O semanário Sol, de 31 de julho, dá conta duma
presumível divergência de posição dos bispos portugueses a propósito de algumas
questões sobre a família e que, tendo ficado pendentes na reflexão sinodal da
assembleia extraordinária do Sínodo que ocorreu em outubro de 2014, serão
novamente objeto de reflexão na próxima assembleia ordinária do próximo mês de
outubro.
Não esteve nem está em causa
qualquer ponto de doutrina sobre a família ou sobre o matrimónio católico. Ou
seja, sobre a formação e o papel da família à luz da doutrina da Igreja não há
divergências entre os pastores da Igreja que vive em Portugal, bem como sobre a
natureza e os fins do matrimónio católico.
Assim, não há aspetos propriamente
progressistas nem conservadores sobre a indissolubilidade do matrimónio
celebrado à face da Igreja. Não é anulável o matrimónio, a não ser o chamado
matrimónio rato e não consumado (válido). De resto, é passível de declaração, pelos
tribunais eclesiásticos, de inexistência ou de nulidade (neste segundo caso,
matrimónio existente, mas não válido) do matrimónio. O matrimónio inexistente
ocorre raramente, por exemplo, por falta de consentimento; o nulo, ocorre mais
vezes, por exemplo, se o consentimento foi prestado por medo grave, com erro de
pessoa, com impedimento dirimente não dispensado ou por falta de jurisdição do
oficiante. O que supostamente dividirá os bispos portugueses é o tacto pastoral
com as pessoas cujo matrimónio falhou e, por via desse facto, se encontram na
situação de divórcio e novas núpcias à face das leis estaduais, e eventualmente
com filhos do novo casamento e/ou do anterior.
Segundo o que alegadamente
transpirou para o exterior, os bispos teriam que instruir com a sua posição
coletiva os delegados da CEP (Conferência
Episcopal Portuguesa) à próxima assembleia sinodal (eleitos consensualmente, o cardeal patriarca
de Lisboa, que é o presidente da CEP, e o presidente da Comissão Episcopal da
Família). Aí terão surgido duas propostas: uma, no plausível pressuposto
da obrigação eclesial de não exclusão, de possibilitar a comunhão sacramental
após um percurso formativo, penitencial e casuístico a juízo do bispo
diocesano; a outra ficar-se-ia pela simplificação dos processos de nulidade do
matrimónio (demasiado dispendiosos).
Dizem que a primeira (dita
progressista) terá sido apresentada pelo bispo de
Leiria-Fátima e que segue as pegadas do cardeal alemão Walter Kasper; e a
segunda (dita conservadora)
terá sido a do cardeal patriarca e presidente da CEP.
É certo que o direito
canónico, ao considerar as pessoas que se voltaram a casar como infiéis ao
primeiro cônjuge, prevê a sua exclusão dos sacramentos, entre os quais a
comunhão sacramental. Todavia, deve anotar-se que a exclusão da comunhão sacramental
não constitui uma pena, mas uma indicação de que não há consonância com a
doutrina e disciplina da Igreja. Já a excomunhão é uma sanção grave, que
implica também uma exclusão da comunidade e seus afazeres; e, como qualquer
pena, tem de estar claramente tipificada na lei, o que não é o caso.
***
Sobre o caso, ocorre-me
tecer algumas considerações. Primeiro, não percebo como é que uma sessão e
documento, cujo conteúdo o plenário pretendeu que ficasse secreto,
transpareceram para a Comunicação Social, rezando o comunicado final – e bem –
que o assunto fora objeto de aprofundada análise por parte dos membros da assembleia
da CEP. Será que em matérias tão sensíveis haverá veneráveis prelados que
pretendam o indesejável vedetismo? Lucrará a CEP com a divulgação da fricção de
tendências entre os alegados bispos progressistas do Centro e os restantes? Porquê,
a ser verdade, se abriu excecionalmente a votação aos bispos eméritos? Se os
estatutos o preveem para certas matérias neles tipificadas, não é de se falar
de exceção. E que discurso terão no Sínodo os delegados se um pertence a uma
tendência e o outro a outra?
Depois, o porta-voz da CEP
fez um apontamento correto, mas redundante, dizendo que esta divergência é
natural, que vai ao encontro do instrumentum
laboris do Sínodo dos Bispos (o qual também aponta as duas sensibilidades),
que sínodo significa caminho em conjunto, que a reflexão
continuará lá e que a última palavra será do Papa, dado que o Sínodo tem
caráter consultivo.
Além disso, não é lícito que
se pressuponha que uma proposta defenda mais a doutrina da Igreja em detrimento
da outra; o que está em causa, como se disse, é a atuação pastoral junto das
famílias cuja situação não está literalmente em consonância com o perfil
perfilhado pela Igreja.
Por outro lado, parece
temerário dizer que os divorciados que voltam a casar vivem em adultério,
estando por isso impedidos de comungar, ou pior, dizer que estão excomungados.
Tais afirmações parecem ter
como subtexto o segmento discursivo de Cristo em Mateus (vd Mt 5,27-28):
“Ouvistes os que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém,
digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu
adultério no seu coração.”.
Ora, este segmento
discursivo tem em vista sobretudo estender a exigência dos atos aos pensamentos
e aos desejos e não classificar de adultério uma situação permanente. E não
condena o simples desejo da mulher pelo homem e vice-versa, mas o desejo
consentido ou o desregramento da concupiscência.
Ninguém de boa fé vai dizer
que os casados civilmente ou os que vivem juntos (dizer “união de facto” não passa de um
eufemismo aceite pela sociedade e pela lei) estão em situação de
permanente “relação sexual” ou que os homens ou mulheres com tendência
homossexual (irreversível ou não)
– a viverem isolados, juntos ou casados civilmente – estejam em permanente
situação de pecado. Que se saiba, os bispos não se pronunciaram sobre os
homossexuais. Ou será que nesta abordagem surtiu unanimidade? Também estes
devem ser tratados com respeito, sentido de inclusão e, se o quiserem, no
âmbito da cooperação em Igreja.
Não faz sentido rotular de
adulterinos os filhos nascidos de pessoa casada fora da constância do
matrimónio católico ou ilegítimos os nascidos de mãe solteira (ou incógnita) ou de pai solteiro (ou incógnito) – o que só contribuiria
para o regresso a tempos antigos, gerar ou alimentar conflitos culturais e,
sobretudo, responsabilizar os filhos pelos atos dos pais (inadmissível).
Porém, voltando aos
recasados, é inconcebível que numa diocese pequena e sem trunfos humanos
significativos em Teologia um sacerdote (antipapa ou anticardeal?!) aponte “heresia” na
posição do cardeal Kasper ou que pressuponha que o papa, ao passar o microfone
ao predito cardeal, tenha acometido uma “imprudência” e ateado “um fogo difícil
de apagar”. E, se o Papa persistir na linha do acolhimento mais intenso e
alargado – repito – não está a anular a palavra de Cristo ou a “rasgar páginas
da Bíblia”. Estará mais provavelmente a seguir a via Christi da não condenação, mas da compreensão e do perdão a
quem muito amou (cf Lc
7,47-48.50; Jo 8,11).
A situação dos divorciados e
recasados tem de ser encarada nos contextos que a sociedade atual apresenta e
na teia das questões antropológicas e sociais com que os homens e mulheres se
debatem e que originam situações factuais nem sempre as mais corretas e
desejáveis – a precisar de mais apoio e de menos anátemas.
No entanto, a premonição de
Gonçalo Portocarrero é oportuna quanto a divisões no seio da Igreja, pois, se a
posição de Kasper for por diante, alguns, alegando a pureza doutrinal,
persistirão na postura atual, incluindo anticanónica e, em certa medida,
antipastoralmente a negação batismo a filhos de não casados catolicamente; mas,
se o Papa optar pela manutenção do atual estado de coisas, alguns atirar-se-ão
para a frente, passando os mais conservadores a capitalizar essa posição, como
sendo estes os bons e os outros os hereges.
***
O que disse hoje, 5 de
agosto, o Papa na Sala Paulo VI, no quadro das suas catequeses sobre a família
e frente aos acólitos que se encontraram em Roma?
. Disse
claramente que os divorciados que voltam a casar “não são excomungados”; são,
antes, “parte da Igreja”.
.
Pediu que se distinguisse entre “quem foi confrontado com a separação e quem a
provocou”.
. Aduziu que “a consciência
que um acolhimento fraternal e atento, com amor e verdade, é necessário para os
batizados que estabeleceram uma nova relação depois do fracasso de um casamento
sacramental progrediu muito”.
. Insistiu: “Nada de portas
fechadas. Todos podem participar, de uma forma ou de outra, na vida da Igreja”.
. Sublinhou a necessidade de a Igreja Católica saber integrar os casais
divorciados ou recasados, frisando textualmente:
“Estes batizados, que
estabeleceram uma nova relação depois da dissolução do seu matrimónio
sacramental, precisam de um acolhimento fraterno e atento, no amor e na
verdade, estas pessoas não foram excomungadas, e não podem ser tratadas como
tal, elas fazem sempre parte da Igreja”.
. Esclareceu:
“A Igreja não ignora que a
situação dos divorciados e recasados contradiz o sacramento do matrimónio, mas,
por outro, o seu coração materno, animado pelo Espírito Santo, leva-a sempre a
buscar o bem e a salvação de todas as pessoas”.
. Questionou como é que isso pode ser concretizado se estas pessoas
em concreto são muitas vezes “mantidas à distância da vida da comunidade”.
. Vincou a responsabilidade das comunidades católicas de fazerem
com que aqueles que viveram a “rutura do seu vínculo matrimonial”, ou iniciaram
um novo caminho conjugal, “se sintam acolhidos e possam viver segundo uma fé
convicta e praticada”.
. Acrescentou que isto é tanto mais importante, quando estão em
causa também “muitas crianças” saídas destas relações, e que “são quem mais
sofre com esta situação”, as quais devem ter e ver na Igreja uma mãe atenta a
todos, sempre disposta à escuta e ao encontro.
. Chegou ao ponto de dizer que os divorciados e novamente casados
podem servir de porta de entrada na Igreja para os seus filhos.
***
Posto isto, onde é que está o rasgar das páginas da Bíblia ou a
anulação da doutrina de Jesus? Não se verá aqui, antes, o apelo aos peregrinos
lusos a “renovarem o seu empenho” na construção de uma Igreja “cada vez mais
acolhedora” e onde todas as pessoas “experimentem a misericórdia e o amor de Deus”?
2015.08.05 – Louro de Carvalho
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