domingo, 9 de agosto de 2015

O significado da transfiguração de Jesus Cristo

Celebrou-se a 6 de agosto a festa da Transfiguração do Senhor, a cuja efeméride ficou ligado o óbito do Papa Paulo VI, em 1978.
Para o enquadramento da celebração da festa, a edição portuguesa do Missal Romano popular (II) traz uma nota litúrgica, de que se retêm alguns dados de interesse, ora amalgamados com a reflexão que deles promana. Celebrada, no Oriente, desde o século V e, no Ocidente, a partir de 1457, presentifica-nos um importante evento teofânico da vida de Jesus, com necessário reflexo na vida cristã. Situada no contexto do anúncio da Paixão e Morte, configura a manifestação gloriosa da vida divina, que compagina inteiramente a pessoa de Jesus. A luz e o resplendor do elevado monte são, porém, a antecipação da luz e do esplendor que encherão a noite Pascal. Por isso, os Apóstolos, contemplando na intimidade a glória divina na Pessoa humana de Jesus, ficaram supostamente preparados para os dolorosos acontecimentos que iriam pôr em crise a sua fé. Ao verem realisticamente Jesus obediente na Sua condição de servo sofrente, já não poderiam esquecer a sua condição divina. Todavia, tal suposição não se constatou ao tempo dos acontecimentos, mas somente após as aparições do Ressuscitado e, sobretudo, depois da irrupção do Espírito do Pentecostes, que tudo esclareceu cabalmente, que a todos revestiu com a força do Alto e que inaugurou o processo de incorporação dos fiéis em Cristo pelo Batismo.
Enquanto anúncio da Páscoa, a Transfiguração encerra também uma promessa – a da nossa transfiguração em/e por Cristo. Com efeito, Jesus fez transparecer na sua humanidade a glória de que resplandecerá o seu Corpo Místico, a Igreja, na sua vinda final.
A vida cristã constitui, por isso, um processo de paulatina (a não ser em casos de excecional exemplaridade) transformação em Cristo. Iniciado no Batismo, realiza-se na Eucaristia, penhor da futura glória, que opera a nossa transformação, até atingirmos a imagem de Cristo glorioso. É para iluminar este caminho de configuração em Cristo que a liturgia proclama os relatos da transfiguração no II Domingo da Quaresma (Mateus, ano A; Marcos, ano B; e Lucas, ano C).
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Embora relatado nos evangelhos sinóticos e evocado na segunda carta de Pedro (vd 2 Pe 1,16-18), transcreve-se, a seguir, o episódio da Transfiguração segundo o texto de Marcos (Mc 9,1-10), por supostamente se tratar do mais antigo e ser aquele que melhor espelha o rosto humano do Senhor, a partir do qual se perfila a construção do vulto do Messias de Deus. Não obstante, fazem-se as convenientes remissões aos demais relatos dos textos paralelos:
Disse-lhes também: “Em verdade vos digo que alguns dos que estão aqui presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar em todo o seu poder”.
Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado. E transfigurou-se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim. Apareceu-lhes Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele.
Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: “Mestre, bom é estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. Não sabia que dizer, pois estavam assombrados. 
Formou-se, então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra. E da nuvem fez-se ouvir uma voz: “Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o”. De repente, olhando em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. Eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos. (cf Mt 17,1-9; Lc 9,28-36; 2 Pe 1,16-18).

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A transfiguração de Jesus marca o centro do Evangelho de Marcos, com lugar relevante também nos de Mateus e de Lucas, sendo este episódio um dos mais importantes do Novo Testamento e, por conseguinte, ocupando a festa a ele referente um lugar de notável relevância na liturgia dos cristãos orientais. Não constituindo o seu cume, o episódio compagina, no entanto, o resumo de toda a revelação. Com efeito, Moisés e Elias sintetizam, respetivamente, a Lei e os Profetas, ou seja, o Antigo Testamento (sendo suas personagens centrais entre os montes Sinai e Horeb, em que assenta a antiga aliança). Transmitindo o testemunho da revelação de Deus a/e em Jesus Cristo, apresentam Cristo aos verdadeiros e íntimos amigos de Jesus, os três apóstolos Pedro, Tiago e João, que ocupavam um lugar privilegiado entre os Doze (vd Mc 1,29; 3,16; 5,37; 10,35; 13,3). E estes serão os lídimos responsáveis pela pregação do Evangelho em todo o mundo. Os outros iriam ser também obreiros da mesma evangelização. Porém, ficamos com a impressão de que os outros raciocinavam e reagiam muito mais lentamente, pelo que, por mais paciência e pedagogia que o Mestre utilizasse, não poderia fazê-los crescer tão rapidamente como era desejável (é necessário respeitar o ritmo de cada um) e eles não seriam capazes de entrar com Ele na nuvem.  
Tal como Moisés e Elias foram levados por Deus à montanha santa para ali serem constituídos testemunhas da sua glória (Ex 33,18; 1Rs 19,9ss), assim também os apóstolos são levados por Jesus à parte, à montanha, para lhes manifestar a sua glória. Por outro lado, João Batista, enquanto precursor, vem com a missão profética e reconciliadora de Elias (vd Mt 17,4).
Depois da confissão messiânica de Pedro (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21; Jo 6,67-71), O Mestre acabara por fazer o primeiro anúncio da sua paixão, morte e ressurreição (vd Mc 8, 31-33; Mt 16,21-23; Lc 9,21-22). Chegara, entretanto, agora o dia em que o Pai Lhe confirma a proximidade do seu fim (vd Lc 9,31) e o Senhor tinha de lhes fazer uma antecipação da sua ressurreição. Desta antecipação da ressurreição de Cristo em corpo glorioso são testemunhas Moisés e Elias, eles que, em certa medida, escaparam da corrupção da morte (cf Dt 34,6 – ninguém conheceu o túmulo de Moisés; 2Rs 2,11 – enquanto Elias e Eliseu conversavam, um carro de fogo com cavalos de fogo se colocou entre eles e Elias foi arrebatado ao céu num redemoinho).
Assim, a transfiguração é considerada a cena dramaticamente esclarecedora do tríplice anúncio da Paixão, que ocorrerá em Jerusalém, porque revela a divindade do Filho de Deus (este é o meu Filho muito amado em quem pus todo o meu enlevo) que o discípulo tem de escutar (Escutai-o). A menção dos “seis dias” não releva do ângulo cronológico, referindo-se provavelmente à festa dos tabernáculos (vd Mt 17,4) ou ao jejum de expiação que a precedia (vd Lv 23,33-36; Jo 7,37-39).
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Dos relatos evangélicos extraem-se os seguintes elementos da transfiguração: o monte elevado; a oração; a nuvem de luz/sombra; as vestes brancas e o resplendor do rosto de Cristo; a Palavra do Pai; o tema da conversa; e a felicidade/temor dos discípulos. É oportuno determo-nos um pouco ao pé de cada um dos elementos indicados para, depois, evidenciarmos o compromisso cristão com o evento da transfiguração, que se há de fazer situação e apelo permanente.
O monte elevado. É também mencionado por Mateus por Lucas no episódio da tentação de Jesus (vd Mt 4,8; Lc 4,5) e na entrega da missão final (vd Mt 28,16), mas não é situado em concreto nem lhe é aposto nome próprio, provavelmente pelo facto de Jesus compaginar em Si e por Si a própria montanha da revelação de Deus. É certo que a tradição o identifica com o Tabor (com a altitude de uns 562 metros); no entanto, outros entendem com mais apropriado um dos cerros do monte Hermon (com a altitude de cerca de 2760 metros), perto de Cesareia de Filipe, onde Mateus e Marcos situam a confissão de fé messiânica de Pedro (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30). Porém, não interessa tanto o monte em si como a sua significação teológica decorrente da economia da Salvação. O monte emerge da evocação da teofania sinaítica (Ex 19,3-25) e da aproximação e mesmo paralelismo que se faz entre o Deus do Sinai e o Jesus Cristo da transfiguração, inferindo-se que Jesus é afinal verdadeiro Deus, consubstancial ao do Antigo Testamento.
A nuvem. É sinal de teofania no Sinai (Ex 19,16-18; Lv 9,15; 1Rs 8,10), na Tenda da Reunião (Ex 40,34-35; Lv 1,1-54) e no Templo (1Rs 8,10-12). Não obstante, o envolvimento dos discípulos pela nuvem torna-se-lhes ocasião de medo, desfeito pela palavra que Jesus lhes dirigiu (cf Mt 17,6-7; Mc 9,6; Lc 9,34). Como dantes, também aqui a nuvem serve ao mesmo tempo para indicar e ocultar a presença misteriosa de Deus.
As vestes brancas. A evidenciação da brancura das vestes e o resplendor do rosto como o Sol (este referido em Mt 17,2) – cor conotada com a manifestação da glória celeste (vd Mt 28,3; Ap 3,4-5; 4,4) pretende revelar a divindade de Jesus, o qual também assume e aperfeiçoa (dá pleno cumprimento) à missão legislativa mosaica e à missão profética de Elias.
É de notar que Lucas não utiliza a palavra grega “μετεμορφώθη (metamorfoseou-se) como Mateus e Marcos, já que ele conhecia bem o ambiente pagão e não podia dar azo a que os seus destinatários entendessem no texto algo de metamórfico ou metempsicótico, a insinuar qualquer eventual elemento de transmigração das almas ou de reencarnação. Assim, utiliza o circunlóquio “εγένετο tò eϊδος τοϋ προσόπου έτερον” (o rosto da sua pessoa tornou-se outro, v 29) e fala da δώξα (glória) que eles viram em Jesus (v 32), idêntica à que rodeava Moisés e Elias (v 31).
A oração. O registo da postura orante do Mestre é recorrente em Lucas, que assim destaca a importância da oração na revelação do mistério de Cristo, marcando o contexto da relação do Filho com o Pai e a sua função de iluminar e enformar a caminhada terrestre de Jesus. Assim, sucede aquando do batismo (vd 3,21) a assinalar a entronização messiânica de Jesus pelo Pai e a solidariedade do Messias com o seu povo (todo o povo tinha sido batizado); o mesmo sucede aquando da confissão de fé de Pedro (vd 8,18), a assinalar o reconhecimento do messianismo de Jesus; o mesmo sucede antes de os discípulos Lhe pedirem que os ensinasse a rezar (vd 11,1), a plasmar a vida do discípulo em configuração plena com a do Mestre e Messias numa mesma solidariedade relacional com o Pai; e o mesmo sucede antes da Paixão (vd 22,39ss) e no alto da cruz (vd 23,34.46), no momento culminante do Sofrimento redentor e da sua glorificação pelo Pai coincidente com a sanha malfazeja e maledicente dos seus detratores. É que a oração há de ser para o discípulo o segredo da sua transformação em Cristo e o móbil da eficácia do seu apostolado.
A Palavra do Pai. A quando do batismo, a voz do Céu designou Jesus (o Servo de Javé) como Filho e dirigia-se a Ele (vd Mt 3,17; Mc 1,10; Lc 3,22); agora, dirige-se aos discípulos: Escutai-O (Mt 17,5; Mc 9,7; Lc 9,35). Por sua vez, a ordem de Cristo – que eles cumpriram – de que “a ninguém contassem o que tinham visto” (vd Mt 17,9; Mc 9,9), pretende que não se entenda a missão de Cristo como a de um qualquer Messias terreno ou político. Os apóstolos acompanhavam Jesus há mais de um ano e viam como se aprofundava cada vez mais o fosso entre o seu Mestre e as autoridades religiosas do Povo de Deus. Era natural que se lhes levantasse a dúvida de que lado estariam as certezas da salvação de Deus. A palavra do Pai, tal como acontecera ao precursor, esclarece os discípulos e garante que aceitar Cristo é aceitar o Pai. 
O tema da conversação. Mateus e Marcos limitam-se a registar o facto da conversação de Moisés e Elias com Jesus, sem revelar o conteúdo, ao passo que Lucas explicita o teor da conversa – a “sua morte, que ia acontecer em Jerusalém” (v 31). Lucas utiliza a palavra “έξοδος” (partida), a significar que Jesus é o novo Moisés a operar a nova libertação do Povo de Deus deste mundo de escravidão para a verdadeira Terra da Promissão.
O momento de felicidade dos discípulos. Foi tão singular que Pedro colocou a hipótese da implantação ali de três tendas – uma para o Senhor, outra para Moisés e outra para Elias (referida nos três sinóticos), esquecido de si e dos seus condiscípulos. Como se disse já, esse momento foi interrompido pelo medo que deles se apoderou ao entrarem na nuvem (luminosa, segundo Mateus, e de sombra, segundo Marcos). Todavia, a serenidade foi recuperada com a palavra de Jesus: Não tenhais medo (Mt 17,7). Ele é efetivamente a verdadeira tenda onde o discípulo se pode refugiar e preparar para a ação apostólica. Com Jesus o discípulo desce do monte da transfiguração para a estrada do sacrifício e da cruz, que se tornará via de glória.
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Quando Jesus fazia milagres com os doentes e, sobretudo, quando fazia milagres que se relacionavam com a natureza, demonstrava que a ordem atual do mundo não é a definitiva. Agora, rasgava-se o véu aos apóstolos: era preciso que estes percebessem que Jesus era efetivamente o Filho do Homem (designação que Ele aplicava a Si próprio) e que se estava a aproximar-se o momento da sua ressurreição dos mortos (fundamento da fé e garantia da nossa ressurreição – vd 1Cor 15,3ss). Faltava pouco tempo para que os seus o colocassem no patíbulo da cruz e o Pai Lhe comunicasse em pleno a sua glória.
A nuvem luminosa e de sombra, a luz e o brilho das vestes são sinais exteriores que manifestam algo do mistério de Jesus. No dia em que há de ressuscitar dos mortos todo o seu ser humano será renovado, ampliado e repleto de energias divinas a ponto de, por sua vez, nos poder ressuscitar a todos. Não parece que o Pai O tenha mimoseado até ao momento com demasiados favores ou regalias. Apesar de tudo, Jesus serve sem esperar grandes recompensas celestes, sabendo que o Pai não o abandona, antes O escuta (cf Jo 11,41-42). Com a transfiguração recebe a garantia de qual o escopo total e o termo terreno da sua missão.
A transfiguração, que Daniel antecipa, contemplando a glória do Filho do Homem (o Messias revestido de poder triunfante a unar a humanidade numa só família – vd Dn 7,9-10.13-14) constitui, para os apóstolos, o testemunho decisivo que os ajudará a crer e a fazer na Ressurreição. A segunda carta de Pedro (vd 2 Pe 1,16-18) refere a transfiguração como constitutiva da capacidade do testemunho apostólico da Ressurreição de Cristo. A fé cristã não se apoia em mitos ou fábulas, mas na pessoa de Cristo. Por isso, aqueles que provisoriamente se mantiveram calados até que o Filho do Homem ressuscitasse dos mortos (Mc 9,9), passaram a ser suas testemunhas até aos confins da Terra (Mt 28,19-20; Mc 16, 15-16.20; Lc 24,48) e não podem calar aquilo que viram e ouviram (cf At 4,19-20.31; 5,32.42). Por outro lado, quem pretender acompanhar Jesus na sua ação messiânica e partilhar da sua vitória tem de trilhar caminho semelhante: renunciar às glórias do poder e da riqueza e sobretudo renunciar a si mesmo e segui-lo.
Cf: Bíblia Pastoral. São Paulo: 1993; Cardoso, A. A vida faz-se oração – a oração nos escritos de S. Lucas. Grafica de Coimbra: 199; La Biblia – latinoamérica. San Pablo: 1995; Nova Bíblia dos Capuchinhos. Difusora Bíblica: 1998; Merk, Augustinus. Novum Testamentum – graece et latine. Romae, 1964; Missal Popular II e I. Gráfica de Coimbra: 1983 e 1994, respetivamente; Neves, J. Jesus Cristo – história e mistério. Ed. Franciscana: 2000; Rey, B. A nova criação. Ed Paulinas: 1974.

2015.08.09 – Louro de Carvalho

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