quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O Cristianismo constitui uma opção positiva

Tem passado para alguma opinião pública a ideia de que o Cristianismo é uma religião perpassada pelo ranço moralista ou o catálogo das proibições. Com efeito, muitos assim leem a Escritura, os catecismos, o código de direto canónico e, mesmo, os notáveis 16 documentos do Vaticano II.
Esquecem o essencial do anúncio bíblico neotestamentário: “O Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai na Boa Nova” (Mc 1,15); “estes [sinais] foram escritos para crerdes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, crendo, tenhais a vida Nele” (Jo 20,31); “Ide, pois, e fazei discípulos de todos os povos, batizando-o sem nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28,19-20). Saltam por cima de passagens essenciais do livro dos Atos dos Apóstolos, por exemplo:
Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós crucificado” (At 2,36); “Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo, partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava, todos os dias, o número dos que tinham entrado no caminho da salvação.” (At 2,46-47); “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e uma grande graça operava em todos eles.” (At 4,32-33).
Passam por cima da 1.ª carta de João:
“Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos! É por isso que o mundo não nos conhece, uma vez que O não conheceu a Ele. Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é.” (1Jo 3,1-2).
A própria Lei, que vinha redigida mais num sentido negativista, situava-se no contexto da Aliança de Deus com o seu povo (cf Ex 20; Dt 5). E isto não é negativista. Porém, o Evangelho apresenta os mandamentos da Lei de forma claramente positiva:
“Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. E um deles, que era legista, perguntou-Lhe para O embaraçar: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mt 22, 34-40; cf Mc 12,28-34; Lc 10,25-28; Jo 13,33-35).
Esquece-se a mensagem e a experiência dos santos Padres e Doutores da Igreja, dos santos místicos, que viveram em perfeita união com Deus até ao êxtase; ficam atrelados ao rigorismo montanista de antigos escritores e pregadores, como Tertuliano, ou modernos, como Jansénio. Vivem do aforismo, “Muitas graças a Deus, mas poucas graças com Deus”, ou do outro, “Deus não é vingativo, mas é de reta justiça”.
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Quem olha para o perfil de um João XXIII ou de um João Paulo I, bem pode compreender que o Cristianismo marca a rota do “sim”. Quem escuta com ouvidos atentos o Papa Francisco não pode deixar de reconhecer o dinamismo cristão como o estilo do “sim” e a Igreja como a Casa do Acolhimento, a rampa de lançamento dos que partem às periferias existenciais, a pátria da liberdade.
E o que é a liberdade vivida pelo crente?
Em contraponto com alguns conceitos de liberdade em voga e nada recomendáveis, por vezes, aqui se deixa uma noção mais exigente porque equilibrada:

O que é a liberdade? Que relação existe entre liberdade e responsabilidade? Porque é que o homem tem direito ao exercício da liberdade?
É o poder, dado por Deus ao homem, de agir e não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, ações deliberadas. A liberdade carateriza os atos propriamente humanos. Quanto mais faz o bem, mais alguém se torna livre. A liberdade atinge a perfeição quando é ordenada para Deus, sumo Bem e nossa Bem-aventurança. A liberdade implica também a possibilidade de escolher entre o bem e o mal. A escolha do mal é um abuso da liberdade, que conduz à escravatura do pecado.
A liberdade torna o homem responsável pelos seus atos, na medida em que são voluntários, embora a imputabilidade e a responsabilidade de um ato possam ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência suportada, o medo, as afeições desordenadas e os hábitos.
O direito ao exercício da liberdade é próprio de cada homem enquanto é inseparável da sua dignidade de pessoa humana. Portanto, tal direito deve ser sempre respeitado, principalmente em matéria moral e religiosa, e deve ser reconhecido civilmente, e tutelado nos termos do bem comum e da justa ordem pública.” (In “Compêndio do catecismo da Igreja Católica”, editado por Motu Próprio de Bento XVI).

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O Cristianismo é uma opção positiva. Quem o disse foi o ora papa emérito Bento XVI, contrariando a ideia que, por vezes, é dominante na apreciação dos formadores da opinião pública e na preocupação concreta dos cristãos: ser o cristianismo um amontoado de proibições.
Pragmaticamente, o Papa alemão referia que, se alguém dispõe de pouco tempo para intervir, não deve começar por acentuar o “não”. “É preciso estabelecer, em primeiro lugar, o que efetivamente queremos”. – dizia o Pontífice – Porquanto “o Cristianismo, o Catolicismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva (…) E é muito importante que evidenciemos isso novamente, porque essa consciência, hoje, quase que desapareceu completamente. Tem-se ouvido falar tanto sobre o que não é permitido, que agora é preciso dizer que temos uma ideia positiva a propor”. E “é muito importante que isto se veja de novo. Creio que se deveria corrigir a imagem segundo a qual semeamos à nossa volta rígidos NÃOS” – disse.
Reportando-se às questões da família e do matrimónio, esclareceu que “o homem e a mulher foram feitos um para o outro e existe uma escala – sexualidade, eros e ágape, que são as dimensões do amor, e assim se forma, antes o matrimónio como encontro repleto de felicidade, entre o homem e a mulher, e depois, a família, que garante a continuidade entre as gerações, onde se realiza a reconciliação das gerações e onde as culturas também se podem encontrar”.  
Sendo importante, antes de tudo, colocar em relevo aquilo que queremos, pode, em segundo lugar, ver-se também porque não queremos nós certas coisas. É preciso reconhecer que não é uma invenção católica o facto de o homem e a mulher serem feitos um para o outro, a fim de que a humanidade continue a viver: todas as culturas sabem disso – garantiu.
Bento XVI acrescentou: “A Igreja – sabemo-lo pelos inquéritos – é considerada a maior parte das vezes só como uma voz que admoesta ou que inclusivamente trava”. E perguntou: “A Igreja não deveria sair desta posição defensiva e assumir uma atitude mais positiva quanto ao futuro e à sua construção?”. (Respigado da Entrevista do Papa Bento XVI, concedida à Bayerischer Rundfunk (ARD), ZDF, Deutsche Welle e Rádio Vaticano, divulgada em 13 de agosto de 2006).
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Frei Betto abordada esta problemática em artigo sob o título “A Igreja do não e a Igreja do sim”, publicado no site brasileiroAdital” a 15/08/2015, que li, há dias, no site da Associação Rumos, que o transcreveu.
Começa por citar o teólogo António Moser, que repete que há a Igreja do Não e outra do Sim. Depois, fala da sua experiência de catequizado na perspetiva da Igreja do Não, sob o alerta “Deus me vê”, estampado a tabuleta de madeira pregada em cada cómodo do seu colégio, aliás como sucedia entre nós, portugueses, na educação colegial e seminarística.
Segundo o dedo realista de frei Betto, a Igreja ostentava efetivamente os dez mandamentos da Lei de Deus, de que fazia ressaltar os pecados atinentes ao sexo (em que a matéria era sempre matéria grave, recordo-me), mas acentuava com inigualável relevo os cinco mandamentos da Santa Madre Igreja. Quem não se lembra do jejum eucarístico obrigatório antes da comunhão logo a partir da meia noite, que passou para três horas (Eu sou do tempo das três horas!) e se reduziu a uma? Comer por engano um pedacito de pão ou beber um trago de água impedia o cristão de se abeirar da sagrada comunhão, pecando se o fizesse, tal como se tocasse a hóstia com os dentes! Quem se deitasse em pecado mortal – lembro-me – dormia com a cama suspensa sobre o inferno presa por um ténue fio, que a todo o momento podia ser cortado…
Era, como diz o articulista, o reinado do Deus fiscal, juiz remunerador sobretudo com o castigo:
“Havia que purgar os pecados cometidos deste lado da vida para, um dia, merecer o direito de ser alçado ao Céu” – refere frei Betto. E, em seminário menor, quantos rapazitos não procuravam o diretor espiritual a toda a hora e momento, de dia ou de noite, para sujeitar ao seu veredicto absolutório (elevar uns ralhetes) algum pecado que surgisse intempestivamente!
Como confessa o articulista mencionado, “felizmente a Ação Católica, a Teologia da Libertação, o Concílio Vaticano II e os papas João XXIII e, agora, Francisco, me abriram as portas da Igreja do Sim”. 
É de reler a bula Misericordiae vultus, com que o Papa Francisco veio proclamar o Ano da Misericórdia, para vermos como a Igreja do Pontífice argentino, na linha da genuína Tradição evangélica, apostólica e eclesial, se posiciona como a vera Igreja do SIM, na atitude do Pai que acolhe o filho pródigo arrependido e faz a festa porque ele voltou, não deixando de instar com o filho mais velho, que invejosamente não queria participar na festa de regresso do irmão (cf Lc 15,11-32).
É a “Igreja que enfatiza como pecado, não a pulsão sexual da adolescência, mas a opressão social, a discriminação racial ou homofóbica, a apropriação avarenta das riquezas”; a “Igreja que prefere as Bem-Aventuranças, que apontam os caminhos da felicidade, aos Dez Mandamentos”; a “Igreja samaritana, que deixa a sua zona de conforto para se colocar solidária ao lado dos excluídos, lava os pés dos pobres, cuida dos enfermos, ama os inimigos” (vd artigo citado).
Também o padre Luís Corrêa Lima, S.J., referia, em 1 de outubro de 2006, que “há no cristianismo uma tradição multissecular de proibição, medo e culpa”. Contrariando um historiador que falava de uma “pastoral do medo”, ou seja, do recurso a proibições e ameaças para se obter a conversão, o sacerdote comentava a entrevista de Bento XVI à televisão alemã poucas semanas antes de ir em visita à Alemanha, tendo ficado o evento marcado por uma polémica com o Islão, por via da lição que proferiu na universidade de Regensburg. Mas, no tocante à entrevista, o padre Corrêa diz que nela “encontramos elementos valiosos para a vida da Igreja e para o diálogo com a sociedade contemporânea”, que “não devem cair no esquecimento”.
E segundo, o padre von Gemmingen, da Rádio Vaticano, Bento XVI, em Valença, no Encontro Mundial das Famílias, não fez nenhuma referência às uniões homossexuais, nem tratou de aborto ou de contraceção, pelo que a conclusão dos observadores foi a de que “a intenção do pontífice é anunciar a fé e não girar o mundo como apóstolo da moral”. Confrontado com esta avaliação, o Papa, com um sorriso aberto, respondeu que na ocasião dispunha de pouco tempo para falar e, nessas condições, não se deve começar dizendo “não”. É preciso afirmar o que se quer.
O Padre Corrêa terminava o seu artigo com um desejo: “Oxalá Deus nos liberte do ranço moralista e ajude o papa neste feliz propósito”.
(cf Luís Corrêa Lima, S.J. http://www.diversidadecatolica.com.br/bibliografia_detalhes.php?id=12, ac agosto de 2015)
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Há efetivamente que acentuar a vertente positiva da fé e encarar os preceitos negativistas (que também têm o seu lugar) como percurso pedagógico para a consecução da união com Deus, o testemunho do Ressuscitado, a marcha apostólica, a celebração da alegria, da fé, da vida, a construção da comunidade inclusiva dos que precisam, a via da vez e da voz para aqueles que ainda delas não auferem porque outros não querem, a proclamação da Esperança e as suas razões.
A revolução evangélica não se faz com o “não” castrante, opressor e demolidor, mas com o “sim” libertador, construtor e vivificante.

2015.08.27 – Louro de Carvalho

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