segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Credo! O Governo está possuído pelo demónio – diz bruxo de Fafe

 

Fenómenos políticos, sociais e económicos devem ser explicados segundo categorias do mesmo teor, e não por categorias religiosas ou mediúnicas, embora as orações ditadas pela fé dos crentes possam influenciar as boas decisões políticas, sociais e económicas. Não obstante, perante surtos de crise, a explicação ultracientífica mobiliza clientes e agentes adequados ao mister.

Nestes termos, refere a revista Nova Gente, de 10 de outubro, que António Costa está a ser alvo de bruxaria feita por Fernando Nogueira, o bruxo de Fafe, que se tornou militante ativo do Chega, partido liderado por André Ventura, e que relatou, em exclusivo, à revista tudo o que está a fazer para afastar do governo o Partido Socialista (PS). Diz que o faz de 15 em 15 dias, porque tem de “tomar as rédeas do jogo e continuar com o trabalho”, pois, segundo crê, “essa gente não governa, governam-se, e têm que ser destruídos, porque o Governo está possuído pelo demónio”.

O bruxo explicou tudo o que tem feito para afastar António Costa do Governo: “Os trabalhos que me são pedidos nesses termos funcionam da seguinte maneira: faço os desbloqueios e depois, com a fotografia da pessoa, vou ao mar, vou à Capela da Senhora da Guia, em Vila do Conde, à Capela da Senhora da Boa Morte, em Ponte de Lima, e faço encruzilhadas em alguns cemitérios.”.

O conhecido médium revela que este ‘trabalho’ foi encomendado e conta que ajudou André Ventura a ganhar votos nas últimas eleições.

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Possessão demoníaca ou simplesmente possessão é, segundo muitos sistemas de crença, o controlo de pessoa, animal ou objeto por ente maligno sobrenatural. Alguns casos incluem danos à saúde, mudança de comportamento e até memórias ou personalidades apagadas, com convulsões e desmaios como se a pessoa estivesse a morrer. Outros casos incluem o acesso a conhecimento oculto (gnósis) e a línguas estrangeiras (glossolalía), mudanças drásticas na entoação vocal e na estrutura facial, súbito aparecimento de lesões (arranhões, marcas de mordedura…) ou lesões e força sobre-humana. Ao invés da canalização mediúnica ou de outras formas de possessão, a pessoa não controla a entidade que a possui, pelo que permanece nesse estado até que a entidade seja forçada a deixá-la, normalmente através de exorcismo.

Muitas culturas e religiões adotam o conceito de possessão, mas os detalhes variam. As mais antigas referências vêm dos Sumérios, segundo os quais todas as doenças do corpo e da mente eram causadas ​​por demónios de doenças (gidim ou gid-dim). O sacerdote exorcista era o ashipu (feiticeiro), oposto ao asu (médico), que aplicava pomadas, bandagens ou massagens. Muitas tábuas cuneiformes contêm orações aos deuses pedindo proteção contra os demónios; outras pedem aos deuses para expulsar os demónios dos corpos.

As culturas xamânicas  creem em possessões e os xamãs fazem os exorcismos. As doenças são, muitas vezes, atribuídas à presença, no corpo do paciente, de espíritos vingativos (demónios), descritos como espectros de animais e/ou de pessoas injustiçadas pelo portador; e os ritos de exorcismo são, compostos de ofertas respeitosas ou ofertas de sacrifício.

Para o cristianismo, a posse deriva do Diabo (Satanás) ou de um dos seus demónios, descritos como anjos caídos. Os mais suscetíveis de serem possuídos são pessoas com limites fracos e com baixa autoestima, o que, para céticos acerca da possessão, representa o envolvimento do ego disfuncional em manifestações deste fenómeno, em vez de reais entidades externas.

O Evangelho relata vários episódios em que Jesus Cristo expulsou o demónio de possessos, tendo transmitido esse poder sido aos apóstolos, aquando da Ascensão. O exorcismo é um sacramental da Igreja Católica (quase em desuso) que um exorcista, designado pelo Bispo, administra para libertar pessoas e coisas da possessão. A causa da possessão em pessoas está associada a malefícios contra estas: mau-olhado, participação em rituais de ocultismo, prática de reiki, adivinhação, tarot, magia, etc., bem como idolatria do sexo e vida em pecado mortal.

A possessão não é diagnóstico psiquiátrico reconhecido pelo DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais), mas é-o pelo CID-10 (International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde): item F44.3 (Estados de transe e de possessão). São transtornos caraterizados por perda transitória da consciência da própria identidade, associada à conservação da consciência do meio ambiente. Devem ser incluídos só os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos os de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito. Quem crê em possessões demoníacas descreve, por vezes, sintomas comuns a várias doenças mentais (histeria, mania, psicose, síndrome de Tourette, epilepsia, esquizofrenia ou transtorno dissociativo de identidade). Dos casos de transtorno dissociativo de identidade, em que a personalidade é questionada quanto à identidade, 29% são possessões demoníacas. E há uma forma de monomania (“demoniomania” ou “demonopatia”), em que o paciente crê estar possuído por um ou mais demónios.

Às vezes, o exorcismo funciona em pessoas com sintomas de possessão por efeito do placebo e pelo poder de sugestão. Algumas pessoas supostamente possuídas são narcisistas ou sofrem de baixa autoestima e agem como a pessoa possuída por um demónio, para concitar atenção.

Historicamente, a possessão era a causa da loucura. Um clássico, relegado a segundo plano por opção religiosa, sobre o tema é o livro A Loucura sob novo prisma, do homeopata e cirurgião Bezerra de Menezes (1831-1900). E, no desenvolvimento da psiquiatria no Brasil, o tema foi abordado pela escola baiana, entre outros sobretudo por Nina Rodrigues (1862-1906) que, apesar dos preconceitos e da patologização de manifestações religiosas (tidas como epiléticas ou histéricas) reuniu e produziu considerável material etnográfico sobre as religiões africanas.

A interpretação psicanalítica inaugurou uma forma de estudo até hoje válida, no quadro da relação entre conteúdo religioso e manifestações criminosas. Pode-se tomar como marco da abordagem o trabalho de Sigmund Freud Uma neurose demoníaca do século XVII (1922).

Ao invés da Idade Média e do século XVII, hoje, considera-se a maioria dos casos de possessão como de distúrbio sociológico, não patológico. Dalgalarrondo, em revisão de trabalhos publicados desde o final do século XIX sobre messianismo, loucura religiosa e trabalhos contemporâneos a relacionar religião, uso de álcool e drogas, além de algumas condições clínicas (esquizofrenia e suicídio), refere a ausência duma linha de pesquisa que leve à boa articulação entre investigação empírica e análise teórica, bem como a um diálogo próximo da psiquiatria com as ciências sociais (antropologia e sociologia da religião) para avanço maior nesta matéria. Com efeito, a ciência, mesmo em estado avançado, não resolve a angústia existencial, que requer vias alternativas.

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A aplicação da obra diabólica à política não é de agora. A 11 de fevereiro de 2013, o Noticias ao minuto, citando o Jornal de Notícias (JN), avisava que, em tempo de crise, os consultórios de bruxos e de videntes estavam cheios de clientes que procuravam a ‘luz ao fundo do túnel’, Mas para os profissionais do sobrenatural a conclusão era simples: “O Governo está possuído pelo demónio (…) basta olhar para o ministro das Finanças.” E uma professora desempregada, casada e com dois filhos, confessava ao JN que os consultórios de bruxos e de videntes estavam cheios porque “a vida corre tão mal, tão mal que vai além do que é humanamente possível”.

As dificuldades que os portugueses enfrentam estão na origem do fenómeno. A culpa, diziam os profissionais do sobrenatural, é da crise e do Governo: “O Governo é que está possuído pelo demónio, sem quaisquer dúvidas, não é o povo. Qualquer pessoa com poderes, basta olhar, por exemplo, para o ministro das Finanças [Vítor Gaspar]. Vê-se logo que está possuído” – afirmava já então ao JN o bruxo de Fafe, Fernando Nogueira, garantindo, ainda assim, que a feitiçaria e o mau-olhado continuam por aí: “Continua a haver muita feitiçaria e muito mal à solta.”

O custo destas ‘consultas’ não está definido, o cliente “dá o que quiser dar”. O que ajuda ao negócio numa altura de crise. “Os governantes governam mal e as pessoas vêm ter comigo para as ajudar a não desistir da vida”, conta o mestre Alves, o das “limpezas espirituais” no Norte.

Mais tarde, em maio de 2015, falando da necessidade de ganhar as eleições de outubro com maioria, Passos Coelho avisava os seus correligionários de que se tal não acontecesse, viria o Diabo. Ganhou as eleições, mas o Diabo “inspirou” a maioria de esquerda que possibilitou o sucesso de legislatura por parte de um governo minoritário do PS. E, em julho de 2016, anunciou que, em setembro, o diabo aterrorizaria este cantinho à beira mar plantado, mas o Diabo não veio e os orçamentos do Estado foram passando no Parlamento até fins de 2021.  

E, recentemente, José Mário Leite, no jornal Nordeste, escreveu que o Diabo chegou e aí está a assombrar o Governo com as trapalhadas ministeriais (Se a TAP foi renacionalizada e reforçada com três mil milhões para evitar que o HUB vá para Madrid, como se justifica a ausência do risco ao ser privatizada?), com as reduções do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), com as incompatibilidades dos gabinetes ministeriais e com as pressões para apagar gravações e excluir de atas, de intervenções alheias. E a procissão do mafarrico ainda vai no adro.

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E se se proceder a um exorcismo político?! Nada de encharcar de químicos como faz o psiquiatra!

2022.10.17 – Louro de Carvalho

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