Falar
de Cristo é tão apetecível hoje como desde o tempo em que ele veio ao mundo e
inaugurou, de modo aparentemente informal, o movimento, com selo divino, que
cedo se apresentou como o daqueles que, seguindo-O e apontando-O como o Crucificado
que ressuscitara, se apresentavam como testemunhas até ao martírio, arautos e
promotores do Reino que, tendo já chegado como sementeira, havia de vir em
plenitude no fim dos tempos.
Os
muçulmanos, não O tendo como Deus, respeitam-no e veneram-no como profeta. Os judeus O esperavam, mas, não O reconhecendo como
Deus, O rejeitaram, cravando-O na cruz. E Deus Pai, que O enchera do Espírito e
O deixara alçar no patíbulo, pela ressurreição, O constituiu como a pedra
angular da Igreja, contra a qual as forças do Inferno não levarão a melhor.
Ao
longo da História, os povos, mormente o povo judeu, foram educados na arquitetação
da esperança em salvadores específicos. Alguns estudiosos até viram retrospetivamente
na Écloga IV, das Bucólicas do latino Vergílio, o
advento do Messias naquela criança que nasceria para dar a prosperidade e paz
ao povo.
E,
embora os escritores coevos do Mestre não O tenham referenciado como figura de
especial relevo, nem por isso a sua passagem pelo Orbe deixou de ser anotada
com segmentos de interesse, como é o caso de alguns do cronista romano Flávio
Josefo. A partir da Casa de Israel, onde passara fazendo o bem,
enviou por toda a parte os discípulos, que instruíra nas categorias da salvação
universal, e que, feitos apóstolos, percorreram todo o mundo conhecido de
então.
Por
seu turno, os evangelistas não escreveram uma história da vida e ensinamento de
Jesus no sentido em que se entende hoje a História e muito menos uma biografia
entendida nos termos atuais. Por exemplo, no dizer de Carreira das Neves (in Jesus Cristo
História e Mistério, Ed. Franciscana, 2000) Lucas não é um historiador que apresente
ao amigo Teófilo “a verdade factual duma vida de Jesus, mas a fé fundamentada
nos factos”, ou seja, é a história que está ao serviço da Palavra e da Fé e não
ao contrário. Por outro lado, além dos textos atribuídos a Marcos, Mateus e
João, muitos outros escreveram sobre aquilo que Jesus pregava ou sobre o que se
pregava a propósito de Jesus. No entanto, esses escritos não chegaram aos
nossos dias.
E,
juntamente com a pregação e escritos dos primeiros discípulos, veio a
estruturar-se a escrita dos padres apostólicos e a daquela plêiade de santos e
intelectuais do primeiro heptasséculo, a quem se denomina de Padres da Igreja (alguns considerados apenas escritores eclesiásticos
por se terem afastado da ortodoxia), grega e latina. Concomitantemente
surgem os escritos apócrifos para encherem de imaginação e poesia as mentes que
sentiam como que um vazio devido às lacunas deixadas pelas curiosas omissões
dos escritos evangélicos. E, por entre as diversas heresias que diacronicamente
fazem frente a uma religião estruturada e havida como absoluta, aparecem os
escritos gnósticos. Por isso e porque naquele tempo se dava mais valor à
verdade da Palavra pregada ou provinda da tradição oral, é que Papias, bispo de
Hierápolis, cerca do ano 115, procurava falar com as pessoas que tinham
contactado diretamente com as testemunhas oculares e auditivas (de visu et auditu) de Jesus, a começar
pelos próprios apóstolos, para fundamentarem a fé nos testemunhos pessoais e
não tanto nos escritos.
***
O
nome de Cristo que uniu povos, revolucionou mentalidades, atitudes e
comportamentos, serviu de pretexto para divisões, cismas e novas religiões; foi
bandeira para situações de opressão, repressão e exploração; inspirou regimes
políticos de qualidade ou ignóbeis; e foi invocado em vão para autos de fé e
para guerras de religião. Os duramente perseguidos dos primeiros séculos pela
fé em Cristo, vivida com ostensivo fervor, foram sucedidos por homens que, no
nome de Cristo, encontraram ensejo para, a par da proposta genuína da salvação,
praticarem obras de perseguição e morte. Porém, não podemos olvidar quantos
continuam a ser vítimas pelo facto de professarem a fé cristã ou os valores
análogos, apesar de se pregar em todos os povos a não discriminação por motivos
religiosos!
E a
literatura piedosa, as academias, as artes e letras, as comunidades de vida e
de trabalho e a política estão prenhes do real cristão e do seu imaginário,
mesmo quando o ignoram, refutam ou combatem. E os monumentos abundam por tudo
quanto é mundo. Os símbolos religiosos enchem museus, salas, praças, peitos e
pulsos.
Porém,
o mais estranho é que, num mundo fortemente secularizado, por vezes impante de
ateísmo, o laicismo, moderado ou estreme, ombreia com as manifestações de
referência ao nome de Cristo. Até já o apelidaram de o primeiro comunista, o
que não é de todo verdade.
Encarar
o Jesus da História implica situá-lo no contexto político, social e religioso
do seu tempo, sob pena de se cair em fantasias lendárias e gnósticas como
sucedeu com os evangelhos posteriores ao século I, não canónicos (por exemplo, o protoevangelho de Tiago, o Evangelho de
Maria Madalena e todos os evangelhos gnósticos). Nos tempos da modernidade muito se tem
escrito acerca de Jesus como essénio, como simples fariseu reformador, como um
zelota ou guerrilheiro, como um mago ou como um marxista por antecipação.
O
experimentalismo renascentista, o iluminismo, mesmo o despótico, e o cientismo
puro, apesar dos frequentes engulhos, distorções e ataques, conviveram com o
cristianismo com alguma razoabilidade. Multiplicaram-se as histórias da Vida de
Cristo, umas com o intuito de acertar, outras com intenção viperina e outras
com estrutura bem lacunar. Alternaram as apologias do cristianismo com os
ataques cerrados ou degradadas elucubrações.
Porém,
há que ter em conta que, partir do século XVII, começou a estudar-se o Novo
Testamento à luz de critérios científicos. Neste âmbito, a questão do Jesus da
História veio à tona e tem seguido um processo diferente conforme a perspetiva
de cada investigador e das posições históricas e ideológicas das diversas
escolas e correntes. São notáveis os 3 volumes de Ratzinger/Bento XVI sob o
título Jesus de Nazaré, escritos e
editados já durante o Pontificado do Papa alemão (da Esfera dos livros, 2007, 2011 e 2012), em que o autor,
disponível para a crítica bíblica, teológica e histórica, pretende ressituar o
Jesus da História; e o volume com o mesmo título de Joachim Gnilka (Editorial Presença, 1999), que, a partir da análise da situação histórica,
política, social e religiosa da época, bem como dos evangelhos, trata a questão
histórica de Jesus e tenta chegar a uma imagem o mais completa possível de
Jesus. São obras que vale a pena ler com a máxima atenção. Porém, a relevância da
matéria impõe a referência às diversas tendências e etapas que enformam o percurso
da questão histórica de Jesus.
Joseph
Ernest Renan, em 1860-1861, cumpriu uma
missão arqueológica na Fenícia, onde perdeu a sua irmã Henriette Renan,
começando no ano seguinte um opúsculo sobre sua irmã. Foi nesta ocasião que concebeu
a obra Vida de Jesus e lançou sobre o
papel a sua primeira redação. Em 186, foi nomeado professor de hebraico no
Collège de France, mas, após a sua primeira aula, onde chamara Jesus de ‘homem
incomparável’, o seu curso foi suspenso pelo governo de Napoleão III, curso
depois suprimido até 1870. Em 1864-1865, uma segunda viagem ao oriente ajudou-o
a preparar a sequência, que ele meditava, da ‘Vida de Jesus’, uma das obras
mais célebres do século XIX, rapidamente traduzida em quase todas as línguas.
Foi o primeiro em França a vulgarizar a exegese alemã de Davi Friederich
Strauss, segundo a qual nada de intervenção sobrenatural tinha a vida de Jesus.
E, em 1863, inicia a História das origens do Cristianismo (1863-1883),
rejeitando toda a noção de mistério. Foi um pensador /investigador que
influenciou enormemente os pensadores seguintes.
A. Schweitzer referia, há cem anos, que “não há
nenhuma tarefa histórica mais pessoal do que escrever uma vida de Jesus” (Neves, 2000). E J. Jeremias escreveu:
“Os racionalistas descrevem
Jesus como o pregador mor; os idealistas como a quinta essência do humanismo;
os estetas exaltam-no como o amigo dos pobres e o reformador social; e os muito
pseudocientíficos fazem dele uma figura de novela” (op. cit).
Gerd Theissen e
Annette Mertz publicaram, em 1996, o volumoso livro O Jesus Histórico em
que estudam com profundidade os diversos temas relacionados com a questão de
Jesus e confirmam a importância dos estudos científicos sobre a pessoa
histórica de Jesus feitos ao longo dos últimos duzentos anos.
O mencionado padre
Carreira das Neves (op. cit.) reparte por três etapas a investigação
científica do Jesus da História.
A primeira é a do
tempo do iluminismo, com as figuras de Reimaurus, Schweitzer,
Bultmann e W. Wrede. Afirmam que os discípulos foram além da intenção inicial de
Jesus, a de ser um judeu libertador, que resultou em fracasso. No quadro da
teologia liberal surgiram muitas vidas de Jesus na ótica do positivismo
histórico. Bultmann, mais tarde, haveria de dizer que “a crítica mais radical e
a fé cristã coexistem, mas não dialogam”, já que parte do pressuposto luterano
de que a fé cristã subsiste apenas a partir do mistério da cruz do Calvário e
nada mais.
A segunda etapa é marcada peça reação dos
discípulos de Bultmann, em que sobressai Käsemann. O investigador parte do
princípio de que os evangelhos têm uma intenção querigmática, mas o seu
quérigma pressupõe a realidade histórica de Jesus, sob pena de se resvalar para
o gnosticismo.
A terceira etapa surge
por volta de 1980. Tanto a Exegese como a Cristologia católica e protestante da
hora atual se fundamentam no pressuposto de que o Cristo da fé está na
continuação do Jesus da História, não sendo de modo algum uma criação das
comunidades cristãs primitivas. O mistério Pascal não contradiz, antes
pressupõe a consciência de Jesus enquanto autoridade única face à Lei, ao Templo,
à Sinagoga, ao Jejum, ao Sábado e ao Perdão dos pecados e como figura
messiânica e escatológica. Ressaltam, nesta etapa, G. Ebeling, E. Fuchs, H.
Braun, W. Marxen, H. Conzelmann, G. Bornkamm e M. Robinson. Ultimamente, a
etapa ganhou novo fôlego com os estudos de alguns exegetas norte-americanos,
voltados para uma orientação interdisciplinar, com relevância para as ciências
humanas, designadamente a sociologia, a antropologia e a arqueologia.
Do lado dos judeus,
estes consideram-no cada vez mais como um irmão judeu fora de série. Martin
Buber declara ter a certeza de que “ele tem um lugar eminente na história
religiosa de Israel e que tal lugar não cabe em nenhuma das categorias usuais”
(op. cit.).
E desde que Israel se tornou independente, os judeus têm publicado mais obras
sobre Jesus, nos últimos anos, que nos dois milénios de Jesus até hoje: em
geral, apresentam Jesus, Maria e os apóstolos como verdadeiros judeus de fé
judaica, embora alguns o apresentem como simpatizante dos zelotas e outros como
um fariseu reformador do judaísmo. Entre estes estudiosos judeus contam-se:
David Flusser, Shalom Bem-Chorim, J. Kçausner e Gesa Vermes.
***
Hoje,
qualquer escritor que pretenda entrar no mercado do cinema, da música, do livro
ou da revista, lá produz uma, duas ou mais obras que abordam a vida de Jesus
Cristo, tantas vezes de forma distorcida e mesmo abjeta. E vendem se o
apresentarem como guerrilheiro, homossexual (estranho
naquele tempo um celibatário, como hoje para muitos), indevida e
exageradamente apaixonado ou, mesmo, casado com Maria Madalena, de quem
alvitram que terá tido filho ou filha ou até a teria engravidado dias antes da
crucifixão. Belos motivos de mercantilização e entretenimento! Tem mercado
assegurado tudo o que pareça inédito e oculto ou aquilo que possa mexer com as
estruturas religiosas e sociais da contemporaneidade. E, se mexer com as
vertentes do erotismo ou do relacionamento com grupos de marginalidade, com
lugares inóspitos ou povos de outras civilizações e espiritualidades, tanto
mais vendável se torna o fresco produto de ficção, ainda que distorça
grandemente os factos ou os invente, logo que faça sangue ou sexo e deslustre
instituições que se impuseram pela sua história ou pela sua ação prestigiante
ou ainda se evidenciarem e hiperbolizarem desvios e erros das instituições que
ostentam a designação de cristãs e católicas.
Ademais,
é sobejamente conhecida a produção artística – figurativa (arquitetura, escultura pintura, design…), musical e dramática
– referente a Cristo, em função quer do culto quer da decoração: os biblots, os crucifixos ou as imagens do
menino, do adulto, do taumaturgo, do ressuscitado…
No
entanto, não será tal abundância de escritos em torno da figura de Cristo,
mesmo desfigurado, um sinal dos tempos? Não quererão os estudiosos refletir
sobre o porquê, talvez denunciador duma grave malha existencial de grandes e
significativas franjas das atuais gerações carentes do ângulo de vista
psicossocial?
Ficou-me
na retina um facto que alegadamente se terá passado com José Saramago, que ouvi
numa palestra sobre a Justiça enquanto valor supremo do Direito, no âmbito do
centenário da implantação da República em Portugal. Alguém o terá interpelado
sobre o motivo por que, sendo ateu e anticristão, escrevera várias obras que
abordavam questões religiosas, Deus, Jesus Cristo, Igreja, etc. O escritor terá
respondido que na Europa e limítrofes todos somos cristãos.
Fiquei
a pensar, depois, como é que se discutiu tanto sobre a inscrição ou não do
fenómeno cristão na matriz europeia apresentada no quadro do preâmbulo do
tratado constitucional da União Europeia, até porque é tão consensual afirmar
que a civilização ocidental se desenvolve nos parâmetros da tradição
judeo-cristã como afirmar a subsistência dos fortes elementos de classicismo e
humanismo na nossa cultura e civilização – isto sem negar outros importantes
contributos históricos e antropológicos.
Mas
persiste a questão: Porquê tanta e tão diversificada referência literária e
artística à Pessoa de Jesus Cristo?
2015.08.23 – Louro de Carvalho
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