Tem passado para alguma opinião pública a
ideia de que o Cristianismo é uma religião perpassada pelo ranço moralista ou o
catálogo das proibições. Com efeito, muitos assim leem a Escritura, os
catecismos, o código de direto canónico e, mesmo, os notáveis 16 documentos do
Vaticano II.
Esquecem o essencial do anúncio bíblico
neotestamentário: “O Reino de Deus está próximo.
Arrependei-vos e acreditai na Boa Nova” (Mc 1,15); “estes
[sinais] foram escritos para crerdes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e,
crendo, tenhais a vida Nele” (Jo 20,31); “Ide,
pois, e fazei discípulos de todos os povos, batizando-o sem nome do Pai, e do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado.
E sabei que Eu estarei convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28,19-20). Saltam por cima de passagens essenciais do livro dos Atos dos Apóstolos,
por exemplo:
“Deus estabeleceu como Senhor e Messias
a esse Jesus por vós crucificado” (At 2,36); “Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o
templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e
simplicidade de coração. Louvavam
a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava, todos os dias,
o número dos que tinham entrado no caminho da salvação.” (At 2,46-47); “A
multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma.
Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum.
Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor
Jesus, e uma grande graça operava em todos eles.” (At 4,32-33).
Passam
por cima da 1.ª carta de João:
“Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a
ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos! É por isso
que o mundo não nos conhece, uma vez que O não conheceu a Ele. Caríssimos, agora já somos
filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos
é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos
tal como Ele é.” (1Jo 3,1-2).
A própria Lei, que vinha redigida mais num
sentido negativista, situava-se no contexto da Aliança de Deus com o seu povo (cf Ex 20; Dt 5). E isto não é negativista. Porém, o Evangelho apresenta os mandamentos da
Lei de forma claramente positiva:
“Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus
reuniram-se em grupo. E um deles, que era legista, perguntou-Lhe para O
embaraçar: ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Jesus
disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro
mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a
ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.”
(Mt 22, 34-40; cf Mc
12,28-34; Lc 10,25-28; Jo 13,33-35).
Esquece-se a mensagem e a experiência dos santos
Padres e Doutores da Igreja, dos santos místicos, que viveram em perfeita união
com Deus até ao êxtase; ficam atrelados ao rigorismo montanista de antigos
escritores e pregadores, como Tertuliano, ou modernos, como Jansénio. Vivem do
aforismo, “Muitas graças a Deus, mas
poucas graças com Deus”, ou do outro, “Deus
não é vingativo, mas é de reta justiça”.
***
Quem olha para o perfil de um João XXIII
ou de um João Paulo I, bem pode compreender que o Cristianismo marca a rota do “sim”.
Quem escuta com ouvidos atentos o Papa Francisco não pode deixar de reconhecer
o dinamismo cristão como o estilo do “sim” e a Igreja como a Casa do Acolhimento,
a rampa de lançamento dos que partem às periferias existenciais, a pátria da liberdade.
E o que é a liberdade vivida pelo crente?
Em contraponto com alguns conceitos de liberdade
em voga e nada recomendáveis, por vezes, aqui se deixa uma noção mais exigente
porque equilibrada:
“O que é a
liberdade? Que relação existe entre liberdade e responsabilidade? Porque é que
o homem tem direito ao exercício da liberdade?
É o poder, dado por Deus ao homem, de agir e não agir, de fazer isto ou
aquilo, praticando assim, por si mesmo, ações deliberadas. A liberdade carateriza
os atos propriamente humanos. Quanto mais faz o bem, mais alguém se torna
livre. A liberdade atinge a perfeição quando é ordenada para Deus, sumo Bem e
nossa Bem-aventurança. A liberdade implica também a possibilidade de escolher
entre o bem e o mal. A escolha do mal é um abuso da liberdade, que conduz à escravatura
do pecado.
A liberdade torna o homem responsável pelos seus atos, na medida em que são
voluntários, embora a imputabilidade e a responsabilidade de um ato possam ser
diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência suportada,
o medo, as afeições desordenadas e os hábitos.
O direito ao exercício da liberdade é próprio de cada homem enquanto é
inseparável da sua dignidade de pessoa humana. Portanto, tal direito deve ser
sempre respeitado, principalmente em matéria moral e religiosa, e deve ser
reconhecido civilmente, e tutelado nos termos do bem comum e da justa ordem
pública.” (In “Compêndio do catecismo da Igreja Católica”, editado por Motu Próprio de Bento
XVI).
***
O Cristianismo é uma opção positiva. Quem o disse foi o ora papa
emérito Bento XVI, contrariando a ideia que, por vezes, é dominante na
apreciação dos formadores da opinião pública e na preocupação concreta dos
cristãos: ser o cristianismo um amontoado de proibições.
Pragmaticamente, o Papa alemão
referia que, se alguém dispõe de pouco tempo para intervir, não deve começar
por acentuar o “não”. “É preciso estabelecer, em primeiro lugar, o que efetivamente
queremos”. – dizia o Pontífice – Porquanto “o Cristianismo, o Catolicismo não é
um conjunto de proibições, mas uma opção positiva (…) E é muito importante que
evidenciemos isso novamente, porque essa consciência, hoje, quase que desapareceu
completamente. Tem-se ouvido falar tanto sobre o que não é permitido, que agora
é preciso dizer que temos uma ideia positiva a propor”. E “é muito importante
que isto se veja de novo. Creio que se deveria corrigir a imagem segundo a qual
semeamos à nossa volta rígidos NÃOS” – disse.
Reportando-se às questões da família e do
matrimónio, esclareceu que “o homem e a mulher foram feitos um para o outro e
existe uma escala – sexualidade, eros e
ágape, que são as dimensões do amor, e assim se forma, antes o matrimónio
como encontro repleto de felicidade, entre o homem e a mulher, e depois, a
família, que garante a continuidade entre as gerações, onde se realiza a
reconciliação das gerações e onde as culturas também se podem encontrar”.
Sendo importante, antes de tudo, colocar
em relevo aquilo que queremos, pode, em segundo lugar, ver-se também porque não
queremos nós certas coisas. É preciso reconhecer que não é uma invenção
católica o facto de o homem e a mulher serem feitos um para o outro, a fim de
que a humanidade continue a viver: todas as culturas sabem disso – garantiu.
Bento XVI
acrescentou: “A Igreja – sabemo-lo pelos inquéritos – é considerada a maior
parte das vezes só como uma voz que admoesta ou que inclusivamente trava”. E
perguntou: “A Igreja não deveria sair
desta posição defensiva e assumir uma atitude mais positiva quanto ao futuro e
à sua construção?”. (Respigado da Entrevista do Papa Bento XVI, concedida
à Bayerischer Rundfunk (ARD), ZDF, Deutsche Welle e Rádio Vaticano, divulgada
em 13 de agosto de 2006).
***
Frei Betto abordada
esta problemática em artigo sob o título “A Igreja do não e a Igreja do sim”,
publicado no site brasileiro “Adital”
a 15/08/2015, que li, há dias, no site da
Associação Rumos, que o transcreveu.
Começa por citar o teólogo António Moser, que repete que há a
Igreja do Não e outra do Sim. Depois, fala da sua experiência de
catequizado na perspetiva da Igreja do Não,
sob o alerta “Deus me vê”, estampado a tabuleta de madeira pregada em cada cómodo
do seu colégio, aliás como sucedia entre nós, portugueses, na educação colegial
e seminarística.
Segundo o dedo realista de frei Betto, a
Igreja ostentava efetivamente os dez mandamentos da Lei de Deus, de que fazia ressaltar
os pecados atinentes ao sexo (em que a matéria era sempre matéria grave,
recordo-me), mas acentuava com
inigualável relevo os cinco mandamentos
da Santa Madre Igreja. Quem não se lembra do jejum eucarístico
obrigatório antes da comunhão logo a partir da meia noite, que passou para três
horas (Eu sou do tempo das três
horas!) e se reduziu a uma? Comer por engano um pedacito de pão ou beber um trago
de água impedia o cristão de se abeirar da sagrada comunhão, pecando se o
fizesse, tal como se tocasse a hóstia com os dentes! Quem se deitasse em pecado
mortal – lembro-me – dormia com a cama suspensa sobre o inferno presa por um
ténue fio, que a todo o momento podia ser cortado…
Era, como diz
o articulista, o reinado do Deus fiscal, juiz remunerador sobretudo com o castigo:
“Havia que purgar os pecados cometidos
deste lado da vida para, um dia, merecer o direito de ser alçado ao Céu” – refere
frei Betto. E, em seminário menor, quantos rapazitos não procuravam o diretor espiritual
a toda a hora e momento, de dia ou de noite, para sujeitar ao seu veredicto
absolutório (elevar uns ralhetes) algum pecado que surgisse intempestivamente!
Como confessa o articulista mencionado, “felizmente
a Ação Católica, a Teologia da Libertação, o Concílio Vaticano II e os papas
João XXIII e, agora, Francisco, me abriram as portas da Igreja do Sim”.
É de reler a
bula Misericordiae vultus, com que o
Papa Francisco veio proclamar o Ano da Misericórdia, para vermos como a Igreja
do Pontífice argentino, na linha da genuína Tradição evangélica, apostólica e eclesial,
se posiciona como a vera Igreja do SIM, na atitude do Pai que acolhe o filho
pródigo arrependido e faz a festa porque ele voltou, não deixando de instar com
o filho mais velho, que invejosamente não queria participar na festa de regresso
do irmão (cf Lc 15,11-32).
É a “Igreja que enfatiza como pecado,
não a pulsão sexual da adolescência, mas a opressão social, a discriminação
racial ou homofóbica, a apropriação avarenta das riquezas”; a “Igreja que
prefere as Bem-Aventuranças, que apontam os caminhos da felicidade, aos Dez
Mandamentos”; a “Igreja samaritana, que deixa a sua zona de conforto para se
colocar solidária ao lado dos excluídos, lava os pés dos pobres, cuida dos
enfermos, ama os inimigos” (vd artigo citado).
Também o padre Luís
Corrêa Lima, S.J., referia, em 1 de outubro de 2006, que “há no cristianismo
uma tradição multissecular de proibição, medo e culpa”. Contrariando um
historiador que falava de uma “pastoral do medo”, ou seja, do recurso a
proibições e ameaças para se obter a conversão, o sacerdote comentava a entrevista
de Bento XVI à televisão alemã poucas semanas antes de ir em visita à Alemanha,
tendo ficado o evento marcado por uma polémica com o Islão, por via da lição que
proferiu na universidade de Regensburg. Mas, no tocante à entrevista, o padre
Corrêa diz que nela “encontramos elementos valiosos para a vida da Igreja e
para o diálogo com a sociedade contemporânea”, que “não devem cair no
esquecimento”.
E segundo, o padre von Gemmingen,
da Rádio Vaticano, Bento XVI, em Valença, no Encontro Mundial das Famílias, não
fez nenhuma referência às uniões homossexuais, nem tratou de aborto ou de
contraceção, pelo que a conclusão dos observadores foi a de que “a intenção do
pontífice é anunciar a fé e não girar o mundo como apóstolo da moral”. Confrontado com esta avaliação, o Papa, com um
sorriso aberto, respondeu que na ocasião dispunha de pouco tempo para falar e,
nessas condições, não se deve começar dizendo “não”. É preciso afirmar o que se
quer.
O Padre Corrêa terminava o seu
artigo com um desejo: “Oxalá Deus nos liberte do ranço moralista e ajude o papa
neste feliz propósito”.
(cf Luís
Corrêa Lima, S.J. http://www.diversidadecatolica.com.br/bibliografia_detalhes.php?id=12,
ac agosto de 2015)
***
Há efetivamente que acentuar a vertente positiva da fé
e encarar os preceitos negativistas (que também têm o seu lugar) como percurso pedagógico para a consecução da união
com Deus, o testemunho do Ressuscitado, a marcha apostólica, a celebração da
alegria, da fé, da vida, a construção da comunidade inclusiva dos que precisam,
a via da vez e da voz para aqueles que ainda delas não auferem porque outros não
querem, a proclamação da Esperança e as suas razões.
A revolução evangélica não se faz com o “não”
castrante, opressor e demolidor, mas com o “sim” libertador, construtor e vivificante.
2015.08.27 –
Louro de Carvalho
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