sábado, 29 de agosto de 2015

Terá razão alguma opinião pública?

A hipocrisia política é má conselheira por duas ordens de razões: primeiro, porque contraria demasiadas vezes a verdade, sem que daí advenha qualquer benefício para a coisa pública (ao contrário da diplomacia, que, em nome da boa relação entre Estados e da paz, gere a informação); depois, porque se desmascara ao primeiro descuido ou logo que um objetivo mais ambicioso se imponha.
Vêm estas considerações na sequência de hoje, dia 29 de agosto, a Comunicação Social ter relevado à saciedade as declarações e a interrogação do cauteloso, mas ora descuidado, eurodeputado Paulo Rangel na que foi a última aula deste ano da universidade de verão do PSD. O orador daquele areópago partidário elogiou o alegado “ataque sério e consistente” feito nos últimos tempos à corrupção e à “promiscuidade”, criticando a forma como o líder socialista “faz graçolas” com “coisas demasiado sérias”, como o caso do BES/GES.
O ora desacautelado professor universitário disse que “foi durante este Governo, não é obra deste Governo, não é mérito deste Governo, mas foi durante este Governo que pela primeira vez em Portugal houve um ataque sério, profundo e consistente, à corrupção e à promiscuidade”.
É certo que, fazendo jus ao seu espírito e estilo de cautela, ressalvou que o dito “ataque sério” não é obra nem mérito deste Governo. Todavia, esta dita “Universidade de Verão”, que, a meu ver, peca por compaginar um desfile de discursos emergentes do circunstancialismo de cada ano e não sobre temas de fundo que forneçam uma capacitação reflexiva de ciência e práxis políticas, deu azo a uma polémica inútil e que vem ao arrepio do que vulgarmente se professa.
Todos os operadores políticos e judiciais afirmam a plenos pulmões que a Justiça tem os seus princípios, o seu tempo, a sua metodologia. Todos afirmam epigraficamente: à justiça o que é da justiça e à política o que é da política. Mais: são recorrentes as asserções de que o Ministério Público e os Tribunais não têm agenda política nem se deixam condicionar pela política.
Eu costumo dizer que todo o ato da magistratura é expressão do poder político que a Constituição lhe atribui. Por isso, eu atrevo-me a acrescentar o adjetivo “partidária” ao nome “política”. Parece que foi em nome daqueles pressupostos que António Costa conseguiu que o congresso do seu partido tivesse gerido com bastante discrição a então recente situação da detenção e prisão preventiva do ex-primeiro-ministro (não lhe tendo corrido de feição o que se tem passado a seguir), chegando ao ponto de declarar que a amizade e os sentimentos pelos amigos não podem impedir nem o avanço da justiça nem o da ação política. E, razoavelmente, também Passos Coelho assegurou não dever pronunciar-se por casos concretos que tramitam na área da justiça.
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Ora, a intervenção de Paulo Rangel, que não significa nem a fuga à presunção de inocência do arguido até sentença condenatória transitada em julgado nem o atropelo à presunção de que se faz justiça – e justiça, tanto quanto possível, célere, imparcial e eficaz – mas parece vir dar razão àqueles que, sobretudo nos últimos tempos, se mostram convictos de que o Ministério Público (MP) e o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) têm, subjacente e até ostentam um propósito de política partidária, favorável à atual maioria parlamentar, ou então uma sede de protagonismo pessoal.
A própria defesa do ex-primeiro-ministro (e o próprio, que não é um preso político, mas um político preso) martela recorrentemente a tecla da suposta ilegalidade da prisão preventiva, o mecanismo da prisão para investigar, em vez da prisão como medida de coação para evitar os putativos factos previstos no CPP (código do processo penal). Mais: chega a afirmar-se que aquilo que está em causa é o homem em si e não os factos, sem provas, ou o ensarilhamento das eleições ao partido de que é oriundo o político preso.
Com efeito, as coincidências são muitas, o que leva a que alguma opinião pública tenha dificuldade em aceitar, perante a diversidade de informação que vem para as pantalhas da Comunicação Social, que a investigação esteja a ser célere, cuidada e imparcial. Se é certo que os arguidos devem ter o mesmo tratamento de base, também é certo que um arguido deveras exposto – no caso, um político preso – deve ser tratado de modo que não persistam dúvidas legítimas de que ele esteja a ser utilizado com outros fins, que não os de justiça. Ou, como dizem alguns, há que tratar de igual forma o que é igual e de forma diferente o que é diferente. Os operadores judiciais não podem colocar-se a jeito de críticas infundadas.
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Ademais, um(a) detentor(a) de cargo político vir apregoar a separação dos poderes e, ao mesmo tempo e a propósito de casos concretos, bradar ao vento que acabou o tempo da impunidade é, no mínimo, contraditório. Por outro lado, como é que se pode apregoar a separação dos poderes, se nunca ela foi estatuída, antes foram os poderes assumidos, cada um em seu próprio quadro, mas com base no mecanismo estável da interdependência e no do sistema de funcionamento dos contrapesos. Não é verdade que é o Presidente quem nomeia o Governo, que emerge do Parlamento? Não é o Parlamento que faz as leis, que o Presidente promulga ou veta ou, ainda, submete à apreciação do Tribunal Constitucional para juízo da constitucionalidade? Não são os juízes que aplicam as leis aos casos concretos que se lhes apresentam para julgamento? Não pode o Presidente demitir o primeiro-ministro em determinados casos e dissolver o Parlamento? Não é ele que marca as eleições? E, nalguns países, o Presidente da República não é eleito pelo Parlamento ou por um colégio eleitoral em que tem preponderância o Parlamento?
Onde está a separação? É verdade que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as dos outros órgãos, mas também cabe ao Parlamento decretar amnistias e ao Presidente conceder indultos.(Dispenso-me de invocar os artigos específicos da CRP, porque o tenho feito recorrentemente).
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Mas Paulo Rangel não tem a razão toda quando, ao elogiar o alegado “ataque sério e consistente” feito nos últimos tempos à corrupção e à “promiscuidade”, acentuou que isso não é obra nem mérito do atual Governo. Se quer partidarizar a investigação e a justiça, pode recordar que foi este Governo quem nomeou a atual Procuradora-Geral da República, quem alterou o ordenamento judiciário (o CITIUS, os diversos códigos), quem dá os meios para a investigação, quem disponibiliza as instalações onde funcionam os tribunais, quem leva o MP a definir as prioridades de investigação. Aliás, o MP não é independente do Governo, mas autónomo.
E não tem razão quando ironicamente interroga: “Alguém acredita que um primeiro-ministro seria investigado se o PS fosse governo?”. Ele sabe perfeitamente que Sócrates esteve sob escuta (e investigação), pelo menos, nos casos do “Free port” e da “Face Oculta”. Que se saiba, foi o MP (e não o Governo) que encerrou o processo Free port, com umas dezenas de perguntas por fazer ao então primeiro-ministro, alegadamente por falta de tempo, e foram o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Procurador-Geral da República que determinaram a destruição das cassetes das escutas que alegadamente envolviam o primeiro-ministro.
Não será, antes, verdade que todos os governos se tentam a influenciar, a seu modo, a tramitação da investigação e da justiça? Não serão também os investigadores e magistrados homens e mulheres não imunes de todo ao contexto em que vivem e operam?
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Por seu turno, o também eurodeputado do PS, Francisco Assis, considerou que as de Rangel são “declarações de uma gravidade extrema e significam uma clara operação de partidarização do sistema judicial”, pelo que exigiu ao líder do PSD e primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, que clarifique “perante o país se se reconhece nestas declarações e neste estilo de campanha eleitoral ou se, pelo contrário, censura esta forma de fazer política”.
Assis entende as declarações de Paulo Rangel como “um insulto a um princípio fundamental de um Estado de direito democrático, que é o princípio da separação dos poderes, constituem uma ofensa ao sistema judicial nas suas várias vertentes”.
Sobre este aspeto, esclareci o meu ponto de vista acima. Todavia, o eurodeputado do PS tem razão quando acentua a gravidade do que foi dito:
“Não foram proferidas [as declarações] por uma pessoa qualquer – foram proferidas pelo Dr. Paulo Rangel, que é hoje uma das figuras de referência do PSD – nem foram proferidas num contexto qualquer. Foram proferidas num ambiente institucional de uma Universidade de Verão do PSD”.

Francisco Assis foi perentório:
“Uma situação desta natureza não permite meias-tintas, exige uma demarcação absolutamente clara. Os portugueses têm o direito de saber se o Dr. Pedro Passos concorda ou não concorda com este estilo de intervenção política”.

Mais do que saber o que pensa Passos Coelho, eu preferia saber o pensa o PS (isso o sei e o disse Rangel), que perde a oportunidade privilegiada de se pronunciar a preceito e claramente.
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Quanto às ditas graçolas de que é acusado o líder do partido socialista, que venha atirar a primeira pedra o político que não tenha usado de suas graçolas na discussão política partidária e interpartidária, mesmo a propósito de assuntos sérios.
No atinente à investigação de banqueiros, foi no tempo da última governança socialista que eclodiu o caso do BPN e a constituição de arguido de alguns intervenientes e a prisão do seu presidente executivo. Rangel deve recordar-se. E que tem feito a justiça hoje?
Relativamente à discussão do programa da PAF e do PS, é óbvio que as leituras são diferentes. Nem outra coisa seria de esperar. Porém, o juízo sobre a matéria não cabe no âmbito desta reflexão, pelo menos hoje.
De resto, os portugueses farão o seu juízo sobre a pureza ou não do ambiente democrático e sobre a bondade ou não das propostas eleitorais de cada candidatura (partido ou frente), procurando saber a verdade toda a respeito dos números, bons ou maus, tendo em conta que as metodologias de fabrico das estatísticas não foram alteradas substancialmente nos últimos anos. Porém, é preciso fazer e ler – e exigir que se faça – estatística de todos os dados, fenómenos e movimentos e não apenas de alguns.
Meias verdades não são compatíveis com o politicamente correto. Ou já desapareceu a claustrofobia democrática apontada outrora pelo eurodeputado socialdemocrata?

2015.08.29 – Louro de Carvalho

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