domingo, 16 de agosto de 2015

A dimensão migrante e/ou peregrina da Igreja

É do senso eclesial que a Igreja – novo Povo de Deus (muitos irmanados no mesmo destino), Corpo de Cristo (todos unidos), seu rebanho (sob a condução de Cristo) e sua esposa (com as marcas da diferença, da fidelidade e da maternidade) – significa a comunhão trinitária e gera a comunhão entre os homens e destes com o Pai, por Cristo, no Espírito. Porém, o seu modo de ser e estar concretiza-se não de forma estática e no apego ao mundo, mas na caminhada/peregrinação rumo à Pátria definitiva – o que é experiencializado frequentemente com a peregrinação de nossas casas/ou terra de residência a um santuário (figuração da escatologia).
A carta aos Filipenses di-lo de modo inequívoco:
“Nós, porém, somos cidadãos dos céus. É de lá que ansiosamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura” (Fl 3,20-21).

E o santuário como meta de peregrinação vem espelhado, por exemplo, no salmo 122/121, um dos “Cânticos de Sião”, que celebram Sião ou Jerusalém como cidade da presença privilegiada de Deus e local de peregrinação:
“Que alegria, quando me disseram: ‘Vamos para a casa do SENHOR!’. Os nossos pés detêm-se às tuas portas, ó Jerusalém! Jerusalém, cidade bem construída, harmoniosamente edificada. Para lá sobem as tribos, as tribos do SENHOR, segundo o costume de Israel, para louvar o nome do SENHOR.” (vv 1-4).

O próprio Jesus, na sua oração sacerdotal, rezava ao Pai, não para que retirasse os discípulos do mundo, mas para que os livrasse do Maligno (cf Jo 17,15). Por outro lado, Jesus confortava os discípulos na sua condição de peregrinos:
“Quando Eu tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei novamente e hei de levar-vos para junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também. E, para onde Eu vou, vós sabeis o caminho. (…) Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim.”  (Jo 14,3-4.6).

Por seu turno, a 1.ª Carta de Pedro afigura-se como um texto fundamental para tratar da vida do cristão e da Igreja num mundo corrupto e corruptor. Constitui para a Igreja Peregrina (feita de discípulos, crentes, irmãos e apóstolos) uma espécie de GPS bíblico para andarmos em segurança pelo labirinto espiritual da pós-modernidade:
“Caríssimos, rogo-vos que, como estrangeiros e peregrinos, vos abstenhais dos desejos carnais, que combatem contra a alma. Tende entre os gentios um comportamento exemplar, de modo que, ao acusarem-vos de malfeitores, vendo as vossas boas obras, acabem por dar glória a Deus no dia da sua visita.” (Pe 2,11-12).

A condição de peregrino postula a postura e o exercício da hospitalidade e do acolhimento. O mesmo apóstolo Pedro recomenda:
Exercei a hospitalidade uns com os outros, sem queixas.” (1Pe 4,9).
A Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium (LG) relaciona a condição de peregrina da Igreja com a do antigo povo de Israel que a precede e a prefigura:
“Assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já chamado Igreja de Deus (cf Ne 13,1; Nm 20,4; Dt 23,1 ss.), assim o novo Israel, que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e perene cidade (cf Hebr 3-4), se chama também Igreja de Cristo (cf Mt 16,18; 18,17), pois que Ele a adquiriu com o Seu próprio sangue (cf At 20,28), encheu-a com o Seu espírito e dotou-a dos meios convenientes para a unidade visível e social. Aos que se voltam com fé para Cristo, autor de salvação e princípio de unidade e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela seja para todos e cada um sacramento visível desta unidade salutar.” (LG,9).

A condição de peregrina implica a missão. Veja-se o que rezam os Evangelhos a este respeito.
João recolhe palavras de Cristo tanto na véspera da Paixão, na oração sacerdotal, como na aparição aos discípulos, após a Ressurreição:
“Assim como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo.” (Jo 17,18). A paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós.” (Jo 20,21).

Mateus vê o mandato missionário nas palavras de despedida que recolhe, com a garantia da assistência da parte do mandante, cabeça da Igreja:
“Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28, 19-20).

Por sua vez, Marcos regista o mandato, com a antevisão de resultados e promessa de sinais que acompanharão o exercício da missão:
“Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for batizado será salvo; mas, quem não acreditar será condenado. Estes sinais acompanharão aqueles que acreditarem: em meu nome expulsarão demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal; hão de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados.” (Mc 16,15-18).
Depois, vem a reação dos discípulos e a confirmação da promessa do senhor:
“Eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam.” (Mc 16,20).

Lucas, porém, coloca o mandato no âmbito das últimas instruções, garantindo aos discípulos que tudo aconteceu com Ele com estava escrito a seu respeito. E eles são constituídos como testemunhas de tudo o que aconteceu. Para tanto, serão revestidos com a força do Alto.
“Depois, disse-lhes: ‘Estas foram as palavras que vos disse, quando ainda estava convosco: que era necessário que se cumprisse tudo quanto a meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos’. Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: ‘Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E Eu vou mandar sobre vós o que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força do Alto’.” (Lc 24,44-49).

O Vaticano II, no documento citado, garante o caráter transfronteiriço e universalista da Igreja:
Destinada a estender-se a todas as regiões, ela [a Igreja] entra na história dos homens, ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos. (LG,9).

Depois, alia a índole de peregrina da Igreja ao mandato do Senhor e à obrigação de ensinar sempre e por toda a parte:
Assim como o Filho foi enviado pelo Pai, assim também Ele enviou os Apóstolos (cf Jo 20,21) dizendo: ‘ide, pois, ensinai todas as gentes, batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinai-as a observar tudo aquilo que vos mandei. Eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos’ (Mt 28,19-20). A Igreja recebeu dos Apóstolos este mandato solene de Cristo de anunciar a verdade da salvação e de a levar até aos confins da terra (cf At 1,8). Faz, portanto, suas as palavras do Apóstolo: ‘ai de mim, se não prego o Evangelho’ (1Cor 9,16), e por isso continua a mandar incessantemente os seus arautos, até que as novas igrejas se formem plenamente e prossigam, por sua vez, a obra da evangelização. (LG,17).
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Ora, o peregrino, se fizer desta condição um modo de vida – sair da sua casa e da sua terra para melhorar as condições de vida ou com um objetivo que implique uma certa duração é também um migrante, que se transforma em emigrante em relação ao país de origem e imigrante em relação ao país de acolhimento (?!). Isso aconteceu com Abraão de Ur para Canaã (Gn 12), com os seus descendentes que formaram o povo de Israel para o Egito (Gn 46) – donde sai pela mão de Moisés (Ex 13). Depois, foram forçados ao exílio da Babilónia por cinco décadas (2Rs 25; Jr 52), donde foram autorizados a sair por decreto de Ciro, da Pérsia (Esd 1,2-4; 6,3-12). Pedro, no momento do Pentecostes, falou aos judeus que ali acorreram às Festas provindos da diáspora:
“Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: ‘Mas esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!’.” (At 2,5-11).

A Igreja, novo Povo de Deus, continua na condição de peregrina e migrante que herdou do antigo Israel e que, por força da sua encarnação partilha com o homem de hoje e de todos os tempos. Se olharmos para o mundo da História e da Geografia, a nossa Europa foi demandada por sucessivos contingentes: áricos, fenícios, cartagineses, persas, árabes, ciganos, judeus e alguns dos considerados bárbaros (uns eram europeus, mas outros não). Os romanos estenderam os seus tentáculos aonde puderam (Síria, Palestina, Egito, Norte de África). Mais tarde, espanhóis e portugueses demandaram o mundo inteiro, com objetivos económicos, políticos e missionários. E hoje anda-se por todo o lado (até se emitem vistos gold). Traziam ou levavam armas e outros objetos, mas não consta que fossem portadores de cartão de cidadão, passaporte, vistos, autorização de residência. E não se levantaram muros de hostilidade empedernida como agora. Jesus – Mestre, Senhor e Fundamento da Igreja – não se acantonou em regime de permanência na Sinagoga ou no Templo a ensinar, a rezar ou à espera que O procurassem. Antes, se dirigia a vários lugares e mandava os discípulos em missão. Pedro diz do seu estilo de vida:
“Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos quantos eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele. E nós somos testemunhas do que Ele fez no país dos judeus e em Jerusalém.” (At 10,37-39).

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É de notar que o povo de Deus foi prófugo em relação à escravidão do Egito e à perseguição que lhe moveu Faraó e refugiou-se no deserto. Tanto na condição de prófugo com na de refugiado, sentiu, para lá da agrura e da tentação pecaminosa, a condução mosaica e a proteção divina. Também a Igreja, movida pela perseguição desencadeada em terras da Judeia e limítrofes, se sentiu impulsionada pelo Espírito para partir em missão/migração por todo o lado
(vd At 8,4ss.26ss; 13;14; 16;17; 18; 20; 25; 27; 28). A Igreja (figurada na mulher do Apocalipse) perseguida pela serpente (poderes imperialistas de Roma, Rússia, China, EUA, etc.) refugia-se no sofrimento e no conforto da terra e seus filhos são acolhidos junto de Deus e do seu trono (cf Ap 12).
Quem não conhece a história das perseguições do “ontem” e do “hoje” aos cristãos (e a todos quantos lutam pelo seguimento dos ditames da sua consciência) ou o dinamismo da Igreja que sofre?
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Como se pode dizer que hoje a Igreja é migrante? Além da sua condição de peregrina a caminho do Pai, ela prepara, nos territórios onde goza de estabilidade, sacerdotes, religiosos/as e leigos/as para a missão permanente ou temporária onde é mais necessário levar humanização e evangelho ou apoio às comunidades de migrantes, refugiados, militares e forças de paz. Vai a Igreja montar seus hospitais e hospícios de campanha em auxílio de quem precisa de atenção, vez e voz – não questionando quem sofre, trabalha, mas apoiando quem está no terreno e denunciando, sendo o caso, a enormidade da postura de quem delibera, manda e obriga o impensável, o inumano. E Maria, a peregrina com Jesus, é a peregrina pela e com a Igreja.
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O bispo de Leiria-Fátima declarou, em Fátima, a 12 de agosto, que o problema dos migrantes e refugiados a tentar diariamente atingir o território europeu, sobretudo pelo Mediterrâneo, “é um drama que se está a transformar em tragédia”, que “clama por solidariedade urgente”, quer da parte das Nações Unidas, quer das instâncias europeias. Sublinhou que “estas pessoas são seres humanos, que têm uma história e uma família e não podem ser vistas apenas como números”, não podendo a Europa “ficar a olhar para o lado” ante este problema. E apontou o exemplo de países mais pobres, como a Jordânia ou o Curdistão Iraquiano, que “têm menos recursos mas um coração maior do que a Europa”, ao acolherem mais de 2 milhões de refugiados.  
Dom António Marto admitiu que a Igreja em Portugal possa abrir as portas de suas estruturas, para acolher os 1.400 refugiados sírios que o governo português se disponibilizou a receber. 
E, para a diretora da Obra Católica Portuguesa das Migrações, os migrantes “são porta-voz das desigualdades sociais, das perseguições, da pobreza e portadores de fé”. A eles é preciso dar acolhimento, com base nos valores da justiça e da solidariedade – o que implica a promoção de uma sensibilização geral e, em particular, da comunidade cristã, para ultrapassar barreiras como as que existem atualmente em pessoas a achar que “os refugiados vão viver à conta do Estado”. 
Também o bispo das Forças Armadas e de Segurança, que presidiu à peregrinação fatimita de agosto, destacou a dimensão migrante da Igreja, alertando para o facto de o ocidente estar a “construir muros de betão e mentais que podem ser muito perigosos”, e agradeceu “aos muitos missionários pelo trabalho enorme que estão a fazer” junto da comunidade portuguesa espalhada pelo mundo. Mais lançou um alerta geral sobre a situação que nos envolve:
“Basta de cimeiras para descortinar formas de impedir que os povos da fome se aproximem da nossa casa, apenas para apanharem as migalhas que caem da nossa mesa! Não mais o travar caminho aos que fogem à carnificina horrorosa e bárbara dos que matam em nome de uma fé!” (vd homilia de 13 de maio).

E o insigne prelado fez um apelo de apostolado contínuo – discreto, mas explícito e eficaz – aos emigrantes (a todos e cada um), também eles partícipes nesta mesma Igreja migrante:
“Levai aos homens e mulheres dos países onde viveis esta abertura de espírito, esta verdadeira evangelização. Mostrai-lhes que a nossa Igreja não possui fronteiras e é mãe de todos. Apresentai-lhes uma Igreja que é migrante por natureza: começou com um fundador, Jesus, que, mal nasceu, teve de se refugiar no Egito; nos seus Apóstolos, foi enviada a todo o mundo; e muito deve aos cristãos de Jerusalém que tiveram de deixar a sua terra após a perseguição que martirizou Estêvão, pois estes tornaram-se os primeiros evangelizadores além-fronteiras. Também hoje vos convido a irdes à sociedade onde residis levar a luz da fé e de uma mentalidade mais humanizada. Fazei-o com alegria e são orgulho: vós dais mais aos povos que vos acolheram do que trazeis deles. Dais mais economicamente – se eles vos dão cinco, vós gerais riqueza de quinze ou vinte – e dais muito mais em luz da fé, pois, alguns deles, deixaram apagar a vela do seu batismo.” (ib).
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Verifica-se, por outro lado, que os países do golfo Pérsico atraem cada vez mais investidores e mão-de-obra de todas as regiões do mundo, em particular da Ásia. Nestes países há pelo menos 3 milhões de católicos, que formam uma Igreja migrante, de estrangeiros, para estrangeiros.
O bispo Paul Hinder refere que “muitos europeus que não conhecem a situação certamente pensam que na Arábia não haja cristãos e que, portanto, mesmo para um bispo não haverá lá nada que fazer”. Ele próprio teve de corrigir a sua visão do contexto, pois, já em 1997, aí encontrou “uma variegada fileira de capuchinhos e de outros sacerdotes provenientes de países diferentes, que no seio de uma sociedade islâmica assistiam pastoralmente comunidades cristãs bastante vivas de católicos provenientes de mais de uma centena de nacionalidades”.
Refere mesmo que, ao falar-se de cristãos do Médio Oriente, a maior parte pensa nas Igrejas orientais, que, não obstante as dificuldades, sobreviveram ao longo de uma história rica de lutas e de sofrimentos. Delas só uma parte vive em comunhão com Roma, por exemplo, os maronitas ou as minorias que no curso da História optaram pela união com a Igreja Romana.
Porém, nos últimos anos, verificou-se uma notável imigração de cristãos nos países do Médio Oriente em ascensão económica. Assim, a partir dos anos 60, há cada vez mais investidores e mão de obra de todas as regiões do mundo no Médio Oriente, o que originou uma situação paradoxal. Enquanto muitas Igrejas orientais nas suas zonas de origem têm cada vez menos fiéis, nos países do golfo Pérsico tem-se vindo a formar uma Igreja de migrantes, jovem, vital, vibrante, mas estruturalmente frágil. O seu número global rondará os 50 por cento de todos os católicos que residem no Médio Oriente.
Por Deus, é de reforçar o apoio às plúrimas ondas de refugiados e às igrejas migrantes em crescimento,  impedindo que o acolhimento do migrante se transforme em hostilidade e exploração até à sua redução à escravatura, como sucedeu outrora com o povo de Israel. Que a Virgem peregrina, na sua imagem ou aparecida nos diversos lugares, a todos inspire!

2015.08.15 – Louro de Carvalho 

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