segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Cristografias

Falar de Cristo é tão apetecível hoje como desde o tempo em que ele veio ao mundo e inaugurou, de modo aparentemente informal, o movimento, com selo divino, que cedo se apresentou como o daqueles que, seguindo-O e apontando-O como o Crucificado que ressuscitara, se apresentavam como testemunhas até ao martírio, arautos e promotores do Reino que, tendo já chegado como sementeira, havia de vir em plenitude no fim dos tempos.
Os muçulmanos, não O tendo como Deus, respeitam-no e veneram-no como profeta. Os judeus O esperavam, mas, não O reconhecendo como Deus, O rejeitaram, cravando-O na cruz. E Deus Pai, que O enchera do Espírito e O deixara alçar no patíbulo, pela ressurreição, O constituiu como a pedra angular da Igreja, contra a qual as forças do Inferno não levarão a melhor.
Ao longo da História, os povos, mormente o povo judeu, foram educados na arquitetação da esperança em salvadores específicos. Alguns estudiosos até viram retrospetivamente na Écloga IV, das Bucólicas do latino Vergílio, o advento do Messias naquela criança que nasceria para dar a prosperidade e paz ao povo.
E, embora os escritores coevos do Mestre não O tenham referenciado como figura de especial relevo, nem por isso a sua passagem pelo Orbe deixou de ser anotada com segmentos de interesse, como é o caso de alguns do cronista romano Flávio Josefo. A partir da Casa de Israel, onde passara fazendo o bem, enviou por toda a parte os discípulos, que instruíra nas categorias da salvação universal, e que, feitos apóstolos, percorreram todo o mundo conhecido de então.
Por seu turno, os evangelistas não escreveram uma história da vida e ensinamento de Jesus no sentido em que se entende hoje a História e muito menos uma biografia entendida nos termos atuais. Por exemplo, no dizer de Carreira das Neves (in Jesus Cristo História e Mistério, Ed. Franciscana, 2000) Lucas não é um historiador que apresente ao amigo Teófilo “a verdade factual duma vida de Jesus, mas a fé fundamentada nos factos”, ou seja, é a história que está ao serviço da Palavra e da Fé e não ao contrário. Por outro lado, além dos textos atribuídos a Marcos, Mateus e João, muitos outros escreveram sobre aquilo que Jesus pregava ou sobre o que se pregava a propósito de Jesus. No entanto, esses escritos não chegaram aos nossos dias.
E, juntamente com a pregação e escritos dos primeiros discípulos, veio a estruturar-se a escrita dos padres apostólicos e a daquela plêiade de santos e intelectuais do primeiro heptasséculo, a quem se denomina de Padres da Igreja (alguns considerados apenas escritores eclesiásticos por se terem afastado da ortodoxia), grega e latina. Concomitantemente surgem os escritos apócrifos para encherem de imaginação e poesia as mentes que sentiam como que um vazio devido às lacunas deixadas pelas curiosas omissões dos escritos evangélicos. E, por entre as diversas heresias que diacronicamente fazem frente a uma religião estruturada e havida como absoluta, aparecem os escritos gnósticos. Por isso e porque naquele tempo se dava mais valor à verdade da Palavra pregada ou provinda da tradição oral, é que Papias, bispo de Hierápolis, cerca do ano 115, procurava falar com as pessoas que tinham contactado diretamente com as testemunhas oculares e auditivas (de visu et auditu) de Jesus, a começar pelos próprios apóstolos, para fundamentarem a fé nos testemunhos pessoais e não tanto nos escritos.
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O nome de Cristo que uniu povos, revolucionou mentalidades, atitudes e comportamentos, serviu de pretexto para divisões, cismas e novas religiões; foi bandeira para situações de opressão, repressão e exploração; inspirou regimes políticos de qualidade ou ignóbeis; e foi invocado em vão para autos de fé e para guerras de religião. Os duramente perseguidos dos primeiros séculos pela fé em Cristo, vivida com ostensivo fervor, foram sucedidos por homens que, no nome de Cristo, encontraram ensejo para, a par da proposta genuína da salvação, praticarem obras de perseguição e morte. Porém, não podemos olvidar quantos continuam a ser vítimas pelo facto de professarem a fé cristã ou os valores análogos, apesar de se pregar em todos os povos a não discriminação por motivos religiosos!
E a literatura piedosa, as academias, as artes e letras, as comunidades de vida e de trabalho e a política estão prenhes do real cristão e do seu imaginário, mesmo quando o ignoram, refutam ou combatem. E os monumentos abundam por tudo quanto é mundo. Os símbolos religiosos enchem museus, salas, praças, peitos e pulsos.
Porém, o mais estranho é que, num mundo fortemente secularizado, por vezes impante de ateísmo, o laicismo, moderado ou estreme, ombreia com as manifestações de referência ao nome de Cristo. Até já o apelidaram de o primeiro comunista, o que não é de todo verdade.
Encarar o Jesus da História implica situá-lo no contexto político, social e religioso do seu tempo, sob pena de se cair em fantasias lendárias e gnósticas como sucedeu com os evangelhos posteriores ao século I, não canónicos (por exemplo, o protoevangelho de Tiago, o Evangelho de Maria Madalena e todos os evangelhos gnósticos). Nos tempos da modernidade muito se tem escrito acerca de Jesus como essénio, como simples fariseu reformador, como um zelota ou guerrilheiro, como um mago ou como um marxista por antecipação.
O experimentalismo renascentista, o iluminismo, mesmo o despótico, e o cientismo puro, apesar dos frequentes engulhos, distorções e ataques, conviveram com o cristianismo com alguma razoabilidade. Multiplicaram-se as histórias da Vida de Cristo, umas com o intuito de acertar, outras com intenção viperina e outras com estrutura bem lacunar. Alternaram as apologias do cristianismo com os ataques cerrados ou degradadas elucubrações.
Porém, há que ter em conta que, partir do século XVII, começou a estudar-se o Novo Testamento à luz de critérios científicos. Neste âmbito, a questão do Jesus da História veio à tona e tem seguido um processo diferente conforme a perspetiva de cada investigador e das posições históricas e ideológicas das diversas escolas e correntes. São notáveis os 3 volumes de Ratzinger/Bento XVI sob o título Jesus de Nazaré, escritos e editados já durante o Pontificado do Papa alemão (da Esfera dos livros, 2007, 2011 e 2012), em que o autor, disponível para a crítica bíblica, teológica e histórica, pretende ressituar o Jesus da História; e o volume com o mesmo título de Joachim Gnilka (Editorial Presença, 1999), que, a partir da análise da situação histórica, política, social e religiosa da época, bem como dos evangelhos, trata a questão histórica de Jesus e tenta chegar a uma imagem o mais completa possível de Jesus. São obras que vale a pena ler com a máxima atenção. Porém, a relevância da matéria impõe a referência às diversas tendências e etapas que enformam o percurso da questão histórica de Jesus.
Joseph Ernest Renan, em 1860-1861, cumpriu uma missão arqueológica na Fenícia, onde perdeu a sua irmã Henriette Renan, começando no ano seguinte um opúsculo sobre sua irmã. Foi nesta ocasião que concebeu a obra Vida de Jesus e lançou sobre o papel a sua primeira redação. Em 186, foi nomeado professor de hebraico no Collège de France, mas, após a sua primeira aula, onde chamara Jesus de ‘homem incomparável’, o seu curso foi suspenso pelo governo de Napoleão III, curso depois suprimido até 1870. Em 1864-1865, uma segunda viagem ao oriente ajudou-o a preparar a sequência, que ele meditava, da ‘Vida de Jesus’, uma das obras mais célebres do século XIX, rapidamente traduzida em quase todas as línguas. Foi o primeiro em França a vulgarizar a exegese alemã de Davi Friederich Strauss, segundo a qual nada de intervenção sobrenatural tinha a vida de Jesus. E, em 1863, inicia a História das origens do Cristianismo (1863-1883), rejeitando toda a noção de mistério. Foi um pensador /investigador que influenciou enormemente os pensadores seguintes.
A. Schweitzer referia, há cem anos, que “não há nenhuma tarefa histórica mais pessoal do que escrever uma vida de Jesus” (Neves, 2000). E J. Jeremias escreveu:
“Os racionalistas descrevem Jesus como o pregador mor; os idealistas como a quinta essência do humanismo; os estetas exaltam-no como o amigo dos pobres e o reformador social; e os muito pseudocientíficos fazem dele uma figura de novela” (op. cit).
Gerd Theissen e Annette Mertz publicaram, em 1996, o volumoso livro O Jesus Histórico em que estudam com profundidade os diversos temas relacionados com a questão de Jesus e confirmam a importância dos estudos científicos sobre a pessoa histórica de Jesus feitos ao longo dos últimos duzentos anos.
O mencionado padre Carreira das Neves (op. cit.) reparte por três etapas a investigação científica do Jesus da História.
A primeira é a do tempo do iluminismo, com as figuras de Reimaurus, Schweitzer, Bultmann e W. Wrede. Afirmam que os discípulos foram além da intenção inicial de Jesus, a de ser um judeu libertador, que resultou em fracasso. No quadro da teologia liberal surgiram muitas vidas de Jesus na ótica do positivismo histórico. Bultmann, mais tarde, haveria de dizer que “a crítica mais radical e a fé cristã coexistem, mas não dialogam”, já que parte do pressuposto luterano de que a fé cristã subsiste apenas a partir do mistério da cruz do Calvário e nada mais.
A segunda etapa é marcada peça reação dos discípulos de Bultmann, em que sobressai Käsemann. O investigador parte do princípio de que os evangelhos têm uma intenção querigmática, mas o seu quérigma pressupõe a realidade histórica de Jesus, sob pena de se resvalar para o gnosticismo.
A terceira etapa surge por volta de 1980. Tanto a Exegese como a Cristologia católica e protestante da hora atual se fundamentam no pressuposto de que o Cristo da fé está na continuação do Jesus da História, não sendo de modo algum uma criação das comunidades cristãs primitivas. O mistério Pascal não contradiz, antes pressupõe a consciência de Jesus enquanto autoridade única face à Lei, ao Templo, à Sinagoga, ao Jejum, ao Sábado e ao Perdão dos pecados e como figura messiânica e escatológica. Ressaltam, nesta etapa, G. Ebeling, E. Fuchs, H. Braun, W. Marxen, H. Conzelmann, G. Bornkamm e M. Robinson. Ultimamente, a etapa ganhou novo fôlego com os estudos de alguns exegetas norte-americanos, voltados para uma orientação interdisciplinar, com relevância para as ciências humanas, designadamente a sociologia, a antropologia e a arqueologia.
Do lado dos judeus, estes consideram-no cada vez mais como um irmão judeu fora de série. Martin Buber declara ter a certeza de que “ele tem um lugar eminente na história religiosa de Israel e que tal lugar não cabe em nenhuma das categorias usuais” (op. cit.). E desde que Israel se tornou independente, os judeus têm publicado mais obras sobre Jesus, nos últimos anos, que nos dois milénios de Jesus até hoje: em geral, apresentam Jesus, Maria e os apóstolos como verdadeiros judeus de fé judaica, embora alguns o apresentem como simpatizante dos zelotas e outros como um fariseu reformador do judaísmo. Entre estes estudiosos judeus contam-se: David Flusser, Shalom Bem-Chorim, J. Kçausner e Gesa Vermes.
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Hoje, qualquer escritor que pretenda entrar no mercado do cinema, da música, do livro ou da revista, lá produz uma, duas ou mais obras que abordam a vida de Jesus Cristo, tantas vezes de forma distorcida e mesmo abjeta. E vendem se o apresentarem como guerrilheiro, homossexual (estranho naquele tempo um celibatário, como hoje para muitos), indevida e exageradamente apaixonado ou, mesmo, casado com Maria Madalena, de quem alvitram que terá tido filho ou filha ou até a teria engravidado dias antes da crucifixão. Belos motivos de mercantilização e entretenimento! Tem mercado assegurado tudo o que pareça inédito e oculto ou aquilo que possa mexer com as estruturas religiosas e sociais da contemporaneidade. E, se mexer com as vertentes do erotismo ou do relacionamento com grupos de marginalidade, com lugares inóspitos ou povos de outras civilizações e espiritualidades, tanto mais vendável se torna o fresco produto de ficção, ainda que distorça grandemente os factos ou os invente, logo que faça sangue ou sexo e deslustre instituições que se impuseram pela sua história ou pela sua ação prestigiante ou ainda se evidenciarem e hiperbolizarem desvios e erros das instituições que ostentam a designação de cristãs e católicas.
Ademais, é sobejamente conhecida a produção artística – figurativa (arquitetura, escultura pintura, design…), musical e dramática – referente a Cristo, em função quer do culto quer da decoração: os biblots, os crucifixos ou as imagens do menino, do adulto, do taumaturgo, do ressuscitado…
No entanto, não será tal abundância de escritos em torno da figura de Cristo, mesmo desfigurado, um sinal dos tempos? Não quererão os estudiosos refletir sobre o porquê, talvez denunciador duma grave malha existencial de grandes e significativas franjas das atuais gerações carentes do ângulo de vista psicossocial?
Ficou-me na retina um facto que alegadamente se terá passado com José Saramago, que ouvi numa palestra sobre a Justiça enquanto valor supremo do Direito, no âmbito do centenário da implantação da República em Portugal. Alguém o terá interpelado sobre o motivo por que, sendo ateu e anticristão, escrevera várias obras que abordavam questões religiosas, Deus, Jesus Cristo, Igreja, etc. O escritor terá respondido que na Europa e limítrofes todos somos cristãos.
Fiquei a pensar, depois, como é que se discutiu tanto sobre a inscrição ou não do fenómeno cristão na matriz europeia apresentada no quadro do preâmbulo do tratado constitucional da União Europeia, até porque é tão consensual afirmar que a civilização ocidental se desenvolve nos parâmetros da tradição judeo-cristã como afirmar a subsistência dos fortes elementos de classicismo e humanismo na nossa cultura e civilização – isto sem negar outros importantes contributos históricos e antropológicos.
Mas persiste a questão: Porquê tanta e tão diversificada referência literária e artística à Pessoa de Jesus Cristo?

2015.08.23 – Louro de Carvalho

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