantação da República, “Portugal está numa situação sem comparação”. E lembrou que o papel dos políticos varia em “função do cargo que exercem”. Costa, que foi presidente da Câmara de Lisboa, afirmou que o autarca fala para os lisboetas e para os desafios que se lhes colocam. Em contraposição, “a função do primeiro-ministro é estar bem atento ao que acontece no país e no mundo”, pois, temos “bem a consciência de quais são as realidades”, sendo ao Governo que “compete encontrar soluções”.

Admitindo que é preciso “reforçar a confiança” dos portugueses, evocou os pacotes de apoio criados pelo Governo. E, em resposta aos recados dos discursos, realçou que “cada órgão de soberania deve falar e agir conforme as suas competências”, atribuindo ao Presidente da República a função de porta-voz “de todos os portugueses”. E, quanto ao Governo, frisou que age, faz e resolve. “Escutando a voz dos portugueses, a nós compete-nos o que não compete a mais ninguém, que é encontrar soluções para resolver os problemas” – vincou.

Respondeu ainda às críticas de Carlos Moedas (que falou em cenário de “alguma estagnação económica”) afirmando que, ao invés do que acontece na Europa, Portugal registará um “crescimento económico moderado” e acima da média da UE. Depois, insistiu que Portugal foi o país com o crescimento económico “mais alto” e disse acreditar que, no próximo ano, haverá uma “desaceleração significativa” da inflação. Por isso, o Governo conta prosseguir a política de valorização de rendimentos e competitividade da economia – no setor público e no privado.

Do Orçamento do Estado para 2023 (OE 23) disse que é ajustado às realidades: “Somos o país da UE que teve o crescimento mais alto este ano; no próximo ano, com a recessão que há em vários países, vamos crescer menos do que este ano, mas não vamos ter um cenário de não-crescimento nem de recessão. Será um crescimento moderado e ajustado à realidade.” E sublinhou, em tom de otimismo: “Depois de termos este ano o crescimento bem acima dos 6%, que foi o mais elevado da UE, este ano o crescimento não será desta ordem, mas há confiança de que o país vai continuar a crescer acima da média da UE” e a aproximar-se dos seus países mais desenvolvidos.

Como, para isso, interessam os dados da inflação, segundo as previsões em que o Governo se está a basear para trabalhar o OE 23, haverá, no próximo ano, “uma desaceleração significativa da inflação” e a manutenção da taxa de emprego – que é a “chave para a política económica” – sendo isso que permite manter o objetivo de sustentável de aumentar o rendimento das famílias e a competitividade das empresas. É nesse sentido que o primeiro-ministro pressiona os parceiros sociais a chegarem a acordo em sede de concertação social, antes da entrega do OE 23, para aumento do peso dos salários na economia nacional de modo atingir os 48% do produto interno bruto (PIB) no final da legislatura. Salienta que se trata de um acordo plurianual, para não perder poder de compra no privado, tal como se fez para a Administração Pública. E deixa os detalhes sobre a valorização de rendimentos para a apresentação do OE 23 (a 10 de outubro).

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No geral, a oposição acompanha as asserções do chefe de Estado na defesa e no aperfeiçoamento da democracia e deixa farpadas ao Governo. Todavia, Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da Iniciativa Liberal, assumiu frontal discordância: “Parece que o Presidente da República não aprendeu com a História. Não tem havido alternativa democrática na História de Portugal, mas, sim, alternância democrática e coxa. O PS está a governar nos últimos 20 de 27 anos.”

Por outro lado, apontou o chefe de Estado como exemplo da pouca exigência aos poderes, nomeadamente ao Governo e às oposições”, sustentando que Marcelo Rebelo de Sousa “tem de fazer o que lhe compete para que exista alternativa na democracia em Portugal”.

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Desnecessária, mas bem-vinda foi a incursão histórica do chefe de Estado, bem como a reflexão sobre a democracia. Dispensava-se, porém, a menção dos poderes presidenciais com explicitação do veto e da dissolução do Parlamento, o que dá a ideia de ameaça às instituições e a de que o chefe de Estado é infalível na apreciação das circunstâncias. Com efeito, apesar de o Presidente da República representar todos os portugueses, não é o seu intérprete único nem privilegiado, que possa sobrepor-se aos outros órgãos de soberania, a não ser na hierarquia da precedência.

É certo que o autarca de Lisboa fala para os lisboetas e Lisboa não manda no país. Porém, como a República foi proclamada a partir dos seus Paços do Concelho, está simbolicamente ligada à Câmara de Lisboa, pelo que, ressalvando os seus eventuais desvios discursivos, é interessante que o país tenha ouvido, neste dia, o estreante presidente da Câmara da capital.

2022.10.05 – Louro de Carvalho

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