segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Em torno de um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II – II

Dou agora seguimento à reflexão iniciada no texto anterior, com título semelhante, abordando mais em pormenor alguns aspetos polémicos do grande acontecimento do século XX para a Igreja e para o Mundo, que foi exatamente o Concílio Vaticano II.
Quem se der ao cuidado de confrontar estes textos com o do anteriormente referido noviço do Mosteiro de Santa Cruz, notará que esta reflexão se desdobra em mais questões que as 15 do aludido catecismo.
Segunda Parte
20- O Concílio Vaticano II promulgou, como se disse, 16 documentos: 4 constituições, 9 decretos e 3 declarações.
21- As constituições são por ordem cronológica: a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (SC), 4 de dezembro de 1963; a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium (LG), 21 de novembro de 1964; a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina Dei Verbum (DV), 18 de novembro de 1965; e a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium Spes (GS), 7 de dezembro de 1965.
- Os decretos são, por ordem cronológica: o decreto sobre os meios de comunicação social Inter Mirifica (IM), 4 de dezembro de 1963; o decreto sobre as Igrejas Orientais Orientalium Ecclesiarum (OE), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio (UR), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja Christus Dominus (CD), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre a atualização dos religiosos Perfectae Caritatis (PC), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre a formação sacerdotal Optatam Totius (OT), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre o apostolado dos leigos Apostolicam Actuositatem (AA), 18 de novembro de 1965; o decreto sobre a atividade missionária da Igreja Ad Gentes (AG), 7 de dezembro de 1965; e o decreto sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum Ordinis (PO), 7 de dezembro de 1965. 
- As declarações são por ordem cronológica: a declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra Aetate (NA), 28 de outubro de 1965; a declaração sobre a educação cristã Gravissimum Educationis (GE), 28 de outubro de 1965; e a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae (DH), 7 de dezembro de 1965.
22- Os detratores do Vaticano II acusam os seus documentos de conterem erros incompatíveis com a doutrina católica, sobretudo ao exprimirem o espírito liberal, modernista e progressista, contrário aos ensinamentos tradicionais em muitos pontos. Neste aspeto, evidenciam, como os principais documentos que contradizem os ensinamentos da doutrina católica e dos Papas anteriores ao Concílio (Gregório XVI, Pio IX, S. Pio X, Leão XIII, Pio XI, etc.): a Constituição Lumen Gentium, a Constituição Gaudium Spes, o Decreto Unitatis redintegratio, as declarações Dignitatis Humanae e a Nostra Aetate.
23- Esquecem que qualquer sistema ideológico que contrarie a doutrina da Igreja – como o liberalismo, na ótica de endeusamento do homem e absolutização do capital, o positivismo, como circunscrevendo a validade do conhecimento do mundo meramente visível (negando ou desprezando o das coisas invisíveis e metafísicas), o materialismo histórico (ateu e antiteísta) ou o nacionalismo eclesial e o da supremacia do concílio ou do sínodo sobre o papa – continua a ser contestado pela Igreja e pelo Concílio.
24- Quanto às principais questões que se discutiram no Concílio, das que foram mais importantes e problemáticas, os seus detratores relevam três: a liberdade religiosa, o ecumenismo e a colegialidade episcopal.
É sempre necessário ter em conta o que Pedro afirmou:
“Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo” (At 10,34-35).

- Sobre a liberdade religiosa, citam o n.º 2 da Dignitatis Humanae, como inaceitável:
“Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos ou de qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites”.

- Diga-se que o enunciado sobre a liberdade religiosa funda-se sobre a dignidade da pessoa humana, que muitos esquecem:
“O Concílio declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana, tal como a fizeram conhecer a Palavra de Deus e a razão mesma”.

25- Efetivamente, para quem entende ao pé da letra a máxima que “fora da Igreja não há salvação” parece entrar-se em contradição quando se defende a liberdade religiosa. Porém, nem o mandato evangélico nem o seu cumprimento apostólico confundiram a proposta com a imposição, ou o apostolado com o proselitismo. Ademais, sempre os moralistas entenderam e ensinaram que a norma da moralidade era a consciência de cada um retamente formada. Depois, não podem uns exigir a liberdade religiosa para si e negá-la para outros.
- A palavra do Magistério da Igreja veio, em 2000, esclarecer a questão, através da declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé:
 “Antes de mais, deve crer-se firmemente que a 'Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação; ora, Ele torna-se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja; e, ao inculcar por palavras explícitas a necessidade da fé e do Batismo (cf Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo tal como por uma porta'. Esta doutrina não se contrapõe à vontade salvífica universal de Deus (cf 1Tim 2,4); daí, a necessidade de manter unidas estas duas verdades: a real possibilidade de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa salvação”.

- Por outro lado, a carta do Santo Ofício ao arcebispo de Boston, de 8 de outubro de 1949, explicita, não sendo a liberdade religiosa contrária à doutrina anterior:
“Por isso, ninguém será salvo se, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, todavia não aceita submeter-se à Igreja ou recusa obediência ao Romano Pontífice, vigário de Cristo na terra”.
“Ora, o Salvador não apenas ordenou que todas as nações entrassem na Igreja, mas ainda decidiu que a Igreja seria o meio de salvação sem o qual ninguém pode entrar no reino celeste”. (...)
“Para que alguém obtenha a salvação eterna não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro, mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo”.
“Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é o dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar a sua vontade à vontade de Deus”. (cf Denzinger-Hünnermann, n. 3867-3870).

26- Em relação ao ecumenismo, importa reter a genuinidade do seu conceito: o movimento que teve origem no século XIX, primeiro entre cristãos não católicos com acompanhamento tímido de alguns católicos, e que tem por objetivo a aproximação das diversas confissões cristãs e a cooperação entre si, quer no aprofundamento da doutrina e na expressão da fé, quer nas causas comuns em termos sociais e humanitários.
27- A princípio, a Igreja Católica guardou claro distanciamento. Apesar de o movimento ecuménico ter sido acolhido muito antes nalguns dos meios académicos e de reflexão do catolicismo, foi com o Papa João XXIII e com o Concílio Vaticano II que o ecumenismo foi integramente assumido pela doutrina e postura católicas.
28- O mesmo contorno de espírito e de práxis conduziu, em seguida, a aproximar-se das religiões não cristãs. É o que se chama diálogo inter-religioso.
29- O Vaticano II consagrou ao ecumenismo um decreto especial, intitulado Unitatis Redintegratio, e às relações da Igreja com as religiões não cristãs a declaração Nostra Aetate.
30- Jesus Cristo fundou uma única Igreja, que subsiste na Igreja Católica. A Igreja de Cristo é única a possuir a plenitude da Verdade. Sendo assim, em tese, a unidade dos cristãos apenas poderia ser restabelecida pela conversão e pelo retorno dos indivíduos ou das comunidades separadas ao seio da Igreja de Jesus Cristo. Tal é o ensinamento de Pio XI em Mortalium animos:
“A união dos cristãos não pode ser buscada de outro modo que não seja favorecendo o retorno dos dissidentes à única e verdadeira Igreja de cristo, a qual tiveram, um dia, a infelicidade de abandonar”.

31- No entanto, no Vaticano II, a Igreja adotou uma nova atitude, que não corresponde a nova doutrina, como pregam alguns. Com efeito:
“Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia, são numerosas as Comunhões cristãs que se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo. Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido. Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura.” (UR,1).

32- Pretende-se o aprofundamento do estudo da Bíblia, o apuramento da doutrina e a cooperação mútua, bem como a mentalidade e a história das outras comunidades cristãs, no pressuposto de que a História não julgará de todo inocente a prática da Igreja Católica no atinente às matérias que foram e são causa de separação. Por isso, “o modo e o método de formular a doutrina católica de forma alguma devem transformar-se em obstáculo ao diálogo com os irmãos”. No entanto:
“É absolutamente necessário que toda a doutrina seja exposta com clareza. Nada tão alheio ao ecumenismo como aquele falso irenismo pelo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e é obscurecido o seu sentido genuíno e certo. Ao mesmo tempo, a fé católica deve ser explicada mais profunda e corretamente, de tal modo e com tais termos que possa ser de facto compreendida também pelos irmãos separados. Ademais, no diálogo ecuménico, os teólogos católicos, sempre fiéis à doutrina da Igreja, quando investigarem juntamente com os irmãos separados os divinos mistérios, devem proceder com amor pela verdade, com caridade e humildade. Na comparação das doutrinas, lembrem-se que existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Assim se abre o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e a uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo”. (UR,11).

33- Finalmente, no concernente ao ecumenismo, os Padres Conciliares afirmam:
“Este sagrado Concílio deseja insistentemente que as iniciativas dos filhos da Igreja católica juntamente com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar consciente de que o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca inteiramente a sua esperança na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai para connosco e na virtude do Espírito Santo. ‘E a esperança não será confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5).

34- Quanto ao diálogo inter-religioso, a declaração Nostra Aetate refere, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito/dever do seguimento da própria consciência, bem como nas justas aspirações das pessoas e dos grupos:
“Em primeiro lugar, afirma o sagrado Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo. Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi’ (Mt 28, 9-20). Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar. O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte. Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coação na sociedade civil, em nada afeta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo. Além disso, ao tratar desta liberdade religiosa, o sagrado Concílio tem a intenção de desenvolver a doutrina dos últimos Sumos Pontífices acerca dos direitos invioláveis da pessoa humana e da ordem jurídica da sociedade.” (NA,1).

35- A Igreja Católica não foi mais apresentada como a única entidade que leva à salvação, mas como instrumento universal e sacramento de salvação. As outras confissões cristãs, e mesmo as religiões não cristãs, foram consideradas também expressões (sem dúvida menos perfeitas, mas ainda assim válidas) de genuína religião, de acesso a Deus, de escada para a salvação eterna. Não é mais uma questão (forçada) de conversão dos não católicos à Igreja Católica, mas de diálogo e de pluralismo religioso.
36- Sobre a colegialidade episcopal, o Concílio não contraria a Tradição nem a doutrina católica do Magistério da Igreja. Efetivamente cada bispo tem autoridade sobre a sua diocese e o papa tem jurisdição sobre a Igreja Universal. Todavia, nem o Papa, a quem incumbe a primeira e a última palavra, fica dispensado de ouvir os bispos quer em concílio e em sínodo quer individualmente, sobretudo para a definição de doutrina em matéria de fé e costumes e é útil que os escute nas questões de governação. Os bispos, além do cuidado para com a porção do rebanho que lhes foi confiada, não podem como sucessores dos apóstolos deixar de ter em conta a solicitude pelas Igrejas.
***
Tudo há que fazer para que a Igreja de Cristo se exprima como comunidade, construa comunhão, se afirme como Povo de Deus e espelhe o vulto misericordioso e terno de Deus.

2015.08.31 – Louro de Carvalho

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