segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Anexação das repúblicas separatistas desafia Ocidente “colonialista”

 

Tendo sofrido derrotas militares e condenações generalizadas no Ocidente, o líder russo declarou, a 30 de setembro, que Kherson, Zaporíjia, Lugansk e Donetsk passam a ser da Rússia. Com efeito, após um discurso de 40 minutos e da pompa, em cerimónia no salão de São Jorge, no palácio do Kremlin, Vladimir Putin, o homem que mexe nas fronteiras dos países vizinhos desde 2008, dirigiu-se aos moscovitas e proclamou: “A vitória será nossa!” E assinou os convenientes decretos de anexação, pela Federação Russa, daquelas repúblicas pró-russas da Ucrânia.

O presidente russo, reportando-se aos referendos naquelas regiões, observou que “os resultados são conhecidos” e que “as pessoas fizeram a sua escolha clara”. Mais disse estar convicto de que a Duma (parlamento russo) iria apoiar estas novas regiões – o que efetivamente aconteceu –, “porque é a vontade de milhões de pessoas” e um “direito inabalável”, inscrito no n.º 2 do artigo 1.º da Carta das Nações Unidas como “princípio da igualdade e autodeterminação dos povos”.

E, recordando que “os nossos antepassados também defenderam estas regiões”, o chefe de Estado russo frisou que os habitantes daquelas quatro regiões “são nossos cidadãos para sempre”, já que “as pessoas quiseram voltar à sua verdadeira pátria”.

Disse que se deve terminar com o conflito e a guerra, iniciados em 2014, e voltar às conversações, para o que a Rússia está pronta, mas sem abdicar das quatro regiões em causa. Prometeu defender todo o território nacional “com todos os meios que temos à nossa disposição”, pois trata-se da “grande missão de libertação do nosso povo”. Garantiu a reconstrução das escolas e das cidades que foram destruídas, bem como o aumento da segurança naquelas regiões.

Sobre o fim da União Soviética, em 1991, para si a maior tragédia, Vladimir Putin relevou que o Ocidente achava que a Rússia nunca mais renasceria, mas que a Rússia se reforçou. Efetivamente, as elites de então (de Moscovo, Minsk e Kiev) decidiram dissolver a URSS sem ouvir a vontade dos cidadãos, e as pessoas foram subitamente afastadas da sua pátria. Isto, segundo o chefe de Estado russo, “desmembrou a nossa comunidade, tornou-se numa catástrofe nacional” e gerou a ideia que nega aos Ucranianos e aos Bielorrussos) o direito à soberania e autodeterminação.

Assegurando que o povo russo nunca viverá segundo a vontade dos outros, acusou o Ocidente de manter um sistema neocolonial para pilhar o mundo. A este respeito, vincou: “O Ocidente procura novas oportunidades para nos atingir. Sempre sonhou em dividir o nosso Estado em estados menores que lutarão uns contra os outros.” Ao mesmo tempo, acusou alguns Estados de serem vassalos dos Estados Unidos da América (EUA), que “deixam apenas ruína” à sua passagem, pois criaram o precedente da utilização de armas nucleares, como foi o caso lançamento das bombas atómicas contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. E disse que “os países do Ocidente dizem que dão liberdade e democracia a outros povos”, mas fazem “exatamente o contrário”.

No seu ataque ao Ocidente, Putin quis ganhar pontos junto de países que foram colonizados. “As elites ocidentais continuam a ser colonizadoras como sempre foram. Dividiram o mundo nos seus vassalos – os chamados países civilizados – e em todos os outros”, vincou. Daí que, num exercício que na língua colonizadora por excelência se chama de whataboutism, o líder russo disse que os países ocidentais não têm “qualquer direito moral” a criticar a anexação em causa.

Também acusou os anglos saxónicos de terem organizado explosões nos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2: “Começaram a destruir uma infraestrutura europeia. Começaram uma guerra relâmpago contra a Rússia. A maioria dos Estados recusa isto e quer várias formas de cooperação com a Rússia. Os Estados ocidentais não estavam à espera disto. Querem, através de chantagem e subornos, conseguir os seus objetivos. Ficaram no passado e querem ser exclusivos.”

Apontou a “propaganda agressiva” por parte do Ocidente que acusa de difundir informações falsas. Continuou a criticar os países ocidentais, no atinente às sanções impostas à Rússia. Ironizou: “Na Europa é preciso convencer os cidadãos europeus de que devem usar roupa mais quente em casa.” E, atacando os valores ocidentais “satânicos”, que vão contra os valores “tradicionais” e “religiosos”, afirmou que o colapso da hegemonia ocidental, que já começou, “é irreversível” e que “o mundo nunca mais será o mesmo”.

Assim, para Putin, a invasão da Ucrânia representa um momento de viragem. “O campo de batalha para o qual o destino e a história nos chamaram é o campo de batalha do nosso povo, para uma grande Rússia histórica”, disse piscando os olhos aos nacionalistas.

Entretanto, trinta habitantes de Zaporíjia não viveram o dia histórico que Putin proclamou, após ter assinado a anexação da região, bem como de outras três ucranianas: um ataque de mísseis (Kiev imputa a autoria a Moscovo e vice-versa) atingiu, na manhã de 30 de setembro, um antigo mercado de automóveis onde estavam reunidos muitos dos que iam levar bens aos familiares ao lado ocupado pelos russos. Além daqueles mortos, houve 88 feridos, no ataque mais sangrento a civis na Ucrânia desde o bombardeamento da estação ferroviária de Kramatorsk, em abril.

Mais tarde, Yevhen Balitsky, o suposto representante das vítimas foi visto com Vladimir Putin e com os outros três chefes designados pelo Kremlin para as regiões ocupadas. E todos bradaram pela Rússia – espetáculo encenado para legitimar uma ilegal pretensão e mascarado com o discurso presidencial centrado nas mágoas do passado e nos ataques ao satanismo ocidental.  

Cinco mil soldados russos, cercados pelo exército ucraniano, tentavam escapar de Lyman e retirar-se para Kremina e Svatove, em Lugansk (os próximos locais a recuperar por Kiev). E Seth Jones, do grupo de reflexão Centro de Estudos Internacionais e de Segurança, sediado em Washington, sustentou que a queda de Lyman realçará “a desconexão do Kremlin entre a fantasia e a realidade”. E disse que Putin, com os referendos fraudulentos”, tenta consolidar o controlo de áreas que, na realidade, está a perder e capturar territórios que não controla.

Em Kherson, a outra região que Moscovo considera sua, os militares russos estão entrincheirados em largas quantidades, embora nas últimas semanas os ataques continuados de artilharia com precisão estejam a levar a grandes dificuldades logísticas. Na noite de 30 de setembro, um bombardeamento atingiu as instalações da cidade de Kherson onde vários oficiais russos viviam.

 

 

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A anexação oficial já era esperada após os referendos – terminados a 22 de setembro – nas áreas controladas pela Rússia na Ucrânia, cujos habitantes, alegadamente, apoiaram esmagadoramente a anexação formal destes territórios pela Rússia (o “sim” terá oscilado entre os 87% e os 99%).

Kiev, os EUA e os aliados ocidentais condenaram os referendos, que classificaram de “farsa”, e afirmaram que não reconhecerão a anexação dos territórios.

Por sua vez, ​​​​​​o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, avisou a Rússia de que a anexação de territórios ucranianos “não terá valor jurídico e merece ser condenada”, vincando que “não pode ser conciliada com o quadro jurídico internacional”.

Para o líder da ONU, a Carta da das Nações Unidas “é clara”. Assim, como realçou, “qualquer anexação do território de um Estado por outro Estado resultante da ameaça ou uso da força é uma violação dos princípios da Carta da ONU e do direito internacional”. E, segundo António Guterres, a Rússia, como um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, tem a particular responsabilidade de respeitar os princípios da Carta das Nações Unidas.

Após ter reunido o Conselho de Defesa e Segurança Nacional, o presidente ucraniano respondeu a Putin, dizendo-se pronto para negociações, mas “com um presidente russo diferente”, e pediu a adesão rápida à Organização do Tratado do Atlântico Norte NATO – um dos argumentos do Kremlin, as suas preocupações de segurança devido à expansão da Aliança Atlântica a leste.

A iniciativa de Volodymyr Zelensky recebeu palavras encorajadoras dos chefes da diplomacia dos EUA e do Canadá, mas, para já, é sobretudo simbólica. O secretário-geral da NATO Jens Stoltenberg, que juntou a sua voz à larga maioria dos líderes ocidentais para condenar as ações russas, lembrou a “política de portas abertas” e o direito da Ucrânia de decidir o seu caminho. Porém, uma decisão dessas tem de obter consenso e o enfoque da organização agora é dar apoio imediato à Ucrânia, para a ajudar a defender-se contra “a invasão brutal russa”.

Enquanto a União Europeia, o Reino Unido e os EUA se preparam para mais sanções à Rússia em resultado da “maior escalada desde o início da invasão”, o presidente norte-americano advertiu que nem o seu país nem os aliados se deixarão “intimidar”. Os EUA estão preparados, com os aliados da NATO, para “defender cada centímetro do território da NATO”.

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No discurso, Vladimir Putin visa públicos diversos: aos ocidentais promete a defesa do território russo (e, por extensão, o ucraniano ocupado) com todos os meios, repetindo a ameaça nuclear. Aos grupos extremistas avisa que as democracias ocidentais são ditaduras responsáveis pelo declínio da fé e dos valores tradicionais e que a cultura ocidental é racismo, não com caraterísticas de religião, mas de satanismo absoluto; e aos povos colonizados (de África, Ásia e Américas) aponta os responsáveis históricos pelo flagelo. Será tudo bluff? A Rússia caminha para a derrota final ou para a vitória total? Estaremos enrolados numa complexa teia de contradições? Veremos.

2022.10.03 – Louro de Carvalho

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