Um noviço do Mosteiro da Santa Cruz escreveu para a
Associação Cultural Santo Atanásio, da Missão Cristo Rei, Resistência
Católica Ipatinga, um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II, em que, a par de
informação histórica consistente, ficam espelhadas as razões por que a maior
parte dos documentos conciliares não são aceites por este movimento integrista dito
genuinamente católico, alinhado com a Fraternidade de São Pio X, que acusa o
concílio de proporcionar a “vitória do Modernismo”.
Aqui fica a informação, expurgada dos aspetos inaceitáveis e explícita
ou implicitamente contraditados. Também não se transcrevem as perguntas, de
fácil subentendimento.
Primeira Parte
1- O Vaticano II foi o XXI Concílio Ecuménico
da história da Igreja Católica e o segundo que se realizou no Vaticano, entre
1962 e 1965. Em termos de participação, foi a maior concentração de Padres
Conciliares reunidos na Basílica de São Pedro.
2- O anúncio da sua convocação foi feito
pelo Papa João XXIII, em 25 de janeiro de 1959, na Basílica do Mosteiro
beneditino de São Paulo Extramuros, aos 17 Cardeais, três meses depois de assumir
o sumo pontificado (foi eleito Sumo
Pontífice a 28 de outubro de 1958). Oficialmente, a sua convocação surge
com a Constituição Humanae salutis,
de 25 de dezembro de 1961. E o motu próprio Consilium,
de 2 de fevereiro de 1962, marcou a inauguração da grande assembleia para 11 de
outubro de 1962, 4.º ano do pontificado do Papa Roncalli, que presidiu
pessoalmente à sua abertura.
3- O Concílio desenvolveu-se em 4 sessões no
decurso de 4 anos: a primeira sessão, de 11 de outubro a 8 de dezembro de 1962;
a segunda sessão, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963; a terceira sessão,
de 14 de setembro a 21 de novembro de 1964; e a quarta sessão, de 14 de
setembro a 8 de dezembro de 1965.
4- Quem presidiu pessoalmente à celebração
do encerramento do Concílio foi o papa Paulo VI em 8 de dezembro de 1965,
sucessor de João XXIII, que devido à morte do seu predecessor em 3 de junho de
1963, deu continuidade ao Concílio, promulgou os seus documentos e presidiu ao
seu encerramento.
5- O número médio de Padres Conciliares (bispos) ultrapassou o de dois mil. Fala-se em 2.400, além de
observadores de outras religiões e mulheres.
6- O Vaticano II foi um concílio
eminentemente pastoral (e não meramente
pastoral como refere o autor do pequeno catecismo). O próprio papa João XXIII expressou, na
sua alocução de abertura, esta perspetiva de não querer dogmatizar nada do que
nele fosse apresentado, ou seja, não quis usar da infalibilidade explícita nos
documentos promulgados. Por isso, a doutrina e a instrução conciliares
constituem uma preciosa oferta ao campo da vida pastoral da Igreja e à
renovação espiritual dos seus membros. João XXIII, no seu discurso de abertura,
exprimiu-o nos termos seguintes:
“A finalidade principal deste Concílio não é,
portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja,
repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos
(...). Para isso não havia necessidade de um Concílio. (...) o espírito
cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na
penetração doutrinal e na formação das consciências, é necessário que esta
doutrina certa e imutável (...) seja aprofundada e exposta de forma a responder
as exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do depositum fidei (...) e outra é a formulação com que são enunciadas
(...). Será preciso atribuir importância a esta forma e, se necessário,
insistir com paciência, na sua elaboração (...), cujo caráter é prevalentemente
pastoral”.
7- É neste ponto que o Vaticano II se torna
diferente dos anteriores: em ter declarado não querer ser mais que um concílio pastoral, que não tem em vista
definir expressamente as questões de fé, mas dar diretrizes pastorais para a
vida da Igreja.
8- Todavia, há que reconhecer que todos os
concílios da Igreja foram também concílios pastorais. Não obstante, não
prescindiram de definir o dogma, desmascarar erros, defender a doutrina
católica e lutar contra as desordens disciplinares e morais. A originalidade do
Vaticano II foi a de querer ser “pastoral” de uma maneira nova,
recusando-se a definir explicitamente o dogma, a condenar taxativamente os
erros (embora não resista a denunciá-los com toda
a clareza) e mesmo a apresentar a Doutrina Católica de modo
defensivo e apologético. O concílio retomando e reafirmando a doutrina dos anteriores
Concílios, pretende “pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo
o mundo, a natureza e missão universal da Igreja. E as condições do nosso tempo
tornam ainda mais urgentes este dever da Igreja, para que deste modo os homens
todos, hoje mais estreitamente ligados uns aos outros, pelos diversos laços
sociais, técnicos e culturais, alcancem também a plena unidade em Cristo” (cf LG,1).
9- O Vaticano II promulgou dezasseis
textos: 9 decretos, 3 declarações e 4 constituições. De entre estas, duas são constituições dogmáticas: a Lumem
Gentium (sobre a Igreja: ser e missão) e a Dei Verbum
(sobre a Divina Revelação). Isso não significa
que tenham proclamado expressamente dogmas ou que sejam de si infalíveis, mas
que tratam de matérias referentes ao dogma. A este respeito, Paulo VI declarou
explicitamente, a 12 de janeiro de 1966, algumas semanas após o seu
encerramento da última sessão conciliar:
“Tendo em vista o
caráter pastoral do Concílio, este evitou proclamar de modo extraordinário
dogmas dotados da nota de infalibilidade”.
10- Todos os Concílios adaptaram a Igreja ao
seu tempo. Fizeram-no, no entanto, anatematizando os erros do dia, punindo os
desvios morais ou disciplinares da época, armando a Igreja contra os inimigos.
A adaptação não visava conformar-se ao século, mas a resistir-lhe de forma mais
eficaz. Não se tratava de agradar ao mundo, mas de o confrontar e de o vencer,
para agradar a Deus. João XXIII e Paulo VI procuraram, porém, tornar a Igreja
Católica atraente para o homem moderno, mas sem pactuar com o espírito e o
estilo mundanos – sublinhe-se. Para tanto, ela deixa de se autorreferenciar e
põe o acento em Jesus Cristo, seu fundador, mestre e guia.
11- João XXIII, em 14 de fevereiro de 1960,
exprimiu-se nos termos seguintes:
“O fim primeiro e
imediato do Concílio é o de apresentar ao mundo a Igreja de Deus,
no seu perpétuo vigor de vida e de verdade, e com sua legislação adaptada às
circunstâncias presentes, de modo a ser sempre mais conforme à sua divina
missão e a estar mais pronta para acorrer às necessidades de hoje e de amanhã.
Em seguida, se os irmãos que se separaram e que ainda estão divididos entre si
virem a concretizar o comum desejo de unidade, poderemos dizer-lhes então, com
uma viva emoção: é a vossa casa; a casa daqueles que trazem o sinal de Cristo”.
12- O Cardeal Montini, futuro Paulo VI,
declarava, em abril de 1962:
“A Igreja se propõe,
pelo próximo Concílio, a entrar em contacto com o mundo (...) Ela se esforçará
para ser (...) amável em sua linguagem e na sua maneira de ser”.
E,
paralelamente ao Concílio, Paulo VI, afirmava, na sua encíclica Ecclesiam
Suam:
“A Igreja poderia propor-se
a realçar os males que se podem encontrar no mundo, a pronunciar anátemas e
suscitar cruzadas contra eles (...); parece-nos, ao contrário, que
a relação da Igreja com o mundo (...) se pode exprimir melhor sob a forma de um
diálogo”.
13- Com efeito, enquanto a Comissão Preparatória criada por João
XXIII pensava organizar um concílio normal – teve um enorme trabalho para
esboçar esquemas que servissem de base aos debates conciliares –, o Secretário para a Unidade dos Cristãos,
igualmente estabelecido por João XXIII (em
junho de 1960), trabalhava num outro sentido. E a verdadeira
intenção de João XXIII prevaleceu: no início do concílio, livrara-se dos
esquemas preparatórios, julgados demasiado doutrinais,
e o Concílio comprometeu-se com a rota preparada pelo Secretariado.
14- Torna-se, assim, claro que o vaticano II
não foi um concílio como os demais. Os textos que promulgou, fruto de um
“diálogo” com o mundo, são mais textos diplomáticos (destinados a dar uma boa imagem a Igreja) do que textos
magisteriais (ensinando as verdades da fé contra tudo e
contra todos), porém, sem deixar de firmar e acentuar a doutrina,
dando-lhe um rosto desconhecido ou restituindo-lhe os meandros esquecidos.
15- Por outro lado, torna-se igualmente
claro que, mesmo que o Vaticano II não tenha produzido expressamente atos de
Magistério Extraordinário, a infalibilidade lhe pertence enquanto órgão do
Magistério Ordinário Universal, porque quase todos os bispos do mundo nele se
fizeram então presentes. Além disso, o ecumenismo e a liberdade religiosa são
ensinados hoje pelos bispos do mundo inteiro, o que equivale ao exercício do
Magistério Ordinário Universal, que é infalível.
16- Assim, a sua doutrina e demais
disposições não podem ser votadas ao desprezo nem ser consideradas matéria de
segunda grandeza, mas espelho de uma doutrina e disciplina de Igreja mais do
“sim” que do “não”, mais do vulto misericordioso de Deus, incarnado em Jesus
Cristo, que veio para que tenhamos a vida em abundância e não para condenar o
mundo (cf Jo 3,16-17; 10,10).
17- Apesar de tudo, não pode deixar de
sobressair a dimensão eminentemente pastoral do Vaticano II. A este respeito o
Cardeal Ratzinger, em 1988, afirmou expressamente:
“A verdade é que o
Concílio, ele mesmo, não definiu nenhum dogma e procurou situar-se num nível
mais modesto, simplesmente como um concílio pastoral. Apesar disso, numerosos
são aqueles que o interpretam como se se tratasse de um ‘superdogma’ que
sozinho tem a importância”.
18- Tal, porém, não legitima a subestimação
que alguns pretendem fazer do Concílio, acusando-o de ser, “desde a origem,
objeto de um jogo desonesto”, já que supostamente, durante ele, se insistira
sobre seu caráter pastoral para evitar exprimir-se com precisão teológica, mas,
depois, se desejara dar-lhe uma autoridade igual ou mesmo superior à dos
concílios anteriores. É, pois, de rejeitar a posição e Mons. Lefebvre, a partir
de 1976, que declarou:
“É preciso, então,
desmitificar este Concílio, que eles quiseram pastoral em razão de seu horror
instintivo pelo dogma e para facilitar a introdução oficial de ideias liberais
num texto eclesiástico. Mas, terminada a operação, dogmatizaram o
Concílio, o compararam ao de Niceia, o pretendem semelhante aos outros, senão
superior!”
19- Concluindo esta parte, embora o próprio
Concílio Vaticano II não tenha definido expressamente dogmas em matéria de fé e
moral, os seus documentos são de ter em plena linha de conta, quer encarados em
si próprios, quer no desenvolvimento que a caminhada sinodal lhes veio a
imprimir, não só às constituições, mas também aos decretos e declarações. Constitui
forte temeridade passar em claro a doutrina conciliar como querer alimentar a
preguiça supina do seu não estudo.
Não se
pode desprezar subestimar a oportunidade da passagem do Espírito ou o tempo de
Deus (o kairós).
2015.08.30 – Louro de Carvalho
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