O presente
arrazoado vem na continuação de algo similar produzido em 30 de agosto de 2014
e reflete, além de informação relevante a acrescentar ao tempo, alguns dados
novos, resultantes de algumas alterações legislativas, nomeadamente no atinente
a novas transferências em matéria educativa para os municípios (vd DL n.º 30/2015,
de 12 de fevereiro; e DL n.º 72/2015, de 11 de maio).
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O nosso
direito entende a educação dos filhos como um poder-dever atribuído aos pais, cabendo
ao Estado e à sociedade civil assegurar-lhes proteção adequada no exercício
dessa prerrogativa. Este estatuto fundacional concretiza-se, na nossa
legislação, numa preferência manifesta da família como centro privilegiado de
educação e desenvolvimento pessoal e social dos filhos.
Poderá dizer-se que a evolução natural do Estado de Direito
Democrático Social vai no sentido de reconhecer o papel essencial da família na
sociedade, afastando-se progressivamente de teses mais afoitas que, em tempos
não muito distantes e em espectros ideológicos bem distintos, privilegiaram uma
conceção mais estatal da educação e do ensino, incumbindo às escolas e a outras
entidades públicas o ónus de pura e simplesmente substituir os pais na sua
tarefa educativa. Na perspetiva do Estado de Direito Democrático Social,
compete ao Estado uma função subsidiária da família, ou seja, deixar que a
família faça, em matéria educativa, tudo quanto pode, deve e quer fazer, mas
garantir que chegue a todos e cada um dos cidadãos, sobretudo, nas idades
convencional e consensualmente marcadas pela escolaridade, o bem da educação
integral e educação de qualidade, bem como o ensino científica e tecnicamente válido.
O que tem evoluído, ao longo dos tempos, é o conceito
de família e as condições de vida e de trabalho da mesma. E o direito português
tem acompanhando essa evolução, quer através de iniciativas legislativas e
administrativas, quer através de decisões judiciais que reconhecem um conjunto
crescente de direitos e deveres à família alargada e às novas formas de família,
bem como às associações que se propõem apoiar a capacidade interventiva das
famílias em matéria de política educativa e no quadro da direção estratégica
das organizações que prestam o serviço público de educação, com relevo para os
municípios (vd DL n.º 72/2015, de 11 de maio). No
entanto, essas alterações têm mais a ver com uma reinterpretação do conceito de
família (o que é a família) do que com
qualquer modificação relevante dos direitos e deveres de pais e de filhos.
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Trata-se de um debate nunca terminado
A relação entre família e escola não constitui, em
tese, um foco de tensão no atual sistema educativo, que se carateriza, entre
outras coisas, por debater ad nauseam
quanto lhe diz respeito. Ao contrário do sucedido noutros países (França ou
Estados Unidos da América, por exemplo), em que vários
grupos pretendem a atribuição de papel determinante às famílias na definição da
orientação da educação e do ensino nas escolas, originando duras polémicas, por
cá, a relação escola/família está acomodada à figura administrativa do
encarregado de educação e ao papel das associações de país/encarregados de
educação, cingindo-se os focos de maior tensão à reivindicação periódica de
medidas concretas que atendem a problemas específicos, sejam eles a defesa de maior
robustez da ação social ou o direito a medidas de âmbito fiscal que reconheçam
o peso efetivo das despesas de educação na economia familiar. Por vezes,
excedem-se os pais na excessiva contestação dos resultados escolares dos
filhos, dos conteúdos e métodos de ensino (tantas vezes sem conhecimento de
causa) e da autoridade dos docentes.
E é pena que assim seja, porque este é um tema que
merece muita atenção. Em sistema em que todos se sentem doutorados e deputados (académicos,
dirigentes da administração pública, políticos, sindicatos, organizações
profissionais, autarquias, representantes da sociedade civil), é desejável que se discuta assiduamente o estado da
relação entre pais/encarregados de educação e a escola, dado que esta relação constitui
uma das dimensões essenciais do sucesso educativo.
Aprender e ensinar
Consagrada
no art.º 43.º da CRP (Constituição da República Portuguesa), na Parte I- Direitos e Deveres Fundamentais,
Título II- Direitos, Liberdades e Garantias, Capítulo I- direitos,
liberdades e garantias pessoais, articula-se com o direito à educação
consignado nos artigos 73.º e 74.º, a par do direito à cultura e à ciência, no
Título III- Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais,
Cap. III direitos e deveres culturais.
Os deputados
constituintes destacaram as questões da liberdade de aprender e ensinar e as da
educação, ciência e cultura, inscrevendo-as no rol dos direitos fundamentais.
E, se a 1.ª versão da CRP, atribuía ao Estado o monopólio educativo, reservando
ao ensino particular e cooperativo o estatuto de supletivo do ensino público, a
partir da revisão ditada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro,
ficaram abertas outras pistas no quadro da liberdade e da capacidade de
organização. Vem a jeito comentar os artigos referidos nas
disposições que atingem a matéria em causa, guiando-nos pela LC n.º 1/97, de 20
de setembro, dado as posteriores revisões não terem alterado as normas ora
abordadas.
O art.º 43.º inscreve
e garante dois direitos distintos, embora correlacionados: a liberdade de
aprender e ensinar (n.º 1) e o
direito a fundar escolas (n.º 4). A dita
liberdade, não implicando a obrigatoriedade de aprender ou ensinar na escola
pública, postula a possibilidade de criar escolas particulares e cooperativas (vd também
EEPC). Ademais, tal liberdade, como
direito pessoal de discentes e docentes, vale para todas as escolas (públicas ou
privadas), que não podem eximir-se ao axioma
da liberdade de ensino, mormente quando habilitadas à atribuição de
qualificações ou graus reconhecidos oficialmente. O Estado abdica do dirigismo
educacional, nos termos do n.º 2, para mor garantia da liberdade de aprender e
ensinar e do reforço exponencial da índole não confessional do ensino público,
abrangendo tal desiderato não apenas o sentido religioso, mas também os campos
filosófico, ideológico, estético, político, etc. Fica, assim, ao legislador
ordinário proibida a orientação ideológica dos currículos e programas
escolares, bem como a discriminação sobre as escolas particulares e cooperativas
em razão de suas linhas orientadoras.
A
aconfessionalidade do ensino público (n.º 3) é corolário do princípio da não confessionalidade estatal, tal como da
aconfessionalidade educacional e cultural, que implicam a vedação de qualquer
orientação religiosa da escola pública e a proibição do ensino duma religião
como elemento integrante do ensino público. Mas não se infere que a CRP impeça
o Estado de facultar às igrejas, em igualdade de circunstâncias, a ministração
de ensino religioso na escola pública ou que obrigue a estender a
aconfessionalidade a escolas particulares e cooperativas, embora elas detenham
o ónus de garantir a liberdade de aprender e ensinar (vd EEPC).
A liberdade
de ensino stricto sensu comporta várias
componentes sintetizáveis em duas vertentes fulcrais: liberdade de escolha da
escola e do tipo e ramo de ensino; e liberdade de ministrar o ensino sem
sujeição qualquer orientação imposta (o que desgraçadamente na prática
funciona ao contrário). Por isso,
dela resultam, como corolário e pressupostos essenciais: o direito de não ser
impedido ou discriminado no acesso à escola nem como docente nem como aluno; e
o de não conformar o discurso docente pessoal com nenhuma das normas
programáticas ditadas por sistema filosófico, corrente ideológica ou estética,
credo religioso, etc. (vd também LBSE – lei de bases do sistema educativo,
art.os 2.º e 3.º). Porém,
apesar de o art.º 35.º do ECD (estatuto da carreira docente) o consagrar expressamente, a autonomia científica e profissional
do professor é demasiado cerceada pelos programas, metas curriculares e figurinos
de exame nacional.
A par do
direito enunciado de forma negativa, isto é, de não ser impedido de aceder à
escola ou de expressar condicionadamente o discurso, a CRP realça o direito ao
ensino encarado de forma positiva, isto é, o direito de acesso à escola e de
obter ensino. Concomitantemente este direito é acompanhado do real dever de
obter ensino e de frequentar a escola (cf art.os 73.º a 75.º).
O direito à criação
de escolas consiste na liberdade reconhecida a entidades privadas de fundarem
estabelecimentos de educação e ensino, sem impedimento ou necessidade de prévia
autorização estatal. Porém, esta liberdade não abrange necessariamente o
direito de conferir habilitações ou graus públicos nem postula, por si, o
direito ao apoio estatal. O exercício de tal prerrogativa depende de
autorização ou licença pública e fica submetido a requisitos de maior ou menor
exigência, entre os quais, se há de contar o respeito pela liberdade de ensino,
o direito de acesso sem discriminação e o princípio da aconfessionalidade (cf LBSE,
art.os57.º - 61.º).
Necessária é
a exigência da cooperação com as entidades fiscalizadoras, pois, o ensino
privado (particular ou cooperativo) está sujeito
à fiscalização do Estado (vd art.º 75.º -2). Já o
direito ao apoio estatal decorre do direito dos pais à escolha da escola e do
ensino que, razoavelmente, pretendam para os filhos e do dever do Estado de
criar oportunidades de acesso e êxito a todos os cidadãos. Este direito de
escolha, em consonância com a liberdade constitucional de ensinar e de aprender
(incluindo
o direito dos pais à escolha e à orientação do processo educativo dos filhos), com os subsequentes apoios, vem plasmado no novo EEPC
– estatuto do ensino particular e cooperativo (vd art.os 4.º, 5.º, 6.º,
8.º e 9.º).
Por seu turno, o artigo 36.º, n.º 5, da CRP estabelece
que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”.
Desta norma decorre, entre outros, o dever do Estado de “cooperar com os pais
na educação dos filhos” (art.º 67.º, n.º 2, c), sendo que, em ambas, o termo “educação” tem um sentido diferente de
“ensino”, devendo ser lido num sentido amplo que inclui a transmissão do
conhecimento propriamente dito e a miríade de valores sociais, culturais,
éticos e outros, realizáveis dentro da família. É esse, de resto, o sentido
atribuído pelo Código Civil (CC) à
responsabilidade parental que confere aos pais o dever de “no interesse dos filhos (...) dirigir a sua educação” (art.º 1878.º
CC), dever que se concretiza pela
promoção “...de acordo com as suas possibilidades...” do respetivo
“...desenvolvimento físico, intelectual e moral...” (art.º 1885.º
CC). Ou seja, enquanto a educação é
uma incumbência primordial da família (com o apoio do Estado), o ensino é uma incumbência essencial do Estado, que
garante a todos o “direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito
escolar” (art.º 74.º CRP).
Não obstante, a fronteira entre educação e ensino nem
sempre é clara, porque a primeira inclui, fora do contexto escolar, dimensões
que podem contender com o segundo e vice-versa. Se é certo que a DUDH (Declaração Universal
dos Direitos do Homem) confere
aos pais a “prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos
filhos” (art.º 26.º,
n.º 3), e que “o Estado não pode
programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas,
políticas, ideológicas ou religiosas” (art.º 43.º, n.º 2, CRP), também é verdade que, olhando para este último preceito,
temos de concluir que é impossível autonomizar totalmente os métodos de ensino,
as práticas pedagógicas e os conteúdos programáticos das dimensões filosóficas,
estéticas, políticas e, mesmo, ideológicas ou religiosas, reserváveis em
exclusivo aos pais.
Exemplo eloquente do que acaba de ser dito é o da
educação sexual. É um tema potencialmente controverso, que mereceu um parecer
do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (33/82) no já longínquo ano de 1982. A releitura do aí referido
sobre o perigo de “doutrinação” inerente à atividade letiva, bem como a recomendação
de que os conteúdos lecionados se limitassem unicamente à transmissão de
informações de caráter biológico e ao seu enquadramento no âmbito de uma
relação humana e afetiva leva a inferir que tal doutrina soa hoje como algo
caduca. Ora, o exemplo apontado mostra a existência de áreas de intervenção da
escola potencialmente conflituosas com a comunidade que a rodeia e, por outro
lado, revela que a perceção da comunidade face a algumas temáticas educativas
varia muito, de acordo com a perceção que se vai construindo no espaço público
e social.
Uma
estrada a traçar e a percorrer
A lei enquadra a intervenção dos pais e encarregados
na comunidade escolar, individualmente considerados, através do Estatuto do
Aluno e da Ética Escolar (Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro), estabelecendo um conjunto de responsabilidades
parentais, secundado por um equilibrado sistema sancionatório contra o incumprimento
dos deveres dos pais e encarregados de educação. Tal configura um sistema de
gestão da relação família-escola que respeita, no essencial, à relação individual
do aluno e do encarregado de educação com a escola, deixando algo a desejar
quanto à participação das famílias nas grandes decisões da comunidade
educativa. Este papel é, no entanto, conferido às associações de pais,
que, de resto, têm assento no conselho geral de agrupamento/escola, onde atuam como
os representantes dos pais na definição do projeto educativo (e de outros
documentos estruturantes) e nos
processos de decisão de escola (vd DL n.º 75/2008, de 22 de abril, na atual redação), bem como no conselho municipal de educação, onde
participam na definição e gestão da política educativa municipal, na aprovação
da carta educativa, na organização da rede escolar e na elaboração do plano estratégico
educativo municipal (vd Dl n.º 7/2003, de 15 de janeiro, na atual redação). Não questionando o papel relevante de muitas
associações de pais na vida das respetivas comunidades educativas, não deixa de
ser um sistema institucional, que perde alguma eficácia porque está refém dos
formalismos típicos das nossas instituições. Num país com uma cultura
cívica relativamente pobre, a escola tem de ser fator de integração e
participação comunitária, matéria em que há muito a fazer.
Convém não
esquecer que a democratização da educação, consagrada no n.º 2 do art.º 73.º da
CRP, pretende a realização do direito de todos à educação, constituindo a sua
universalidade. E a sua garantia reside no direito ao ensino ou à educação
formal pela via escolar, sem prejuízo do direito à educação informal, atributo
peculiar dos pais, em paralelo com o da manutenção dos filhos, com direito ao
auxílio e cooperação do Estado (cf art. os
36.º, n.º 3 e 5, 67.º, n.º 2/c) e 68.º, n.º 1). Tal garantia comporta a futura realização profissional e a
participação na vida cívica do país.
***
Veja-se,
analise-se e aja-se!
2015.08.19
– Louro de Carvalho
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