terça-feira, 11 de outubro de 2022

No 60.º aniversário do Concílio Vaticano II: voltar às fontes

 

Francisco presidiu à Santa Missa, na Basílica de São Pedro, na tarde de 11 de outubro, memória do Papa São João XXIII e 60.° aniversário de abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II.

Iniciou a homilia com a pergunta de Jesus a Pedro: “Amas-me?” E, enfatizando que, tendo o apóstolo respondido afirmativamente, Jesus lhe confiou o múnus de apascentar “as minhas ovelhas”, o Santo Padre, entende que, “no aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, sentimos dirigidas também a nós, a nós como Igreja”, estas palavras do Senhor.

Jesus, como observa o Papa, tem “o estilo, não tanto de dar respostas, mas de fazer perguntas” que “provocam a vida”. E o Concílio foi a grande resposta à pergunta de Jesus à Igreja, sua esposa: “Amas-me?” Com efeito, foi para reavivar o seu amor a Cristo que a Igreja, pela primeira vez, dedicou um Concílio a interrogar-se sobre si mesma, a refletir sobre a própria natureza e missão. E descobriu-se mistério de graça gerado pelo amor, povo de Deus, corpo de Cristo, templo vivo do Espírito Santo. Assim, o Bispo de Roma convidou à redescoberta do Concílio “para devolver a primazia a Deus” e “a uma Igreja que seja louca de amor pelo seu Senhor e por todos os homens, por Ele amados”, uma Igreja “rica de Jesus e pobre de meios”, “livre e libertadora”. Por isso, como Pedro, volta à Galileia, “às fontes do primeiro amor, para redescobrir nas suas pobrezas a santidade de Deus”, para “reencontrar no olhar do Senhor crucificado e ressuscitado a alegria perdida, para se concentrar em Jesus”, pois “uma Igreja que perdeu a alegria, perdeu o amor”.

Vendo aproximar-se o fim dos seus dias, São João XXIII escrevia: “Esta minha vida, que caminha para o ocaso, não poderia ter melhor coroamento do que concentrar-me totalmente em Jesus, filho de Maria, (...) em grande e continuada intimidade com Jesus, contemplado na imagem: menino, crucificado, adorado no Sacramento.” Agora, o Sumo Pontífice convida-nos a voltar “às puras fontes de amor do Concílio” e a renovar a paixão pelo Concílio, pois, uma Igreja habitada pela alegria e enamorada por Jesus não dispõe de tempo para confrontos, venenos e polémicas.

Considera o Papa que Pedro era um pescador de peixes e Jesus, transformando-o em pescador de homens, atribui-lhe um ofício novo, o de pastor (“apascenta”), que nunca tinha exercido e que faz a viragem, pois, enquanto o pescador agarra para si, o pastor ocupa-se com os outros, vive com o rebanho, alimenta as ovelhas, afeiçoa-se a elas. Não procura sobressair. Está diante do povo para indicar o caminho, no meio do povo como um deles, e atrás do povo para estar perto dos que estão atrasados. Não está por cima, como o pescador, mas no meio.

Francisco persiste na censura ao clericalismo, que não rejeita a tentação de se fechar nos recintos das próprias comodidades e convicções e recusa “imitar o estilo de Deus”. E observa que a Igreja não celebrou o Concílio para se fazer admirar, mas para se dar. A nossa santa Mãe hierárquica, nascida do coração da Trindade, existe para amar. É povo sacerdotal: não se destaca aos olhos do mundo, mas serve o mundo. O povo de Deus nasce sociável e rejuvenesce, pois é sacramento de amor, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade do género humano.

Depois, o Pontífice realça o objeto da pastoreação: “as minhas ovelhas”. Jesus “não tem em mente só algumas, mas todas, porque ama a todas” e a todas designa, afetuosamente, como ‘minhas’. O bom Pastor vê e quer o seu rebanho unido, sob a guia dos Pastores que lhe deu.

Assim, em torno de Jesus e de Pedro, aprendemos o essencial na Igreja: amar o Senhor e os irmãos; levar os que nos são confiados às mais férteis pastagens; e ter a visão de conjunto.   

O Concílio recorda que a Igreja, à imagem da Trindade, é comunhão. Porém, o diabo semeia a cizânia da divisão. É, pois, necessário não ceder às suas adulações, à tentação da polarização. Não podemos ser adeptos do grupo, em vez de servos de todos, estremar-nos em progressistas e conservadores, em vez de irmãos e irmãs. Devemos, sim, reconhecer-nos como filhos humildes e agradecidos da santa Mãe Igreja, ovelhas do rebanho do Senhor em serviço e em comunhão.

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“A Igreja Católica, içando o facho da verdade religiosa, através do Concílio Ecuménico Vaticano II, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade...” Passaram-se 60 anos desde que São João XXIII inaugurou o Concílio Ecuménico Vaticano II. Com um discurso de 37 minutos, em latim, a 11 de outubro de 1962, o idoso pontífice, ante 2449 bispos reunidos e uma imensa multidão que os vira a desfilar na longa procissão na Praça São Pedro, realizou um sonho e uma inspiração tenazmente perseguida. 

O Papa João não pôde levar a porto o navio que partia para o mar. Só ele, com o passo calmo e decisivo de camponês e com a capacidade de captar os aspetos positivos dos sinais dos tempos, fora capaz de ir tão longe, tomando a decisão a que os seus antecessores haviam renunciado. Só ele poderia abrir o Concílio. E só o seu sucessor São Paulo VI poderia completar os trabalhos do Concílio Vaticano II, conseguindo o milagre de ter todos os documentos conciliares votados quase por unanimidade. Na década seguinte, a década da contestação interna e das divisões, Paulo VI sofreria o “martírio da paciência” para manter estável o leme do barco de Pedro, de modo a evitar que encalhasse nas águas rasas por causa de empurrões para trás ou batesse nas rochas por causa de fugas incontroladas para a frente.

Passados 60 anos, o caminho não terminou. Francisco, o primeiro dos sucessores de Pedro no último meio século a não ter vivido o acontecimento como padre conciliar ou como teólogo, percorre concretamente as suas trilhas, lembrando que o único objetivo para o qual a Igreja existe é o anúncio do Evangelho às mulheres e aos homens de hoje. O magistério do Bispo de Roma reflete-se nas palavras de João XXIII, há 60 anos: dar testemunho do rosto de uma Igreja que é “a mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia”, isto é, capaz de proximidade e ternura, capaz de acompanhar os que estão na escuridão e na necessidade. Uma Igreja que não confia só em si mesma e não persegue o poder mundano ou o destaque dos media, mas se coloca, humilde, atrás do seu Senhor, confiando somente n’Ele, e se quer “sem mancha e sem ruga”.

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Desejado por São João XXIII e concluído por São Paulo VI, o Vaticano II iniciou-se a 11 de outubro de 1962. E a sua força propulsora não se esgotou, como é reafirmado pelo magistério de todos os pontífices posteriores: descer “ao tempo presente” com o “remédio da misericórdia mais do que o da severidade”, no dizer do Papa João.

João XXIII anunciou o 21.º Concílio da Igreja de Roma, a 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros. Três anos depois, a 2 de fevereiro de 1962, na Festa da Apresentação de Jesus no Templo, anunciou a data de início da magna assembleia: 11 de outubro de 1962, em lembrança do Concílio de Éfeso e da partida da igreja de São Pedro in Vincoli de Filipe – huius tituli presbyter – para Éfeso como representante do Papa Celestino. A Igreja abre as fontes da doutrina em prol concórdia, da paz e da unidade invocadas por Cristo.

Na abertura do Concílio, mais de três mil participantes – cardeais, arcebispos, bispos, superiores de famílias religiosas – desfilam na Praça de São Pedro. Vindos de todo o mundo, representam todos os povos. A Basílica do Vaticano faz-se Aula Conciliar, em que ressoou a voz de João XXIII: “As situações e problemas gravíssimos que a humanidade enfrenta não mudam. Cristo continua sempre a brilhar no centro da história e da vida.” Os Concílios proclamam a solene correspondência com Cristo e com a Igreja e levam à irradiação universal da verdade, à reta direção. “Agora, porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a mais a validade da sua doutrina do que renovando condenações.” A Igreja é a Mãe amorosa de todos.

Aos fiéis que lotavam a Praça São Pedro o Pontífice fez, de improviso, “o discurso da Lua”. A multidão em meio às luzes de mais de 100 mil tochas foi uma cena que emocionou o Pontífice, que decidiu olhar para fora da janela. Disse aos colaboradores que ia dar uma bênção. Mas depois, pronunciou um discurso improvisado que tocou o coração de todos: “Queridos filhos, ouço as vossas vozes. A minha é apenas uma voz, mas condensa a voz do mundo inteiro; todo o mundo está aqui representado. Parece que até a lua se antecipou esta noite – observai-a para o alto! – para contemplar este espetáculo”. “Esta manhã”, explicou, “foi um espetáculo que nem a Basílica de São Pedro, que tem quatro séculos de história, alguma vez pôde contemplar”. E ressoaram palavras que ficarão marcadas para sempre: “Quando regressardes a casa, encontrareis os vossos filhos; fazei uma carícia às vossas crianças e dizei: ‘esta é a carícia do Papa’. Encontrareis algumas lágrimas por enxugar. Fazei alguma coisa, dizei uma boa palavra. ‘O Papa está connosco, especialmente nas horas tristes e de amargura’.”

Os trabalhos do Concílio foram articulados em quatro sessões, de que resultaram quatro Constituições, nove Decretos e três Declarações. A Constituição Dogmática sobre a Igreja é o documento mais solene do Concílio. Abre com a expressão “Lumen gentium” (luz dos povos). E, “porque a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano, pretende, na sequência dos anteriores Concílios, expor, com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a sua natureza e missão universal”. A Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, iniciada com a expressão “Dei Verbum”, toca nos próprios fundamentos da fé da Igreja: a palavra de Deus, a sua revelação e a sua transmissão. A Constituição “Sacrosanctum Concilium” delineia os princípios da reforma e da promoção da liturgia. A Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, “Gaudium et Spes”, aborda, na primeira parte, a vocação do homem e, na segunda, alguns problemas mais urgentes.

“Um evento de graça para a Igreja e para o mundo” – escreveu Francisco no prefácio do livro “João XXIII. Vaticano II um Concílio para o Mundo”. Do Vaticano II recebemos muito. Por exemplo, aprofundámos, a importância do povo de Deus, recordada até 184 vezes, o que ajuda a compreender o facto de a Igreja não ser uma elite de sacerdotes e consagrados e de cada batizado ser sujeito ativo da evangelização. Para Bento XVI, o Vaticano II foi um “novo Pentecostes”. “Esperávamos que tudo se renovasse”, disse aos sacerdotes de Roma, a 14 de fevereiro de 2013. “Sentia-se que a Igreja não estava indo adiante, que se reduzia, que parecia uma realidade do passado e não a portadora do futuro”. E naquele momento, “esperávamos que esta relação fosse renovada, que mudasse; que a Igreja fosse novamente uma força para amanhã e uma força para hoje”. São João Paulo II, na carta apostólica Novo Millennio Ineunte, chama o Concílio de “a grande graça da qual a Igreja se beneficiou no século XX: nele nos é oferecida uma bússola segura para nos orientarmos no caminho do século que agora começa”.

No encerramento do Concílio, a 8 de dezembro de 1965, na sua “saudação universal”, São Paulo VI enfatizou que “para a Igreja Católica ninguém é estranho”. E fez votos para que a sua saudação acendesse nos corações a nova centelha da divina caridade, que pode incendiar os princípios, doutrinas e proposições que o Concílio preparou e que, inflamada de caridade, opere realmente, na Igreja e no mundo, aquela renovação dos pensamentos, das atividades, dos costumes, da força moral e da alegria e esperança, que foi o propósito do Concílio.

2022.10.11 – Louro de Carvalho

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