quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O direito e o dever de educar – II

O presente arrazoado vem na continuação de algo similar produzido em 30 de agosto de 2014 e reflete, além de informação relevante a acrescentar ao tempo, alguns dados novos, resultantes de algumas alterações legislativas, nomeadamente no atinente a novas transferências em matéria educativa para os municípios (vd DL n.º 30/2015, de 12 de fevereiro; e DL n.º 72/2015, de 11 de maio).
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O nosso direito entende a educação dos filhos como um poder-dever atribuído aos pais, cabendo ao Estado e à sociedade civil assegurar-lhes proteção adequada no exercício dessa prerrogativa. Este estatuto fundacional concretiza-se, na nossa legislação, numa preferência manifesta da família como centro privilegiado de educação e desenvolvimento pessoal e social dos filhos.
Poderá dizer-se que a evolução natural do Estado de Direito Democrático Social vai no sentido de reconhecer o papel essencial da família na sociedade, afastando-se progressivamente de teses mais afoitas que, em tempos não muito distantes e em espectros ideológicos bem distintos, privilegiaram uma conceção mais estatal da educação e do ensino, incumbindo às escolas e a outras entidades públicas o ónus de pura e simplesmente substituir os pais na sua tarefa educativa. Na perspetiva do Estado de Direito Democrático Social, compete ao Estado uma função subsidiária da família, ou seja, deixar que a família faça, em matéria educativa, tudo quanto pode, deve e quer fazer, mas garantir que chegue a todos e cada um dos cidadãos, sobretudo, nas idades convencional e consensualmente marcadas pela escolaridade, o bem da educação integral e educação de qualidade, bem como o ensino científica e tecnicamente válido.
O que tem evoluído, ao longo dos tempos, é o conceito de família e as condições de vida e de trabalho da mesma. E o direito português tem acompanhando essa evolução, quer através de iniciativas legislativas e administrativas, quer através de decisões judiciais que reconhecem um conjunto crescente de direitos e deveres à família alargada e às novas formas de família, bem como às associações que se propõem apoiar a capacidade interventiva das famílias em matéria de política educativa e no quadro da direção estratégica das organizações que prestam o serviço público de educação, com relevo para os municípios (vd DL n.º 72/2015, de 11 de maio). No entanto, essas alterações têm mais a ver com uma reinterpretação do conceito de família (o que é a família) do que com qualquer modificação relevante dos direitos e deveres de pais e de filhos.
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Trata-se de um debate nunca terminado
A relação entre família e escola não constitui, em tese, um foco de tensão no atual sistema educativo, que se carateriza, entre outras coisas, por debater ad nauseam quanto lhe diz respeito. Ao contrário do sucedido noutros países (França ou Estados Unidos da América, por exemplo), em que vários grupos pretendem a atribuição de papel determinante às famílias na definição da orientação da educação e do ensino nas escolas, originando duras polémicas, por cá, a relação escola/família está acomodada à figura administrativa do encarregado de educação e ao papel das associações de país/encarregados de educação, cingindo-se os focos de maior tensão à reivindicação periódica de medidas concretas que atendem a problemas específicos, sejam eles a defesa de maior robustez da ação social ou o direito a medidas de âmbito fiscal que reconheçam o peso efetivo das despesas de educação na economia familiar. Por vezes, excedem-se os pais na excessiva contestação dos resultados escolares dos filhos, dos conteúdos e métodos de ensino (tantas vezes sem conhecimento de causa) e da autoridade dos docentes.
E é pena que assim seja, porque este é um tema que merece muita atenção. Em sistema em que todos se sentem doutorados e deputados (académicos, dirigentes da administração pública, políticos, sindicatos, organizações profissionais, autarquias, representantes da sociedade civil), é desejável que se discuta assiduamente o estado da relação entre pais/encarregados de educação e a escola, dado que esta relação constitui uma das dimensões essenciais do sucesso educativo. 
Aprender e ensinar
Consagrada no art.º 43.º da CRP (Constituição da República Portuguesa), na Parte I- Direitos e Deveres Fundamentais, Título II- Direitos, Liberdades e Garantias, Capítulo I- direitos, liberdades e garantias pessoais, articula-se com o direito à educação consignado nos artigos 73.º e 74.º, a par do direito à cultura e à ciência, no Título III- Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais, Cap. III direitos e deveres culturais.
Os deputados constituintes destacaram as questões da liberdade de aprender e ensinar e as da educação, ciência e cultura, inscrevendo-as no rol dos direitos fundamentais. E, se a 1.ª versão da CRP, atribuía ao Estado o monopólio educativo, reservando ao ensino particular e cooperativo o estatuto de supletivo do ensino público, a partir da revisão ditada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, ficaram abertas outras pistas no quadro da liberdade e da capacidade de organização. Vem a jeito comentar os artigos referidos nas disposições que atingem a matéria em causa, guiando-nos pela LC n.º 1/97, de 20 de setembro, dado as posteriores revisões não terem alterado as normas ora abordadas.
O art.º 43.º inscreve e garante dois direitos distintos, embora correlacionados: a liberdade de aprender e ensinar (n.º 1) e o direito a fundar escolas (n.º 4). A dita liberdade, não implicando a obrigatoriedade de aprender ou ensinar na escola pública, postula a possibilidade de criar escolas particulares e cooperativas (vd também EEPC). Ademais, tal liberdade, como direito pessoal de discentes e docentes, vale para todas as escolas (públicas ou privadas), que não podem eximir-se ao axioma da liberdade de ensino, mormente quando habilitadas à atribuição de qualificações ou graus reconhecidos oficialmente. O Estado abdica do dirigismo educacional, nos termos do n.º 2, para mor garantia da liberdade de aprender e ensinar e do reforço exponencial da índole não confessional do ensino público, abrangendo tal desiderato não apenas o sentido religioso, mas também os campos filosófico, ideológico, estético, político, etc. Fica, assim, ao legislador ordinário proibida a orientação ideológica dos currículos e programas escolares, bem como a discriminação sobre as escolas particulares e cooperativas em razão de suas linhas orientadoras.
A aconfessionalidade do ensino público (n.º 3) é corolário do princípio da não confessionalidade estatal, tal como da aconfessionalidade educacional e cultural, que implicam a vedação de qualquer orientação religiosa da escola pública e a proibição do ensino duma religião como elemento integrante do ensino público. Mas não se infere que a CRP impeça o Estado de facultar às igrejas, em igualdade de circunstâncias, a ministração de ensino religioso na escola pública ou que obrigue a estender a aconfessionalidade a escolas particulares e cooperativas, embora elas detenham o ónus de garantir a liberdade de aprender e ensinar (vd EEPC).
A liberdade de ensino stricto sensu comporta várias componentes sintetizáveis em duas vertentes fulcrais: liberdade de escolha da escola e do tipo e ramo de ensino; e liberdade de ministrar o ensino sem sujeição qualquer orientação imposta (o que desgraçadamente na prática funciona ao contrário). Por isso, dela resultam, como corolário e pressupostos essenciais: o direito de não ser impedido ou discriminado no acesso à escola nem como docente nem como aluno; e o de não conformar o discurso docente pessoal com nenhuma das normas programáticas ditadas por sistema filosófico, corrente ideológica ou estética, credo religioso, etc. (vd também LBSE – lei de bases do sistema educativo, art.os 2.º e 3.º). Porém, apesar de o art.º 35.º do ECD (estatuto da carreira docente) o consagrar expressamente, a autonomia científica e profissional do professor é demasiado cerceada pelos programas, metas curriculares e figurinos de exame nacional.
A par do direito enunciado de forma negativa, isto é, de não ser impedido de aceder à escola ou de expressar condicionadamente o discurso, a CRP realça o direito ao ensino encarado de forma positiva, isto é, o direito de acesso à escola e de obter ensino. Concomitantemente este direito é acompanhado do real dever de obter ensino e de frequentar a escola (cf art.os 73.º a 75.º).
O direito à criação de escolas consiste na liberdade reconhecida a entidades privadas de fundarem estabelecimentos de educação e ensino, sem impedimento ou necessidade de prévia autorização estatal. Porém, esta liberdade não abrange necessariamente o direito de conferir habilitações ou graus públicos nem postula, por si, o direito ao apoio estatal. O exercício de tal prerrogativa depende de autorização ou licença pública e fica submetido a requisitos de maior ou menor exigência, entre os quais, se há de contar o respeito pela liberdade de ensino, o direito de acesso sem discriminação e o princípio da aconfessionalidade (cf LBSE, art.os57.º - 61.º).
Necessária é a exigência da cooperação com as entidades fiscalizadoras, pois, o ensino privado (particular ou cooperativo) está sujeito à fiscalização do Estado (vd art.º 75.º -2). Já o direito ao apoio estatal decorre do direito dos pais à escolha da escola e do ensino que, razoavelmente, pretendam para os filhos e do dever do Estado de criar oportunidades de acesso e êxito a todos os cidadãos. Este direito de escolha, em consonância com a liberdade constitucional de ensinar e de aprender (incluindo o direito dos pais à escolha e à orientação do processo educativo dos filhos), com os subsequentes apoios, vem plasmado no novo EEPC – estatuto do ensino particular e cooperativo (vd art.os 4.º, 5.º, 6.º, 8.º e 9.º).
Por seu turno, o artigo 36.º, n.º 5, da CRP estabelece que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. Desta norma decorre, entre outros, o dever do Estado de “cooperar com os pais na educação dos filhos” (art.º 67.º, n.º 2, c), sendo que, em ambas, o termo “educação” tem um sentido diferente de “ensino”, devendo ser lido num sentido amplo que inclui a transmissão do conhecimento propriamente dito e a miríade de valores sociais, culturais, éticos e outros, realizáveis dentro da família. É esse, de resto, o sentido atribuído pelo Código Civil (CC) à responsabilidade parental que confere aos pais o dever de “no interesse dos filhos (...) dirigir a sua educação” (art.º 1878.º CC), dever que se concretiza pela promoção “...de acordo com as suas possibilidades...” do respetivo “...desenvolvimento físico, intelectual e moral...” (art.º 1885.º CC). Ou seja, enquanto a educação é uma incumbência primordial da família (com o apoio do Estado), o ensino é uma incumbência essencial do Estado, que garante a todos o “direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” (art.º 74.º CRP).
Não obstante, a fronteira entre educação e ensino nem sempre é clara, porque a primeira inclui, fora do contexto escolar, dimensões que podem contender com o segundo e vice-versa. Se é certo que a DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem) confere aos pais a “prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos” (art.º 26.º, n.º 3), e que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (art.º 43.º, n.º 2, CRP), também é verdade que, olhando para este último preceito, temos de concluir que é impossível autonomizar totalmente os métodos de ensino, as práticas pedagógicas e os conteúdos programáticos das dimensões filosóficas, estéticas, políticas e, mesmo, ideológicas ou religiosas, reserváveis em exclusivo aos pais.
Exemplo eloquente do que acaba de ser dito é o da educação sexual. É um tema potencialmente controverso, que mereceu um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (33/82) no já longínquo ano de 1982. A releitura do aí referido sobre o perigo de “doutrinação” inerente à atividade letiva, bem como a recomendação de que os conteúdos lecionados se limitassem unicamente à transmissão de informações de caráter biológico e ao seu enquadramento no âmbito de uma relação humana e afetiva leva a inferir que tal doutrina soa hoje como algo caduca. Ora, o exemplo apontado mostra a existência de áreas de intervenção da escola potencialmente conflituosas com a comunidade que a rodeia e, por outro lado, revela que a perceção da comunidade face a algumas temáticas educativas varia muito, de acordo com a perceção que se vai construindo no espaço público e social. 
Uma estrada a traçar e a percorrer
A lei enquadra a intervenção dos pais e encarregados na comunidade escolar, individualmente considerados, através do Estatuto do Aluno e da Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro), estabelecendo um conjunto de responsabilidades parentais, secundado por um equilibrado sistema sancionatório contra o incumprimento dos deveres dos pais e encarregados de educação. Tal configura um sistema de gestão da relação família-escola que respeita, no essencial, à relação individual do aluno e do encarregado de educação com a escola, deixando algo a desejar quanto à participação das famílias nas grandes decisões da comunidade educativa. Este papel é, no entanto, conferido às associações de pais, que, de resto, têm assento no conselho geral de agrupamento/escola, onde atuam como os representantes dos pais na definição do projeto educativo (e de outros documentos estruturantes) e nos processos de decisão de escola (vd DL n.º 75/2008, de 22 de abril, na atual redação), bem como no conselho municipal de educação, onde participam na definição e gestão da política educativa municipal, na aprovação da carta educativa, na organização da rede escolar e na elaboração do plano estratégico educativo municipal (vd Dl n.º 7/2003, de 15 de janeiro, na atual redação). Não questionando o papel relevante de muitas associações de pais na vida das respetivas comunidades educativas, não deixa de ser um sistema institucional, que perde alguma eficácia porque está refém dos formalismos típicos das nossas instituições. Num país com uma cultura cívica relativamente pobre, a escola tem de ser fator de integração e participação comunitária, matéria em que há muito a fazer. 
Convém não esquecer que a democratização da educação, consagrada no n.º 2 do art.º 73.º da CRP, pretende a realização do direito de todos à educação, constituindo a sua universalidade. E a sua garantia reside no direito ao ensino ou à educação formal pela via escolar, sem prejuízo do direito à educação informal, atributo peculiar dos pais, em paralelo com o da manutenção dos filhos, com direito ao auxílio e cooperação do Estado (cf art. os 36.º, n.º 3 e 5, 67.º, n.º 2/c) e 68.º, n.º 1). Tal garantia comporta a futura realização profissional e a participação na vida cívica do país.
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Veja-se, analise-se e aja-se!

2015.08.19 – Louro de Carvalho

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