segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Em torno de um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II -I

Um noviço do Mosteiro da Santa Cruz escreveu para a Associação Cultural Santo Atanásio, da Missão Cristo Rei, Resistência Católica Ipatinga, um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II, em que, a par de informação histórica consistente, ficam espelhadas as razões por que a maior parte dos documentos conciliares não são aceites por este movimento integrista dito genuinamente católico, alinhado com a Fraternidade de São Pio X, que acusa o concílio de proporcionar a “vitória do Modernismo”.
Aqui fica a informação, expurgada dos aspetos inaceitáveis e explícita ou implicitamente contraditados. Também não se transcrevem as perguntas, de fácil subentendimento.
Primeira Parte
1- O Vaticano II foi o XXI Concílio Ecuménico da história da Igreja Católica e o segundo que se realizou no Vaticano, entre 1962 e 1965. Em termos de participação, foi a maior concentração de Padres Conciliares reunidos na Basílica de São Pedro.
2- O anúncio da sua convocação foi feito pelo Papa João XXIII, em 25 de janeiro de 1959, na Basílica do Mosteiro beneditino de São Paulo Extramuros, aos 17 Cardeais, três meses depois de assumir o sumo pontificado (foi eleito Sumo Pontífice a 28 de outubro de 1958). Oficialmente, a sua convocação surge com a Constituição Humanae salutis, de 25 de dezembro de 1961. E o motu próprio Consilium, de 2 de fevereiro de 1962, marcou a inauguração da grande assembleia para 11 de outubro de 1962, 4.º ano do pontificado do Papa Roncalli, que presidiu pessoalmente à sua abertura.
3- O Concílio desenvolveu-se em 4 sessões no decurso de 4 anos: a primeira sessão, de 11 de outubro a 8 de dezembro de 1962; a segunda sessão, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963; a terceira sessão, de 14 de setembro a 21 de novembro de 1964; e a quarta sessão, de 14 de setembro a 8 de dezembro de 1965.
4- Quem presidiu pessoalmente à celebração do encerramento do Concílio foi o papa Paulo VI em 8 de dezembro de 1965, sucessor de João XXIII, que devido à morte do seu predecessor em 3 de junho de 1963, deu continuidade ao Concílio, promulgou os seus documentos e presidiu ao seu encerramento.
5- O número médio de Padres Conciliares (bispos) ultrapassou o de dois mil. Fala-se em 2.400, além de observadores de outras religiões e mulheres.
6- O Vaticano II foi um concílio eminentemente pastoral (e não meramente pastoral como refere o autor do pequeno catecismo). O próprio papa João XXIII expressou, na sua alocução de abertura, esta perspetiva de não querer dogmatizar nada do que nele fosse apresentado, ou seja, não quis usar da infalibilidade explícita nos documentos promulgados. Por isso, a doutrina e a instrução conciliares constituem uma preciosa oferta ao campo da vida pastoral da Igreja e à renovação espiritual dos seus membros. João XXIII, no seu discurso de abertura, exprimiu-o nos termos seguintes:
 “A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos (...). Para isso não havia necessidade de um Concílio. (...) o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências, é necessário que esta doutrina certa e imutável (...) seja aprofundada e exposta de forma a responder as exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do depositum fidei (...) e outra é a formulação com que são enunciadas (...). Será preciso atribuir importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração (...), cujo caráter é prevalentemente pastoral”.

7- É neste ponto que o Vaticano II se torna diferente dos anteriores: em ter declarado não querer ser mais que um concílio pastoral, que não tem em vista definir expressamente as questões de fé, mas dar diretrizes pastorais para a vida da Igreja.
8- Todavia, há que reconhecer que todos os concílios da Igreja foram também concílios pastorais. Não obstante, não prescindiram de definir o dogma, desmascarar erros, defender a doutrina católica e lutar contra as desordens disciplinares e morais. A originalidade do Vaticano II foi a de querer ser “pastoral” de uma maneira nova, recusando-se a definir explicitamente o dogma, a condenar taxativamente os erros (embora não resista a denunciá-los com toda a clareza) e mesmo a apresentar a Doutrina Católica de modo defensivo e apologético. O concílio retomando e reafirmando a doutrina dos anteriores Concílios, pretende “pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a natureza e missão universal da Igreja. E as condições do nosso tempo tornam ainda mais urgentes este dever da Igreja, para que deste modo os homens todos, hoje mais estreitamente ligados uns aos outros, pelos diversos laços sociais, técnicos e culturais, alcancem também a plena unidade em Cristo” (cf LG,1).
9- O Vaticano II promulgou dezasseis textos: 9 decretos, 3 declarações e 4 constituições. De entre estas, duas são constituições dogmáticas: a Lumem Gentium (sobre a Igreja: ser e missão) e a Dei Verbum (sobre a Divina Revelação). Isso não significa que tenham proclamado expressamente dogmas ou que sejam de si infalíveis, mas que tratam de matérias referentes ao dogma. A este respeito, Paulo VI declarou explicitamente, a 12 de janeiro de 1966, algumas semanas após o seu encerramento da última sessão conciliar:
“Tendo em vista o caráter pastoral do Concílio, este evitou proclamar de modo extraordinário dogmas dotados da nota de infalibilidade”.

10- Todos os Concílios adaptaram a Igreja ao seu tempo. Fizeram-no, no entanto, anatematizando os erros do dia, punindo os desvios morais ou disciplinares da época, armando a Igreja contra os inimigos. A adaptação não visava conformar-se ao século, mas a resistir-lhe de forma mais eficaz. Não se tratava de agradar ao mundo, mas de o confrontar e de o vencer, para agradar a Deus. João XXIII e Paulo VI procuraram, porém, tornar a Igreja Católica atraente para o homem moderno, mas sem pactuar com o espírito e o estilo mundanos – sublinhe-se. Para tanto, ela deixa de se autorreferenciar e põe o acento em Jesus Cristo, seu fundador, mestre e guia.
11- João XXIII, em 14 de fevereiro de 1960, exprimiu-se nos termos seguintes:
“O fim primeiro e imediato do Concílio é o de apresentar ao mundo a Igreja de Deus, no seu perpétuo vigor de vida e de verdade, e com sua legislação adaptada às circunstâncias presentes, de modo a ser sempre mais conforme à sua divina missão e a estar mais pronta para acorrer às necessidades de hoje e de amanhã. Em seguida, se os irmãos que se separaram e que ainda estão divididos entre si virem a concretizar o comum desejo de unidade, poderemos dizer-lhes então, com uma viva emoção: é a vossa casa; a casa daqueles que trazem o sinal de Cristo”.

12- O Cardeal Montini, futuro Paulo VI, declarava, em abril de 1962:
“A Igreja se propõe, pelo próximo Concílio, a entrar em contacto com o mundo (...) Ela se esforçará para ser (...) amável em sua linguagem e na sua maneira de ser”.

E, paralelamente ao Concílio, Paulo VI, afirmava, na sua encíclica Ecclesiam Suam:
“A Igreja poderia propor-se a realçar os males que se podem encontrar no mundo, a pronunciar anátemas e suscitar cruzadas contra eles (...); parece-nos, ao contrário, que a relação da Igreja com o mundo (...) se pode exprimir melhor sob a forma de um diálogo”.

13- Com efeito, enquanto a Comissão Preparatória criada por João XXIII pensava organizar um concílio normal – teve um enorme trabalho para esboçar esquemas que servissem de base aos debates conciliares –, o Secretário para a Unidade dos Cristãos, igualmente estabelecido por João XXIII (em junho de 1960), trabalhava num outro sentido. E a verdadeira intenção de João XXIII prevaleceu: no início do concílio, livrara-se dos esquemas preparatórios, julgados demasiado doutrinais, e o Concílio comprometeu-se com a rota preparada pelo Secretariado.
14- Torna-se, assim, claro que o vaticano II não foi um concílio como os demais. Os textos que promulgou, fruto de um “diálogo” com o mundo, são mais textos diplomáticos (destinados a dar uma boa imagem a Igreja) do que textos magisteriais (ensinando as verdades da fé contra tudo e contra todos), porém, sem deixar de firmar e acentuar a doutrina, dando-lhe um rosto desconhecido ou restituindo-lhe os meandros esquecidos.
15- Por outro lado, torna-se igualmente claro que, mesmo que o Vaticano II não tenha produzido expressamente atos de Magistério Extraordinário, a infalibilidade lhe pertence enquanto órgão do Magistério Ordinário Universal, porque quase todos os bispos do mundo nele se fizeram então presentes. Além disso, o ecumenismo e a liberdade religiosa são ensinados hoje pelos bispos do mundo inteiro, o que equivale ao exercício do Magistério Ordinário Universal, que é infalível.
16- Assim, a sua doutrina e demais disposições não podem ser votadas ao desprezo nem ser consideradas matéria de segunda grandeza, mas espelho de uma doutrina e disciplina de Igreja mais do “sim” que do “não”, mais do vulto misericordioso de Deus, incarnado em Jesus Cristo, que veio para que tenhamos a vida em abundância e não para condenar o mundo (cf Jo 3,16-17; 10,10).
17- Apesar de tudo, não pode deixar de sobressair a dimensão eminentemente pastoral do Vaticano II. A este respeito o Cardeal Ratzinger, em 1988, afirmou expressamente:
“A verdade é que o Concílio, ele mesmo, não definiu nenhum dogma e procurou situar-se num nível mais modesto, simplesmente como um concílio pastoral. Apesar disso, numerosos são aqueles que o interpretam como se se tratasse de um ‘superdogma’ que sozinho tem a importância”.

18- Tal, porém, não legitima a subestimação que alguns pretendem fazer do Concílio, acusando-o de ser, “desde a origem, objeto de um jogo desonesto”, já que supostamente, durante ele, se insistira sobre seu caráter pastoral para evitar exprimir-se com precisão teológica, mas, depois, se desejara dar-lhe uma autoridade igual ou mesmo superior à dos concílios anteriores. É, pois, de rejeitar a posição e Mons. Lefebvre, a partir de 1976, que declarou:
“É preciso, então, desmitificar este Concílio, que eles quiseram pastoral em razão de seu horror instintivo pelo dogma e para facilitar a introdução oficial de ideias liberais num texto eclesiástico. Mas, terminada a operação, dogmatizaram o Concílio, o compararam ao de Niceia, o pretendem semelhante aos outros, senão superior!”

19- Concluindo esta parte, embora o próprio Concílio Vaticano II não tenha definido expressamente dogmas em matéria de fé e moral, os seus documentos são de ter em plena linha de conta, quer encarados em si próprios, quer no desenvolvimento que a caminhada sinodal lhes veio a imprimir, não só às constituições, mas também aos decretos e declarações. Constitui forte temeridade passar em claro a doutrina conciliar como querer alimentar a preguiça supina do seu não estudo.
Não se pode desprezar subestimar a oportunidade da passagem do Espírito ou o tempo de Deus (o kairós).

2015.08.30 – Louro de Carvalho

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