Dou agora seguimento à reflexão iniciada
no texto anterior, com título semelhante, abordando mais em pormenor alguns
aspetos polémicos do grande acontecimento do século XX para a Igreja e para o
Mundo, que foi exatamente o Concílio Vaticano II.
Quem se der ao cuidado de confrontar
estes textos com o do anteriormente referido noviço do Mosteiro de Santa Cruz,
notará que esta reflexão se desdobra em mais questões que as 15 do aludido
catecismo.
Segunda Parte
20- O Concílio Vaticano II promulgou, como se disse, 16
documentos: 4 constituições, 9 decretos e 3 declarações.
21- As constituições são por ordem cronológica: a Constituição
sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum
Concilium (SC), 4 de dezembro de 1963; a
Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen
Gentium (LG), 21 de novembro de 1964; a Constituição
Dogmática sobre a Revelação Divina Dei
Verbum (DV), 18 de novembro de 1965; e a Constituição
Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium Spes (GS), 7 de
dezembro de 1965.
- Os decretos são, por ordem
cronológica: o decreto sobre os meios de comunicação social Inter Mirifica (IM), 4 de dezembro de 1963; o decreto sobre as Igrejas
Orientais Orientalium Ecclesiarum (OE), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o
ecumenismo Unitatis redintegratio (UR), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o múnus
pastoral dos bispos na Igreja Christus
Dominus (CD), 28 de outubro de 1965; o decreto
sobre a atualização dos religiosos Perfectae
Caritatis (PC), 28 de outubro de 1965; o decreto
sobre a formação sacerdotal Optatam
Totius (OT), 28 de outubro de 1965; o decreto
sobre o apostolado dos leigos Apostolicam
Actuositatem (AA), 18 de
novembro de 1965; o decreto sobre a atividade missionária da Igreja Ad Gentes (AG), 7 de dezembro de 1965; e o decreto sobre o
ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum
Ordinis (PO), 7 de dezembro de 1965.
- As declarações são por ordem
cronológica: a declaração sobre as relações da Igreja com as religiões
não-cristãs Nostra Aetate (NA), 28 de outubro de 1965; a declaração sobre a
educação cristã Gravissimum Educationis (GE), 28 de outubro de 1965; e a declaração sobre a
liberdade religiosa Dignitatis Humanae
(DH), 7 de dezembro de 1965.
22- Os detratores do Vaticano II acusam os seus
documentos de conterem erros incompatíveis com a doutrina católica, sobretudo
ao exprimirem o espírito liberal, modernista e progressista, contrário aos
ensinamentos tradicionais em muitos pontos. Neste aspeto, evidenciam, como os
principais documentos que contradizem os ensinamentos da doutrina católica e
dos Papas anteriores ao Concílio (Gregório XVI, Pio IX, S. Pio X, Leão
XIII, Pio XI, etc.): a Constituição
Lumen Gentium, a Constituição Gaudium Spes, o Decreto Unitatis redintegratio, as declarações Dignitatis Humanae e a Nostra Aetate.
23- Esquecem que qualquer sistema ideológico que
contrarie a doutrina da Igreja – como o liberalismo, na ótica de endeusamento
do homem e absolutização do capital, o positivismo, como circunscrevendo a
validade do conhecimento do mundo meramente visível (negando ou
desprezando o das coisas invisíveis e metafísicas), o materialismo histórico (ateu e antiteísta) ou o nacionalismo eclesial e o da supremacia do concílio
ou do sínodo sobre o papa – continua a ser contestado pela Igreja e pelo Concílio.
24- Quanto às principais questões que se discutiram no
Concílio, das que foram mais importantes e problemáticas, os seus detratores relevam
três: a liberdade religiosa, o ecumenismo e a colegialidade episcopal.
É sempre necessário ter em conta o
que Pedro afirmou:
“Reconheço
por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que lhe é agradável
aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo” (At 10,34-35).
- Sobre a liberdade religiosa, citam
o n.º 2 da Dignitatis Humanae,
como inaceitável:
“Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana
tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade consiste no seguinte: todos
os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos
grupos ou de qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria
religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem
impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado
com outros, dentro dos devidos limites”.
- Diga-se que
o enunciado sobre a liberdade religiosa funda-se sobre a dignidade da pessoa
humana, que muitos esquecem:
“O Concílio declara, além disso, que o direito à
liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana, tal
como a fizeram conhecer a Palavra de Deus e a razão mesma”.
25- Efetivamente, para quem entende ao pé da letra a
máxima que “fora da Igreja não há salvação” parece entrar-se em contradição
quando se defende a liberdade religiosa. Porém, nem o mandato evangélico nem o
seu cumprimento apostólico confundiram a proposta com a imposição, ou o
apostolado com o proselitismo. Ademais, sempre os moralistas entenderam e ensinaram
que a norma da moralidade era a consciência de cada um retamente formada.
Depois, não podem uns exigir a liberdade religiosa para si e negá-la para
outros.
- A palavra do Magistério da Igreja
veio, em 2000, esclarecer a questão, através da declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé:
“Antes de mais, deve crer-se firmemente que
a 'Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é
mediador e caminho de salvação; ora, Ele torna-se-nos presente no seu Corpo que
é a Igreja; e, ao inculcar por palavras explícitas a necessidade da fé e do
Batismo (cf Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da
Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo tal como por uma porta'. Esta
doutrina não se contrapõe à vontade salvífica universal de Deus (cf 1Tim 2,4);
daí, a necessidade de manter unidas estas duas verdades: a real possibilidade
de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa
salvação”.
- Por outro lado, a carta do Santo Ofício
ao arcebispo de Boston, de 8 de outubro de 1949, explicita, não sendo a
liberdade religiosa contrária à doutrina anterior:
“Por isso, ninguém será salvo se, sabendo
que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, todavia não aceita
submeter-se à Igreja ou recusa obediência ao Romano Pontífice, vigário de
Cristo na terra”.
“Ora, o Salvador não apenas ordenou que
todas as nações entrassem na Igreja, mas ainda decidiu que a Igreja seria o meio
de salvação sem o qual ninguém pode entrar no reino celeste”. (...)
“Para que alguém obtenha a salvação eterna
não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro,
mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo”.
“Todavia, não é
sempre necessário que este voto seja explícito como o é o dos catecúmenos, mas,
quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto
implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual
essa pessoa quer conformar a sua vontade à vontade de Deus”. (cf
Denzinger-Hünnermann, n. 3867-3870).
26- Em relação ao ecumenismo, importa reter a
genuinidade do seu conceito: o movimento que teve origem no século XIX,
primeiro entre cristãos não católicos com acompanhamento tímido de alguns
católicos, e que tem por objetivo a aproximação das diversas confissões cristãs
e a cooperação entre si, quer no aprofundamento da doutrina e na expressão da fé,
quer nas causas comuns em termos sociais e humanitários.
27- A princípio, a Igreja Católica guardou claro
distanciamento. Apesar de o movimento ecuménico ter sido acolhido muito antes nalguns
dos meios académicos e de reflexão do catolicismo, foi com o Papa João XXIII e
com o Concílio Vaticano II que o ecumenismo foi integramente assumido pela
doutrina e postura católicas.
28- O mesmo contorno de espírito e de práxis conduziu, em seguida, a
aproximar-se das religiões não cristãs. É o que se chama diálogo
inter-religioso.
29- O Vaticano II consagrou
ao ecumenismo um decreto especial, intitulado Unitatis Redintegratio,
e às relações da Igreja com as religiões não cristãs a declaração Nostra
Aetate.
30- Jesus Cristo fundou
uma única Igreja, que subsiste na Igreja Católica. A Igreja de Cristo é única a possuir a plenitude da Verdade.
Sendo assim, em tese, a unidade dos cristãos apenas poderia ser restabelecida
pela conversão e pelo retorno dos indivíduos ou das comunidades separadas ao
seio da Igreja de Jesus Cristo. Tal é o ensinamento de
Pio XI em Mortalium animos:
“A união dos cristãos não pode ser
buscada de outro modo que não seja favorecendo o retorno dos dissidentes à
única e verdadeira Igreja de cristo, a qual tiveram, um dia, a infelicidade de
abandonar”.
31- No entanto, no
Vaticano II, a Igreja adotou uma nova atitude, que não corresponde a nova
doutrina, como pregam alguns. Com efeito:
“Cristo
Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia, são numerosas as Comunhões
cristãs que se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo.
Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres
diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse
dividido. Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo e é
escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do
Evangelho a toda a criatura.” (UR,1).
32- Pretende-se o aprofundamento
do estudo da Bíblia, o apuramento da doutrina e a cooperação mútua, bem como a
mentalidade e a história das outras comunidades cristãs, no pressuposto de que
a História não julgará de todo inocente a prática da Igreja Católica no atinente
às matérias que foram e são causa de separação. Por isso, “o modo e o método de
formular a doutrina católica de forma alguma devem transformar-se em obstáculo
ao diálogo com os irmãos”. No entanto:
“É absolutamente necessário que toda a
doutrina seja exposta com clareza. Nada tão alheio ao ecumenismo como aquele
falso irenismo pelo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e é
obscurecido o seu sentido genuíno e certo. Ao mesmo tempo, a fé católica deve
ser explicada mais profunda e corretamente, de tal modo e com tais termos que
possa ser de facto compreendida também pelos irmãos separados. Ademais, no
diálogo ecuménico, os teólogos católicos, sempre fiéis à doutrina da Igreja,
quando investigarem juntamente com os irmãos separados os divinos mistérios,
devem proceder com amor pela verdade, com caridade e humildade. Na comparação
das doutrinas, lembrem-se que existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas
com o fundamento da fé cristã é diferente. Assim se abre o caminho pelo qual,
mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento
mais profundo e a uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo”.
(UR,11).
33- Finalmente, no concernente
ao ecumenismo, os Padres Conciliares afirmam:
“Este
sagrado Concílio deseja insistentemente que as iniciativas dos filhos da Igreja
católica juntamente com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se
ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os
futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar consciente de que
o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única
Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca
inteiramente a sua esperança na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai
para connosco e na virtude do Espírito Santo. ‘E a esperança não será
confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5).”
34- Quanto ao diálogo
inter-religioso, a declaração Nostra
Aetate refere, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e no
direito/dever do seguimento da própria consciência, bem como nas justas aspirações
das pessoas e dos grupos:
“Em primeiro lugar, afirma o sagrado
Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo
qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo.
Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e
apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens,
dizendo aos Apóstolos: Ide, pois, fazer
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi’ (Mt 28, 9-20).
Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no
que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e
guardar. O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e
obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão
pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave
e forte. Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no
exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coação
na sociedade civil, em nada afeta a doutrina católica tradicional acerca do
dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e
a única Igreja de Cristo. Além disso, ao tratar desta liberdade religiosa, o
sagrado Concílio tem a intenção de desenvolver a doutrina dos últimos Sumos
Pontífices acerca dos direitos invioláveis da pessoa humana e da ordem jurídica
da sociedade.” (NA,1).
35- A Igreja Católica
não foi mais apresentada como a única entidade que leva à salvação, mas como instrumento
universal e sacramento de salvação. As outras confissões cristãs, e mesmo as
religiões não cristãs, foram consideradas também expressões (sem dúvida menos perfeitas, mas ainda assim válidas) de genuína religião, de acesso a Deus,
de escada para a salvação eterna. Não é mais uma questão (forçada) de conversão dos não católicos à Igreja Católica, mas de diálogo e
de pluralismo religioso.
36- Sobre a
colegialidade episcopal, o Concílio não contraria a Tradição nem a doutrina
católica do Magistério da Igreja. Efetivamente cada bispo tem autoridade sobre a sua diocese e o papa
tem jurisdição sobre a Igreja Universal. Todavia, nem o Papa, a quem incumbe a primeira
e a última palavra, fica dispensado de ouvir os bispos quer em concílio e em
sínodo quer individualmente, sobretudo para a definição de doutrina em matéria
de fé e costumes e é útil que os escute nas questões de governação. Os bispos,
além do cuidado para com a porção do rebanho que lhes foi confiada, não podem
como sucessores dos apóstolos deixar de ter em conta a solicitude pelas Igrejas.
***
Tudo há que fazer para
que a Igreja de Cristo se exprima como comunidade, construa comunhão, se afirme
como Povo de Deus e espelhe o vulto misericordioso e terno de Deus.
2015.08.31 – Louro de Carvalho
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