sexta-feira, 28 de agosto de 2015

No centenário do martírio de Flaviano Michele Melki

Passa amanhã, 29 de agosto, dia da memória litúrgica da decapitação de São João Batista, precursor de Cristo, o centenário do martírio do bispo sírio-católico D. Flaviano Michele Melki ou D. Flavien Michel Melki, nascido em 1858 e morto no quadro das perseguições do império otomano, em Djézireh, atual Turquia, durante um massacre perpetrado contra arménios e membros de outras comunidades cristãs.
O prelado vai ser proclamado beato, este sábado, numa solene liturgia no convento patriarcal de Nossa Senhora da Libertação, em Harissa, no Líbano, sob a presidência do patriarca sírio-católico Inácio Youssef III, com a presença do cardeal Angelo Amato, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, da Santa Sé, e de vários patriarcas e líderes das Igrejas cristãs do Oriente, provenientes do Líbano, da Síria e do Iraque.
A notícia da beatificação foi conhecida no passado dia 8 de agosto, quando o Papa Francisco autorizou o dicastério a que preside Angelo Amato a promulgar o decreto relacionado com o martírio do Servo de Deus.
O novel beato, filho de uma família sírio-jacobita e convertido ao catolicismo antes da sua ordenação sacerdotal, pertencia à Fraternidade de Santo Efrém e era bispo de Djézireh dos Sírios. Nascido em 1858 em Kalaat Mara (atual Turquia), foi assassinado por ódio à fé em 29 de agosto de 1915, juntamente com o bispo caldeu da mesma cidade. Ambos foram presos e mortos, segundo testemunhos oculares referidos por fontes muçulmanas, após se terem recusado a abjurar a própria fé e converter-se ao Islão.
Sobre a figura do insigne Beato, a Rádio Vaticano (http://www.news.va/pt/news/) ouviu o postulador da causa, Padre Rami Al Kabalan, que referiu:
“Ele desempenhou um papel fundamental ao encorajar as pessoas a defender a própria fé nas dificuldades da época, durante as perseguições do Império Otomano. Vivia em extrema pobreza, vendeu até mesmo os seus paramentos litúrgicos para ajudar os pobres a combater a miséria; visitava todas as paróquias, desempenhava o seu apostolado com zelo.”

Sobre o significado do seu martírio nos dias de hoje, o postulador disse, na linha de Tertuliano e situado realisticamente no contexto atual:
 “Após 100 anos, propriamente no seu centenário, nós, os cristãos do Oriente, sofremos quase as mesmas perseguições, embora de modo diferente... Portanto, a figura deste mártir dá-nos a coragem de defender a nossa fé e de viver a nossa fé. Apesar das circunstâncias difíceis de todos os cristãos do Oriente, do Iraque, da Síria, não devemos ter medo do que está a acontecer. Por isso, pessoalmente, creio que a beatificação tenha verdadeiramente uma importância eclesial muito forte, justamente no contexto de hoje. A figura do mártir não morre, permanece viva na Igreja, na memória dos fiéis: de  modo diferente, todos somos chamados a viver o martírio.”

No atinente à situação sofredora da Igreja sírio-católica, o mesmo sacerdote declarou:
“É a menor Igreja unida ao Sucessor de Pedro. Somos atacados no Iraque, em Mosul, cuja comunidade cristã já não mais existe: em Aleppo, e agora a situação de Al Qaryatain, a Diocese de Homs... Realmente, somos a Igreja mais ferida! Estamos a sofrer perseguições de todos os lados... Verdadeiramente, esperamos que o Senhor ilumine todos os poderosos deste mundo, aqueles que têm o poder em mãos, para que realizem a paz!”.

Por sua vez, o Papa espera que a beatificação deste bispo sírio-católico, martirizado durante o chamado ‘genocídio assírio’, seja um sinal de esperança para os cristãos no Médio Oriente. O Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos disse à Rádio Vaticano que “esta beatificação é uma mensagem do Papa Francisco a todos os cristãos, sobretudo aos que são perseguidos no Médio Oriente”.
O mesmo responsável daquele dicastério da Cúria Romana releva o martírio que hoje sofrem “muitos cristãos do Médio Oriente, mas também noutros lugares do mundo:
“Como há cem anos, as trevas caíram sobre muitas terras de antiga civilização cristã. Os fiéis são discriminados, perseguidos, escorraçados, mortos.”.

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O que efetivamente se passou

Durante boa parte da sua existência, o império turco-otomano (1299-1922: 623 anos) ficou associado a uma extensa “manta de retalhos” pela sua imensidão e diversidade étnica. A convivência “pacífica” entre vários povos dominados pelos turcos durou séculos, constituindo um exemplo para o Ocidente. Porém, no início do século XIX, o Império não repousava sobre a glória de outrora e ecoavam gritos de rebelião e autonomia dentro da sua vastidão: Grécia, Egito, Líbano, Síria, Palestina, Arménia, etc. reivindicavam a independência.
O século XX abriu com a Revolução dos Jovens Turcos (1908) e a tensão no velho império prognosticava guerras sangrentas. Cientes da decadência e da possível fragmentação territorial, os turcos ultranacionalistas – os Jovens Turcos – puseram em prática diversas ações que visavam a restauração da velha glória otomana.
Com o início da I Guerra Mundial, em 1914, os arménios (cristãos) foram acusados de colaboracionismo para com os russos. Ora, turcos e russos eram inimigos implacáveis e vinham a enfrentar-se, havia quase um século, em disputas que mais se assemelhavam a “torneios desportivos”. Neste contexto, muitos arménios, que se recusaram a participar na guerra, foram perseguidos sob o labéu de traição para com o império.

O mundo voltava os olhos quase exclusivamente para a I Guerra Mundial e Adolf Hitler, poucos anos depois, terá interrogado: “Afinal, quem é que ainda ouve falar do extermínio dos arménios?!”. Ainda hoje o governo turco nega o facto e proíbe quaisquer manifestações a seu respeito.

O império turco-otomano, durante a comemoração da Páscoa de 1915, abriu as fervorosas portas do Século da Violência ao dar início ao pouco conhecido genocídio arménio em que foram mortas mais de 1,5 milhão de pessoas (numa população de apenas 2 milhões). Tirando partido da distração do conflito bélico mundial, os otomanos, por ocasião da Páscoa, iniciaram as perseguições e agressões que desencadeariam o “genocídio arménio”, com o enforcamento de 600 líderes arménios na praça pública, sob a acusação de alta traição. A perseguição perdurou até 1923, chegando-se a entendê-la como prolongamento da Grande Guerra, graças ao grande número de mortos durante esse período. O genocídio acabaria por assassinar 3 em cada 4 arménios.

Constantinopla (então capital turca, que em 1923 passou a designar-se por Istambul) ordenou que milhares de homens arménios se dirigissem para a frente de batalha para defesa da duvidosa pátria – pretexto para deixar as aldeias desprotegidas. Entretanto, os arménios, “enquanto cavavam trincheiras, eram executados pelos próprios soldados otomanos”. E muitos arménios, que não foram para a frente de combate, foram queimados vivos nas aldeias. “As jovens eram vendidas como escravas e as crianças encaixotadas vivas e atiradas no Mar Negro”. (cf Vasconcelos, Yuri. Genocídio arménio. Guia do Estudante. 2005: abril)
O genocídio arménio exprimiu-se das mais diversas formas: expulsão para regiões inóspitas, bombardeios e execuções sumárias. Muitos morreram confinados em cavernas pelo uso de agentes tóxicos e outros foram queimados em igrejas incendiadas. O mesmo terror ocorria nas improvisadas câmaras de gás e nos insaciáveis paredões (formas correntes na 2 Guerras Mundiais).
Segundo o autor citado, “a Primeira Guerra Mundial levou à matança de um incontestável número de arménios pela Turquia – o número mais habitual é de 1,5 milhão – que pode figurar como a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma população”. Destinados à longa e perigosa caminhada até ao deserto Der-El-Zor, na Síria, “no meio do caminho, os arménios sofriam abusos. As mulheres eram violentadas, seus filhos raptados e a maioria morria de fome, sede, doença ou frio. Os poucos que chegavam aos campos de concentração tinham poucas chances de viver”.
O governo turco, atualmente, alega que houve “terrível mortalidade”, mas que a afirmação de genocídio não possui qualquer fundamento. As mortes teriam ocorrido de ambos os lados e seriam decorrentes de uma guerra civil. Porém, há grande gama de provas que consubstanciam o genocídio arménio, como telegramas da cúpula do governo turco-otomano com mensagens claras de extermínio, dissidentes turcos, testemunhas russas.
No ano de 2005, o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de Literatura em 2006, afirmou a um jornal suíço que, na Turquia, “ninguém se atreve a falar” do genocídio arménio e da subsequente matança de 30 mil curdos, tendo, inclusive, respondido em processo judicial por “insultar e desacreditar a identidade turca”. Organismos internacionais, como a ONU, e diversos Estados, como Alemanha, França, Itália, Bélgica, Canadá, Suécia, Líbano, Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela etc., já reconheceram o genocídio. A União Europeia também pressiona a Turquia para que revele dados sigilosos.
Apesar da promessa de campanha presidencial de Barack Obama de reconhecer tal crime contra a humanidade, “os arménios, no entanto, não contam com o apoio oficial dos Estados Unidos, que têm na Turquia o seu mais poderoso aliado no mundo muçulmano. O país, mercê da sua posição geoestratégica, desempenha um relevante papel no xadrez político global e abriga bases da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte).”
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O Papa Francisco aplicou, a 12 de abril do corrente ano, a palavra “genocídio”, citando declaração conjunta de João Paulo II e do patriarca arménio em 2000, ao massacre dos arménios há 100 anos – referência que perturbou as relações diplomáticas da Santa Sé com a Turquia:
“No século passado, a nossa família humana passou por três tragédias sem precedentes. A primeira, que foi largamente considerada como 'o primeiro genocídio do século XX', atingiu o povo arménio”.

E acrescentou:
“As duas outras [tragédias humanas] foram praticadas pelo nazismo e pelo estalinismo. E mais recentemente outros extermínios de massa, como no Camboja, Ruanda, Burundi ou Bósnia”.

As declarações do papa foram feitas na abertura de uma missa em memória dos arménios massacrados entre 1915 e 1917, concelebrada com o patriarca arménio e na presença do presidente da Arménia, Serzh Sargsyan.
Segundo a agência France Presse, mesmo que o papa João Paulo II tenha usado o termo “genocídio” no documento assinado em 2000 com o patriarca arménio, trata-se da primeira vez que um papa o utiliza publicamente (hipocritamente, o mal foi a pronúncia pública) ao falar do massacre dos arménios no início do século passado. (cf DN on line, de 12 de abril de 2015).
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Enfim, como dizia Tertuliano, também hoje sanguis martirum semen christianorum!

2015.08.28 – Louro de Carvalho

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