segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O embrulho da perda ou transferência de soberania

Politicamente, a soberania consiste no exercício do serviço de autoridade que reside num povo e que se exerce por intermédio de órgãos constitucionalmente estabelecidos. O Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, define este conceito como sendo a autoridade suprema do poder público e como a alteza ou excelência não superada em qualquer ordem imaterial.
Segundo a teorização de Jean Bodin (1530-1596), a noção de soberania aplica-se à entidade que não conhece superior na ordem externa nem igual na ordem interna. Diz respeito à autoridade suprema, geralmente no âmbito do país ou do Estado soberano, e consiste no direito exclusivo de uma autoridade suprema sobre toda a população que ocupa o respetivo território, em geral, uma nação.
Entende-se, então, por soberania a qualidade máxima de poder político e social por meio da qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado e por ele apresentadas prevalecem sobre as normas e decisões emanadas de grupos sociais intermediários, tais como a família, a escola, a empresa a Igreja, o clube, etc. Neste sentido, no âmbito interno, a soberania estatal traduz a superioridade hierárquica das suas diretrizes na organização da vida comunitária. O poder soberano manifesta-se a nível interno, principalmente, pela constituição de um sistema de normas jurídicas capaz de estabelecer as pautas fundamentais do comportamento humano, a nível individual e social.
Já no âmbito do direito internacional, a soberania consiste no direito de um Estado exercer os seus poderes sem imposições ou limitações advindas do exterior. A violação da soberania de um país pode comportar consequências trágicas, entre as quais se enquadra o conflito bélico, sobretudo se falharem as ações diplomáticas. Por outro lado, no âmbito externo, o poder soberano traduz a ideia de igualdade de todos os Estados no concerto das nações, ou seja, na comunidade internacional, sendo admissíveis as relações livremente estabelecidas por acordo ou pacto bilateral ou multilateral ou pelos tratados de adesão a projetos de interesses comum ou de plataformas de alcance humanitário e/ou universal.
Há casos em que a soberania no seu mais alto expoente é atribuída a um indivíduo, como na monarquia, na qual o líder é chamado genericamente de soberano (rei, imperador…), embora, na maior parte dos casos, pelo menos teoricamente, se entenda que a soberania reside no povo, que delega ou deputa o seu exercício nos seus representantes livremente escolhidos, incluindo o chefe de Estado, nos regimes republicanos.
O conceito de soberania foi teorizado pelo francês Jean Bodin no seu livro intitulado Os Seis Livros da República, em que sustenta a tese seguinte: a Monarquia francesa é de origem hereditária; o Rei não está sujeito a condições postas pelo povo; todo o poder do Estado pertence ao Rei e não pode ser partilhado com mais ninguém (clero, nobreza ou povo). – (cf RISCAL, Sandra. O conceito de soberania em Jean Bodin: um estudo do desenvolvimento das ideias de Administração Pública, Governo e Estado no século XVI. Campinas: [s.n.], 2001).
Por seu turno, Jean-Jacques Rousseau transfere o lugar da soberania da pessoa do governante para todo o povo, entendido como corpo político ou sociedade de cidadãos (é o liberalismo político no seu melhor, em que a cada cidadão corresponde um voto). A soberania é inalienável e indivisível e deve ser exercida pela vontade geral, denominada por soberania popular. Na ótica de Rousseau, soberano é o povo. Porém, cada cidadão é soberano e súbdito em simultâneo, dado que contribui para a criação da autoridade soberana (como tal, faz parte da mesma) embora também esteja submetido a esta autoridade e seja obrigado a obedecer-lhe.
Assim, para Rousseau, todos os cidadãos são livres e iguais, considerando que não são mandados por um indivíduo em concreto com pode próprio, recebendo, antes, ordens de um sujeito indeterminado que representa a vontade geral.
Embora tenha sido Rousseau o maior responsável pela formulação do conceito de soberania popular, foi Emmanuel-Joseph Sieyès quem tratou de desenvolver a noção de soberania nacional. Para Sieyès, a soberania está radicada na nação e não no povo, já que também se deve ter em conta o legado histórico e  cultural e os valores sob os quais foi fundada a nação.
A partir do século XIX foi afinado o conceito jurídico de soberania, segundo o qual esta não pertence a nenhuma autoridade particular, mas ao Estado enquanto pessoa jurídica. A noção jurídica de soberania orienta as relações entre Estados e enfatiza a necessidade de legitimação do poder político pela lei, elaborada nos termos da Constituição.
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No âmbito do direito constitucional português, a soberania é uma caraterística fundamental do Estado. A este respeito, o art.º 1.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estabelece:
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Além de entender a soberania como caraterística essencial da nossa República, o legislador constituinte estriba-a na dignidade da pessoa humana, na vontade do povo e no empenho na construção de uma sociedade com as notas de liberdade, justiça e solidariedade. E, de acordo com o seu art.º 2.º, a CRP faz assentar na soberania popular o Estado de direito democrático.
Mais: acima do Estado está a soberania una e indivisível (ou poder político, que reside no povo, vd art.º 108.º da CRP), como valor supremo, e a Constituição, como instrumento do primado da soberania. A elas se sujeita o Estado e as leis (cf art.º 3.º da CRP), movimentando-se os órgãos de soberania (previstos no art.º 110.º da CRP) nos parâmetros da legalidade democrática.
Sobre as relações internacionais e o direito internacional, a CRP consigna, em dois artigos (6.º e 7.º): os princípios da independência nacional, do respeito dos direitos humanos e dos povos, da igualdade e reciprocidade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos de cada um, da cooperação, da subsidiariedade e da reciprocidade; a abolição do imperialismo e do colonialismo, da opressão e da exploração; o reconhecimento dos povos à autodeterminação e à independência; e a adoção das normas do direito internacional e as constantes das convenções internacionais devidamente ratificadas, bem como as emanadas das organizações que Portugal integre e as das autoridades europeias.
Especificamente, sobre o tratado europeu o art.º 295.º da CRP estabelece:
“O disposto no n.º 3 do artigo 115.º (limitativo) não prejudica a possibilidade de convocação e de efetivação de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da união europeia.”
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Quando da adesão de Portugal à CEE, alguns blocos da opinião pública, alegando que o processo implicaria a perda de soberania e da identidade portuguesa, opinava que a matéria deveria ter sido referendada. Porém, a CRP não admitia a possibilidade de referendo.
Depois, quando se colocou a questão do aprofundamento do projeto europeu (UE) e a criação da moeda única (UM), o então Presidente da República fez a sua força para a instituição do mecanismo do referendo. E, perante a renitência do poder executivo e do poder legislativo, fez a premonição: “Hão de arrepender-se”.
Em 2005, os líderes dos maiores partidos na campanha eleitoral prometeram submeter a referendo nacional o tratado constitucional europeu. Não obstante, o país vinculou-se aos tratados sem a expressão da vontade popular através do referendo e, no último caso, sem mandato popular, uma vez que o partido ganhador o tinha prometido. Torneou a questão dizendo que o texto subscrito em nome de Portugal era outro (uma falácia), já que o inicial fora rejeitado por outros países quer por via referendária quer por via parlamentar.
É certo que na letra da lei, não há perda nem alienação da soberania; há apenas a transferência (voluntária?!) de soberania para as instituições europeias. Só que não foi o mandato popular que a ditou e, na prática, não são aquelas instituições quem decide, mas o diretório (ou uma pessoa).
E os governos, porque vivêramos acima das nossas possibilidades (?!), acriticamente sujeitaram-se a tudo o que a troika impôs e até a ultrapassaram pela esquerda, pela direita, por cima e por baixo. Submetem à comissão Europeia os PEC (programas de estabilidade e crescimento) e os DEO (documentos de estabilidade orçamental), dispensando-se de prestar contas aos portugueses, nem que fosse para discussão nacional em campanha eleitoral e ratificação parlamentar. E aceitaram inscrever o limite ao défice orçamental numa lei de valor reforçado e querem inscrevê-lo na CRP, bem como um limite para a dívida externa.
Aceitam a alegada imposição de Bruxelas da ausência por parte do Estado de uma posição dominante, vetante ou privilegiada (golden share) nas empresas em cujo capital social este detenha participação, bem como a não injeção de capital nas empresas públicas e obrigação de privatizar empresas de propriedade total ou parcial do Estado.
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Neste contexto, o Governo sujeitou ao veredicto da Comissão Europeia (CE), através da sua Direção-Geral da Concorrência (DGC) o negócio da venda de 61% da TAP, a dita companhia de bandeira, de interesse estratégico nacional.
Ora, segundo o que noticia hoje, dia 24 de agosto, o Diário Económico, com ampla replicação na Comunicação Social, a DGC europeia, em conversas com a CE, declarou-se “incompetente para julgar o caso”, por este não cumprir os critérios necessários para ter dimensão comunitária. Assim, a portuguesa Autoridade da Concorrência (AdC) foi chamada a decidir sobre a venda no passado dia vinte, embora aguarde a publicação oficial dessa notificação antes de se pronunciar.
Por seu turno, o regulador brasileiro da concorrência, entretanto, já se pronunciou sobre a venda, dado que David Neeleman é também dono da transportadora Azul. Porém, o Conselho Administrativo de Defesa Económica (CADE) não considerou que haja riscos para o mercado, já que a TAP e a Azul têm voos com origens em locais diferentes e as empresas aéreas brasileiras possuem centros de manutenção próprios, não ficando dependentes dos facultados pela TAP.
O Governo decidiu, em junho, que a proposta do consórcio Gateway era a melhor no atinente à contribuição para o reforço da capacidade económico-financeira do grupo TAP, ao projeto estratégico e ao valor global apresentado para a aquisição de ações, critérios de avaliação previstos no caderno de encargos. Em termos financeiros, o consórcio Gateway propõe-se a pagar o valor mínimo de 354 milhões de euros pelo grupo, dos quais 10 milhões são encaixe direto para o Estado e o restante sob a forma de injeção de capital na empresa.
Nestes termos, no dia 24 de junho, foi assinado o contrato de compra e venda de 61% do capital da TAP entre membros do Governo e responsáveis do consórcio Gateway (de David Neeleman e Humberto Pedrosa), vencedor da privatização da companhia aérea. E o processo de venda da TAP foi aprovado, sem restrições, pelo CADE. O regulador brasileiro da concorrência foi chamado, como já foi referido, a pronunciar-se porque David Neeleman, que controla 49% da Atlantic Gateway, é também dono da Azul, companhia aérea brasileira. No despacho publicado há cerca de duas semanas, o CADE considerou que a operação não configura uma sobreposição horizontal apesar de tanto a TAP como a Azul atuarem no transporte de passageiros e carga, considerando a diferença no local de origem dos voos das companhias. O regulador entendeu também que a operação não traz risco para o mercado de manutenção e reparação de aviões e componentes, onde a TAP opera por via da antiga VEM, já que as principais empresas aéreas brasileiras – TAM, Gol e Avianca Brasil – possuem os seus próprios centros de manutenção.
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A razão por que Bruxelas se declarou incompetente para decidir a venda da TAP foi considerar que esta operação não tem dimensão europeia. Para determinar se o negócio cumpre os critérios de operação com dimensão comunitária é tido em conta o volume de negócios total realizado pelo conjunto das empresas envolvidas seja a nível mundial – mais de 2.500 milhões ou 5.000 milhões de euros – seja a nível individual – pode ir de 100 milhões a 250 milhões de euros em um de pelo menos três Estados-membros. Do que é conhecido em torno desta operação, está em causa uma faturação de 2.698 milhões de euros relativa à TAP em 2014, não sendo conhecidos publicamente os volumes de negócio da DGN, empresa de David Neeleman, e da HPGB, de Humberto Pedrosa – as empresas que formam o consórcio que venceu a privatização.
Ao contrário do que se previa, será, pois, a AdC a decidir sobre a venda da TAP a Humberto Pedrosa e a David Neeleman. A operação foi notificada no passado dia vinte ao regulador português pelo consórcio Atlantic Gateway. 
Contactada, a AdC que não comenta notificações até que estas sejam oficialmente publicadas, o que deverá acontecer no prazo de cinco dias úteis a contar da data da notificação que aconteceu no passado dia 20, como já foi referido.
Por seu turno, o porta-voz da DGC europeia recusa-se a comentar operações que não tenham sido formalmente notificadas a Bruxelas, limitando-se a informar que a carta enviada por Germán Efromovich fora remetida para a ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil) e acrescentando que “o procedimento está a decorrer junto das autoridades portuguesas”.
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Porém, o regulador português tem até dezembro para decidir. Com efeito, considerando os prazos definidos pela legislação da concorrência, a análise da venda da TAP pode prolongar-se até ao final do ano.
A lei determina que a AdC tem um prazo de 30 dias, a contar da data da notificação, para avaliar a venda da TAP. Mas este calendário é suspenso de cada vez que que o regulador pedir informações adicionais ao consórcio Atlantic Gateway. Por cada um destes pedidos o regulador dá aos interessados um “prazo razoável” para responder. Uma vez terminada esta avaliação, a AdC pode decidir aprovar a operação ou dar início ao que a lei chama de investigação aprofundada, caso considere que a mesma, tal como notificada coloca entraves à concorrência.
Se isto acontecer, serão negociadas entre o consórcio Atlantic Gateway e o regulador as alterações a introduzir à operação para que seja salvaguarda a concorrência. Para esta segunda fase a lei determina um período de 90 dias.
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Os comentários nas redes sociais não se fazem esperar. Trazem-se à colação alguns pela sua pertinência:
Segundo alguns, “Bruxelas declarou-se incompetente para a venda da TAP, não fez o mesmo que o ‘governo Português’, que é incompetente e nada declara, também porque não sabe”. E aventam a hipótese de ser “só porque a Alemanha não está interessada”, pois, “se fossem os aeroportos (terra, especialmente as “tiras”) já estaria na corrida como na Grécia, sendo que “o que interessa é ‘comprar’ território nem que seja com o dinheiro dos juros que se lhes paga”.
Para outros, “a incompetência de um ‘governo’ bateu no fundo, nada que alguns Portugueses não saibam, mas os cegos, os apoiantes porque sim, e os outros que ainda não perceberam que a farinha do saco é toda do mesmo tipo e não dá para fazer pão, os Portugueses preparam-se para continuar a passar fome, tal como no tempo de antanho fazem das ‘tripas’ coração”.
Outros ironizam: “Os Portugueses gostam do fado, mas de preferência do da desgraçadinha, mudar de rumo não está infelizmente nas suas intenções”; depois, “engraçado, o caso não tem dimensão para ser analisado, mas tem dimensão para obrigar a privatizar, ou alguém terá faltado à verdade”. Mais: “se Bruxelas não tem que se meter neste negócio, porque tem que se estar a meter no negócio da sardinha que nossa e só nossa?”.
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Por mim, que acredito que não vai ser por falta de aviões que os portugueses vão deixar de viajar e de receber estrangeiros, custa-me a ver ser vendido tudo o que é de interesse. Por outro lado, estranho que a DGC europeia não queira ter decidido sobre um caso que levantou acesa polémica, inclusive sobre a legitimidade europeia de um dos componentes do grupo vencedor e hipoteticamente sobre as condições do caderno de encargos. Depois, pergunto-me como é que teve competência para estudar se o caso reúne as condições dos critérios para a não dimensão europeia e não para decidir.
Por este andar, Portugal deixará de ter dimensão europeia? Ou será que a AdC vai anular o negócio só porque o caso, não tendo dimensão europeia, não está sujeito às restrições e imposições europeias?  
Não se trata de perder ou transferir soberania, mas de gozar com a soberania “nim”, nem transferida nem por transferir, nem perdida nem achada. É mais uma vez o peso ou não peso dos números que dita o valor ou não da soberania. Haja quem nos defenda! Ou os eurocratas não estão a ser bem pagos e com boas condições de trabalho e de reforma?

2015.08.24 – Louro de Carvalho

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