Celebrou-se a 6 de agosto a festa da Transfiguração
do Senhor, a cuja efeméride ficou ligado o óbito do Papa Paulo VI, em 1978.
Para o enquadramento da celebração da festa, a
edição portuguesa do Missal Romano popular (II)
traz uma nota litúrgica, de que se retêm alguns dados de interesse, ora
amalgamados com a reflexão que deles promana. Celebrada, no Oriente, desde o século
V e, no Ocidente, a partir de 1457, presentifica-nos um importante evento
teofânico da vida de Jesus, com necessário reflexo na vida cristã.
Situada
no contexto do anúncio da Paixão e Morte, configura a manifestação gloriosa da
vida divina, que compagina inteiramente a pessoa de Jesus. A luz e o resplendor
do elevado monte são, porém, a antecipação da luz e do esplendor que encherão a
noite Pascal. Por isso, os Apóstolos, contemplando na intimidade a glória divina
na Pessoa humana de Jesus, ficaram supostamente preparados para os dolorosos
acontecimentos que iriam pôr em crise a sua fé. Ao verem realisticamente Jesus obediente
na Sua condição de servo sofrente, já não poderiam esquecer a sua condição
divina. Todavia, tal suposição não se constatou ao tempo dos acontecimentos,
mas somente após as aparições do Ressuscitado e, sobretudo, depois da irrupção
do Espírito do Pentecostes, que tudo esclareceu cabalmente, que a todos
revestiu com a força do Alto e que inaugurou o processo de incorporação dos
fiéis em Cristo pelo Batismo.
Enquanto anúncio da Páscoa, a Transfiguração encerra também uma promessa
– a da nossa transfiguração em/e por Cristo. Com efeito, Jesus fez transparecer
na sua humanidade a glória de que resplandecerá o seu Corpo Místico, a Igreja,
na sua vinda final.
A vida cristã constitui, por isso, um processo de paulatina (a não ser em casos
de excecional exemplaridade) transformação em Cristo. Iniciado no Batismo, realiza-se
na Eucaristia, penhor da futura glória,
que opera a nossa transformação, até atingirmos a imagem de Cristo glorioso. É para
iluminar este caminho de configuração em Cristo que a liturgia proclama os relatos
da transfiguração no II Domingo da Quaresma (Mateus, ano A; Marcos, ano B; e Lucas,
ano C).
***
Embora relatado nos evangelhos sinóticos e evocado
na segunda carta de Pedro (vd 2 Pe 1,16-18),
transcreve-se, a seguir, o episódio da Transfiguração segundo o texto de Marcos
(Mc 9,1-10), por
supostamente se tratar do mais antigo e ser aquele que melhor espelha o rosto
humano do Senhor, a partir do qual se perfila a construção do vulto do Messias
de Deus. Não obstante, fazem-se as convenientes remissões aos demais relatos
dos textos paralelos:
Disse-lhes também: “Em verdade vos digo que alguns dos que estão aqui
presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar em
todo o seu poder”.
Seis dias
depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um
monte elevado. E transfigurou-se diante deles. As suas vestes tornaram-se
resplandecentes de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia
branquear assim. Apareceu-lhes
Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele.
Tomando a
palavra, Pedro disse a Jesus: “Mestre, bom é estarmos aqui; façamos três
tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. Não sabia que dizer,
pois estavam assombrados.
Formou-se,
então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra. E da nuvem fez-se ouvir uma
voz: “Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o”. De repente, olhando
em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. Ao descerem do monte, ordenou-lhes que
a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter
ressuscitado dos mortos. Eles
guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar
de entre os mortos. (cf Mt
17,1-9; Lc 9,28-36; 2 Pe 1,16-18).
***
A
transfiguração de Jesus marca o centro do Evangelho de Marcos, com lugar
relevante também nos de Mateus e de Lucas, sendo este episódio um dos mais
importantes do Novo Testamento e, por conseguinte, ocupando a festa a ele
referente um lugar de notável relevância na liturgia dos cristãos orientais.
Não constituindo o seu cume, o episódio compagina, no entanto, o resumo de toda
a revelação. Com efeito, Moisés e Elias sintetizam, respetivamente, a Lei e os
Profetas, ou seja, o Antigo Testamento (sendo suas personagens centrais entre os montes
Sinai e Horeb, em que assenta a antiga aliança). Transmitindo o testemunho da revelação
de Deus a/e em Jesus Cristo, apresentam Cristo aos verdadeiros e íntimos amigos
de Jesus, os três apóstolos Pedro, Tiago e João, que ocupavam um lugar
privilegiado entre os Doze (vd Mc 1,29; 3,16; 5,37;
10,35; 13,3).
E estes serão os lídimos responsáveis pela pregação do Evangelho em todo o
mundo. Os outros iriam ser também obreiros da mesma evangelização. Porém, ficamos
com a impressão de que os outros raciocinavam e reagiam muito mais lentamente,
pelo que, por mais paciência e pedagogia que o Mestre utilizasse, não poderia
fazê-los crescer tão rapidamente como era desejável (é necessário respeitar o
ritmo de cada um) e eles não seriam capazes de entrar com Ele na nuvem.
Tal
como Moisés e Elias foram levados por Deus à montanha santa para ali serem
constituídos testemunhas da sua glória (Ex 33,18; 1Rs 19,9ss), assim também os
apóstolos são levados por Jesus à parte, à montanha, para lhes manifestar a sua
glória. Por outro lado, João Batista, enquanto precursor, vem com a missão
profética e reconciliadora de Elias (vd Mt 17,4).
Depois
da confissão messiânica de Pedro (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21; Jo 6,67-71), O Mestre acabara por
fazer o primeiro anúncio da sua paixão, morte e ressurreição (vd Mc 8, 31-33; Mt 16,21-23; Lc 9,21-22). Chegara, entretanto, agora
o dia em que o Pai Lhe confirma a proximidade do seu fim (vd Lc 9,31) e o Senhor tinha de
lhes fazer uma antecipação da sua ressurreição. Desta antecipação da
ressurreição de Cristo em corpo glorioso são testemunhas Moisés e Elias, eles
que, em certa medida, escaparam da corrupção da morte (cf Dt 34,6 – ninguém conheceu
o túmulo de Moisés; 2Rs 2,11 – enquanto Elias e Eliseu conversavam, um carro de
fogo com cavalos de fogo se colocou entre eles e Elias foi arrebatado ao céu
num redemoinho).
Assim,
a transfiguração é considerada a cena dramaticamente esclarecedora do tríplice anúncio
da Paixão, que ocorrerá em Jerusalém, porque revela a divindade do Filho de
Deus (este é o meu Filho muito amado em quem pus todo o
meu enlevo)
que o discípulo tem de escutar (Escutai-o). A menção dos “seis dias”
não releva do ângulo cronológico, referindo-se provavelmente à festa dos
tabernáculos (vd
Mt 17,4) ou
ao jejum de expiação que a precedia (vd Lv 23,33-36; Jo 7,37-39).
***
Dos relatos evangélicos extraem-se os seguintes elementos da transfiguração: o monte
elevado; a oração; a nuvem de
luz/sombra; as vestes brancas e o resplendor do rosto de Cristo; a Palavra do
Pai; o tema da conversa; e a felicidade/temor dos discípulos. É oportuno
determo-nos um pouco ao pé de cada um dos elementos indicados para, depois,
evidenciarmos o compromisso cristão com o evento da transfiguração, que se há
de fazer situação e apelo permanente.
O monte elevado. É também mencionado por
Mateus por Lucas no episódio da tentação de Jesus (vd Mt 4,8; Lc 4,5) e na entrega da missão
final (vd Mt
28,16), mas
não é situado em concreto nem lhe é aposto nome próprio, provavelmente pelo
facto de Jesus compaginar em Si e por Si a própria montanha da revelação de
Deus. É certo que a tradição o identifica com o Tabor (com a altitude de uns 562
metros); no
entanto, outros entendem com mais apropriado um dos cerros do monte Hermon (com a altitude de cerca
de 2760 metros),
perto de Cesareia de Filipe, onde Mateus e Marcos situam a confissão de fé
messiânica de Pedro (Mt 16,13-20; Mc 8,27-30). Porém, não interessa tanto o monte em si como
a sua significação teológica decorrente da economia da Salvação. O monte emerge
da evocação da teofania sinaítica (Ex 19,3-25) e da aproximação e mesmo paralelismo que se faz
entre o Deus do Sinai e o Jesus Cristo da transfiguração, inferindo-se que
Jesus é afinal verdadeiro Deus, consubstancial ao do Antigo Testamento.
A nuvem. É sinal de teofania no Sinai (Ex 19,16-18; Lv 9,15; 1Rs
8,10), na
Tenda da Reunião (Ex 40,34-35; Lv 1,1-54) e no Templo (1Rs 8,10-12). Não obstante, o envolvimento dos
discípulos pela nuvem torna-se-lhes ocasião de medo, desfeito pela palavra que
Jesus lhes dirigiu (cf Mt 17,6-7; Mc 9,6; Lc 9,34). Como dantes, também aqui a nuvem serve ao
mesmo tempo para indicar e ocultar a presença misteriosa de Deus.
As vestes brancas. A evidenciação da
brancura das vestes e o resplendor do rosto como o Sol (este referido em Mt 17,2) – cor conotada com a
manifestação da glória celeste (vd Mt 28,3; Ap 3,4-5; 4,4) pretende revelar a divindade de Jesus, o qual
também assume e aperfeiçoa (dá pleno cumprimento) à missão legislativa mosaica e à missão
profética de Elias.
É
de notar que Lucas não utiliza a palavra grega “μετεμορφώθη (metamorfoseou-se) como Mateus e Marcos, já que ele conhecia bem o
ambiente pagão e não podia dar azo a que os seus destinatários entendessem no
texto algo de metamórfico ou metempsicótico, a insinuar qualquer eventual elemento
de transmigração das almas ou de reencarnação. Assim, utiliza o circunlóquio
“εγένετο tò eϊδος τοϋ προσόπου έτερον” (o rosto da sua pessoa tornou-se outro, v 29) e fala da δώξα (glória) que eles viram em Jesus
(v 32), idêntica à que rodeava
Moisés e Elias (v 31).
A oração. O registo da postura orante do Mestre é
recorrente em Lucas, que assim destaca a importância da oração na revelação do
mistério de Cristo, marcando o contexto da relação do Filho com o Pai e a sua
função de iluminar e enformar a caminhada terrestre de Jesus. Assim, sucede
aquando do batismo (vd 3,21) a assinalar a entronização messiânica de Jesus pelo Pai e a
solidariedade do Messias com o seu povo (“todo o
povo tinha sido batizado”); o mesmo sucede aquando da confissão de fé de Pedro (vd 8,18), a assinalar o
reconhecimento do messianismo de Jesus; o mesmo sucede antes de os discípulos
Lhe pedirem que os ensinasse a rezar (vd 11,1), a plasmar a vida do discípulo em configuração plena
com a do Mestre e Messias numa mesma solidariedade relacional com o Pai; e o
mesmo sucede antes da Paixão (vd 22,39ss) e no alto da cruz (vd 23,34.46), no momento culminante do Sofrimento redentor e
da sua glorificação pelo Pai coincidente com a sanha malfazeja e maledicente
dos seus detratores. É que a oração há de ser para o discípulo o segredo da sua
transformação em Cristo e o móbil da eficácia do seu apostolado.
A Palavra do Pai. A quando do batismo, a voz
do Céu designou Jesus (o Servo de Javé) como Filho e dirigia-se a Ele (vd Mt 3,17; Mc 1,10; Lc 3,22); agora, dirige-se aos
discípulos: Escutai-O (Mt 17,5; Mc 9,7; Lc 9,35). Por sua vez, a ordem
de Cristo – que eles cumpriram – de que “a ninguém contassem o que tinham visto” (vd Mt 17,9; Mc 9,9), pretende que não se
entenda a missão de Cristo como a de um qualquer Messias terreno ou político.
Os apóstolos acompanhavam Jesus há mais de um ano e viam como se aprofundava
cada vez mais o fosso entre o seu Mestre e as autoridades religiosas do Povo de
Deus. Era natural que se lhes levantasse a dúvida de que lado estariam as
certezas da salvação de Deus. A palavra do Pai, tal como acontecera ao
precursor, esclarece os discípulos e garante que aceitar Cristo é aceitar o Pai.
O tema da conversação. Mateus e Marcos
limitam-se a registar o facto da conversação de Moisés e Elias com Jesus, sem
revelar o conteúdo, ao passo que Lucas explicita o teor da conversa – a “sua
morte, que ia acontecer em Jerusalém” (v 31). Lucas utiliza a palavra “έξοδος” (partida), a significar que Jesus
é o novo Moisés a operar a nova libertação do Povo de Deus deste mundo de
escravidão para a verdadeira Terra da Promissão.
O momento de felicidade dos discípulos. Foi tão singular que
Pedro colocou a hipótese da implantação ali de três tendas – uma para o Senhor,
outra para Moisés e outra para Elias (referida nos três sinóticos), esquecido de si e dos
seus condiscípulos. Como se disse já, esse momento foi interrompido pelo medo
que deles se apoderou ao entrarem na nuvem (luminosa, segundo Mateus, e de sombra, segundo
Marcos).
Todavia, a serenidade foi recuperada com a palavra de Jesus: Não tenhais medo (Mt 17,7). Ele é efetivamente a
verdadeira tenda onde o discípulo se pode refugiar e preparar para a ação
apostólica. Com Jesus o discípulo desce do monte da transfiguração para a
estrada do sacrifício e da cruz, que se tornará via de glória.
***
Quando
Jesus fazia milagres com os doentes e, sobretudo, quando fazia milagres que se
relacionavam com a natureza, demonstrava que a ordem atual do mundo não é a definitiva.
Agora, rasgava-se o véu aos apóstolos: era preciso que estes percebessem que
Jesus era efetivamente o Filho do Homem (designação que Ele aplicava a Si próprio) e que se estava a
aproximar-se o momento da sua ressurreição dos mortos (fundamento da fé e
garantia da nossa ressurreição – vd 1Cor 15,3ss). Faltava pouco tempo para que os seus o
colocassem no patíbulo da cruz e o Pai Lhe comunicasse em pleno a sua glória.
A
nuvem luminosa e de sombra, a luz e o brilho das vestes são sinais exteriores
que manifestam algo do mistério de Jesus. No dia em que há de ressuscitar dos
mortos todo o seu ser humano será renovado, ampliado e repleto de energias
divinas a ponto de, por sua vez, nos poder ressuscitar a todos. Não parece que
o Pai O tenha mimoseado até ao momento com demasiados favores ou regalias.
Apesar de tudo, Jesus serve sem esperar grandes recompensas celestes, sabendo
que o Pai não o abandona, antes O escuta (cf Jo 11,41-42). Com a transfiguração recebe a garantia de qual
o escopo total e o termo terreno da sua missão.
A
transfiguração, que Daniel antecipa, contemplando a glória do Filho do Homem (o Messias revestido de
poder triunfante a unar a humanidade numa só família – vd Dn 7,9-10.13-14) constitui, para os
apóstolos, o testemunho decisivo que os ajudará a crer e a fazer na
Ressurreição. A segunda carta de Pedro (vd
2 Pe 1,16-18) refere a transfiguração
como constitutiva da capacidade do testemunho apostólico da Ressurreição de
Cristo. A fé cristã não se apoia em mitos ou fábulas, mas na pessoa de Cristo. Por
isso, aqueles que provisoriamente se mantiveram calados até que o Filho do
Homem ressuscitasse dos mortos (Mc 9,9), passaram a ser suas testemunhas até aos confins da Terra (Mt 28,19-20; Mc 16, 15-16.20;
Lc 24,48) e
não podem calar aquilo que viram e ouviram (cf At 4,19-20.31; 5,32.42). Por outro lado, quem
pretender acompanhar Jesus na sua ação messiânica e partilhar da sua vitória tem
de trilhar caminho semelhante: renunciar às glórias do poder e da riqueza e
sobretudo renunciar a si mesmo e segui-lo.
Cf:
Bíblia Pastoral. São Paulo: 1993; Cardoso,
A. A vida faz-se oração – a oração nos escritos
de S. Lucas. Grafica de Coimbra: 199; La
Biblia – latinoamérica. San Pablo: 1995; Nova Bíblia dos Capuchinhos. Difusora Bíblica: 1998; Merk,
Augustinus. Novum Testamentum – graece et
latine. Romae, 1964; Missal Popular
II e I. Gráfica de Coimbra: 1983 e 1994, respetivamente; Neves, J. Jesus Cristo – história e mistério. Ed.
Franciscana: 2000; Rey, B. A nova criação.
Ed Paulinas: 1974.
2015.08.09 –
Louro de Carvalho
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