Vem
a asserção enunciada em epígrafe a propósito do minicaixilho que vem na
primeira página do semanário Expresso,
do passado dia 1 de agosto, sob o título aspado “Bispo do Porto é uma
marioneta”, que remete para uma entrevista com o padre Roberto Carlos na página
24.
Ao
referido sacerdote cabe todo o direito de não gostar do Bispo do Porto. Porém,
o dever de solidariedade sacerdotal obrigava-o a não desobedecer, pelo menos
reiterada e ostensivamente, dando cobertura – ativa ou não, voluntária ou não –
às enormidades antissociais e antieclesiais que um significativo setor
populacional de Canelas, alegadamente assumindo-se como paróquia, vem pondo em
prática com os perversos efeitos quer de nível vertical quer de nível
horizontal. E, sobretudo, na relação interpessoal (pior
ainda, na relação eclesial hierárquica),
o insulto não tem lugar. Admito que em privado – por carta, telefonema ou em
conversa face a face – um interlocutor ultrapasse as marcas da compostura, devendo,
logo a seguir, se for o caso, emitir o seu pedido de desculpa. Todavia, usar as
pantalhas de um jornal para leitores que nada têm a ver com o assunto, a não
ser no que atinge o direito à informação, para no meio do arrazoado
inconsistente insultar o interlocutor com quem subsiste um conflito na relação
hierárquica, ultrapassa as fronteiras do bom senso, desdiz da caridade eclesial
no caso e configura uma forma soez de dizer que se pretende servir o Povo de
Deus.
***
Já
que acusei o toque da inconsistência discursiva, vamos por partes e talvez
cheguemos à supina inconsistência atitudinal e comportamental.
O
bispo do Porto, uns meses depois da sua tomada de posse da cátedra diocesana e
entrada solene na Sé episcopal, procedeu a um conjunto de nomeações por decreto,
em cujo preâmbulo apresenta a conveniente justificação pastoral.
Como
determina o Código de Direito Canónico (CIC), no seu cânone 523, “sem prejuízo do prescrito no cân. 682 §1,
compete ao bispo diocesano a provisão do ofício de pároco e, por livre colação,
a não ser que alguém possua o direito de apresentação ou de eleição”. Por seu turno, o §1 do cân. 682 prescreve que,
“se se tratar de conferir a um religioso
algum ofício eclesiástico na diocese, quem o nomeia é o bispo diocesano, sob a
apresentação ou ao menos com o assentimento do Superior competente”.
Dado
que nem o sacerdote em causa nem o sucessor estavam vinculados ao instituto a
que chegaram a pertencer, não se colocava o prescrito no cân. 682 §1. Por outro
lado, a paróquia em causa não dispõe histórica e subsistentemente de entidade
com direito a apresentação ou a eleição do pároco. Por isso, a provisão de
pároco compete ao bispo diocesano.
É
óbvio que o bispo diocesano, no governo pastoral da diocese, deve ouvir as
entidades e as estruturas previstas no CIC, designadamente vigários gerais e/ou
episcopais, o cabido (se existir), o colégio dos consultores, o conselho de
presbíteros, o conselho pastoral, o conselho económico e social e os serviços
da cúria, consoante as matérias em causa, bem como os demais serviços que pelo
bem da diocese houver por bem criar. Ademais, o cân. 384 recomenda que “o bispo diocesano acompanhe com solicitude
os presbíteros, os quais ouça como colaboradores e conselheiros…”. Penso
que, nestas matérias o bispo do Porto não apresenta défice.
É
de calcular que as estruturas competentes tinham de ter feito o trabalho de
casa, uma vez que a diocese corria o risco de no mês de julho de 2014 perfazer
um ano de vacatura da sede episcopal, cabendo então ao administrador diocesano
“nomear párocos”, como determina o n.º 2.º do cân. 525: “Enquanto a sé se encontrar vaga ou impedida, pertence ao administrador
diocesano ou outrem que interinamente governe a diocese (…) nomear párocos, se
já houver decorrido um ano desde que a sé se encontra vaga ou impedida”.
Será
que o bispo diocesano, porque ouve as diversas entidades e estruturas como
previsto no CIC, aceita globalmente o trabalho preparatório e acompanha os seus
presbíteros, merece o título de marioneta? E o que merecerá o presbítero que
desobedece ostensivamente, aceita ou promove atos de insubordinação
manifestações desordeiras, celebra missas à revelia com ex-paroquianos,
acompanha com eles o exercício da via-sacra e mesmo preside a uma peregrinação a
Fátima? Se calhar aplica-se o aforismo: só
fala quem tem que se lhe diga.
Se
o bispo não ouvisse ninguém e decidisse tudo por si só, como é que seria apelidado? O facto de o superior hierárquico não concordar com o seu cooperador não quer
dizer que não o tenha ouvido ou que não tenha o estilo de ouvir. Já em tempos
idos eu criticava aqueles que propunham uma obediência acrítica ao bispo quando
ele determinava coisas por eles sugeridas e barafustavam quando o seu bispo não
dizia com eles.
Sem
me colocar agora na discussão sobre o ser e missão da Igreja, quero deixar vincada
a ideia de que dizer pura e simplesmente que a igreja não é democrática não faz
sentido. Revela apenas que se terá um conceito único de democracia. É óbvio que
a democracia política ao nível do Estado postula a eleição, porque se parte do
princípio de que todo e qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e
políticos tem a capacidade eleitoral ativa e é capaz de ser eleito (capacidade
eleitoral passiva).
Não se exigem especiais capacidades para o desempenho da maior parte dos cargos
públicos e, caso o seu desempenho se torne complexo, vem o auxílio dos círculos
técnicos. Em Igreja, a capacitação para o exercício de alguns cargos – os fundamentais
– é ontológica e não de raiz meramente eletiva. Assim, o múnus diaconal,
presbiteral e episcopal exige, além da preparação doutrinal, a sagrada
ordenação. Assim, o topo da governação da paróquia postula o múnus presbiteral
e o da diocese postula o múnus episcopal; e o acompanhamento diaconal do bispo
e da comunidade exige a ordem de diácono.
De
resto, os demais cargos podem surgir por via eletiva ou por nomeação, bem como
os órgãos colegiais, que se regem pelos respetivos estatutos. Mais: os
elementos do conselho presbiteral são por norma eleitos (cf
cân. 498).
Também
nos Estados democráticos, embora o órgão legislativo seja resultante da eleição
direta dos cidadãos eleitores (ditada tantas vezes pelos aparelhos
partidários e pelos negócios de lugares elegíveis), o Governo não o é (é nomeado pelo
Chefe do Estado, tendo em conta os resultados eleitorais), o Chefe do Estado pode não o
ser (pode
ser um monarca ou um eleito pelo parlamento ou por um colégio eleitoral
específico) e os
juízes também não o são. É que a democracia não se esgota na eleição. Também a
servem as nomeações em conformidade com as leis, os concursos públicos, os
concursos limitados, a participação em debates, a escrita, o exercício do
direito de reunião, associação e manifestação, o voluntariado, etc.
Ora,
se na democracia sublinharmos a dimensão participativa, talvez a Igreja seja
mais democrática do que alguns a pintam. Porém, é conveniente salientar como
nota típica da caminhada em Igreja a marca sinodal, ou seja, os crentes dispõem
da sua disponibilidade pessoal e de alguns dos seus bens e voluntariamente
aceitam discutir, rezar e trabalhar em conjunto, puxando uns pelos outros, mas
respeitando o ritmo de cada um – no respeito, na exigência, na solidariedade.
Acentua-se
a cada passo a índole hierárquica da Igreja. Porque não, desde que que não se
anule a sua dimensão de povo e povo de Deus? Porém, se olharmos para a
sociedade política, a hierarquia está mais do que presente em tudo: na escola,
na empresa, na unidade de saúde, no clube, na sociedade comercial, no governo,
na administração pública, nos tribunais, na organização militar, no protocolo
do Estado, etc.
E
note-se que a democracia não pode ser um fim em si mesmo. É um sistema (o
menos mau de todos),
um meio para atingir um grande objetivo: a satisfação do bem comum. Também o
objetivo primordial em Igreja é a salus
animarum.
***
Voltando
ao caso do Expresso, como é que o
sacerdote em causa se dá ao desporto de se armar em ministro de justiça em
Igreja ou presidente do supremo tribunal de justiça eclesiástico, quando
desobedeceu, insulta, faz trabalho subterrâneo (que
recorrentemente vem à tona)
com ex-paroquianos – missas privadas ou oficiosas (recorde-se
que a missa é por natureza ato de culto público), vias-sacras, colaboração com a associação local
UCR, vigílias, petições, cordões humanos, homenagens, recolha de assinaturas,
megajantares? Mas nega que seja endeusado, fazendo-se fotografar, no entanto,
frente à Sé Catedral do Porto. Quererá ser convidado para presidir ao tribunal
da Assinatura Apostólica em Roma para tudo julgar em nome do Papa?
Depois,
como arma de arremesso atira extemporaneamente para o bispo com um caso de
alegado abuso sexual de menor de outro colega em tempos em que ambos os colegas
eram da mesma congregação religiosa, um colega que não exerce na diocese em
causa. Pelos vistos, usou este expediente para se defender de supostos boatos a
seu respeito. E, contra o ordenamento jurídico vigente, desvaloriza o seu
arquivamento pelas entidades responsáveis pela investigação judiciária,
alegando que a prescrição do crime não invalida a veracidade dos factos, mas
esquece um pormenor significativo, não ter havido indícios nem queixas.
E
não poupa ninguém: do alto do seu “justo e inquestionável saber” também o seu sucessor
não é uma pessoa idónea neste processo. Juro que eu também não o sou!
Enfim,
como é que se pode queixar de perseguição, silenciamento, compra, coação, se foi
ele quem efetivamente se pôs de fora? Quer que os outros padres lhe façam a
corte se não se reconhecem nas suas atitudes e se, melhor ou menos bem, tentam cumprir
como sabem e podem a sua missão?
Posto
isto, só é de esperar que o Senhor Bispo do Porto, embora se preocupe com todas
as comunidades, com todas as paróquias e com todas as pessoas, não se desgaste
demasiado com este caso, nem tenha de tomar qualquer medida que signifique
censura, interdito ou coisa parecida. Que na sua paciência deixe definhar o
caso.
Todavia,
é necessária a solidariedade fraterna em torno do bispo do Porto e dos
sacerdotes que arcam com as responsabilidades pastorais na paróquia em causa.
Por
mim, a expressão de simpatia, amizade e a solidariedade possível. Deus nos dê
lucidez e bom senso a todos!
2015.08.02 – Louro
de Carvalho
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