segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A vertente espetacular da batalha de Aljubarrota

No passado dia 14 perfizeram-se os 630 anos após a batalha de Aljubarrota, o principal trunfo militar da resolução da causa sucessória de Dom Fernando, ou seja, levou a que se consolidasse o resultado da oposição portuguesa à realeza de D. Juan I de Castela D. Beatriz de Portugal, fazendo de D. João, Mestre de Avis, o primeiro rei da 2.ª dinastia da monarquia portuguesa.
Esta foi uma das raras grandes batalhas campais da Idade Média entre dois exércitos régios e um dos acontecimentos mais decisivos da História de Portugal (HP). Inovou na tática militar, permitindo que homens de armas apeados fossem capazes de vencer uma poderosa cavalaria. No campo diplomático, selou a aliança entre Portugal e a Inglaterra, que perdura até aos dias de hoje. No aspeto político, resolveu a disputa que dividia o Reino de Portugal do Reino de Castela e Leão, reafirmando a identidade e capacidade de Portugal como Reino Independente, abrindo caminho para uma das épocas mais marcantes da lusa história e da dos demais reinos ibéricos, a era dos Descobrimentos ou da Expansão.
Passava das 18 horas quando se deu o assalto castelhano à posição portuguesa. A impetuosa vanguarda de D. Juan I (na sua maior parte constituída por tropas auxiliares francesas) iniciou o ataque a cavalo, sendo repelida nas obras de fortificação previamente preparadas pelas hostes de D. João I, obras que surpreenderam os adversários. Para prosseguir o combate, os franceses foram obrigados a desmontar (os que o conseguiram) na frente do inimigo em posição crítica.
Sabendo do desbarato da linha da frente, D. Juan I fez avançar o resto do exército presente no Chão da Feira, maioritariamente também a cavalo. Ao aproximarem-se da posição portuguesa, apercebem-se de que – ao contrário do que supunham – o combate estava ser travado a pé, dadas as caraterísticas do sistema de entrincheiramento defensivo gizado pelos portugueses. Por isso, os cavaleiros castelhanos desmontaram cedo e percorreram a pé o que lhes faltava (umas centenas de metros) até alcançarem os adversários. Ao mesmo tempo, cortaram as suas compridas lanças, para melhor se movimentarem no corpo a corpo que se avizinhava
No entanto, os homens de armas de D. Juan I foram crivados de flechas e virotões lançados pelos arqueiros ingleses e pela ala dos namorados, respetivamente, o que, juntamente com o progressivo estreitamento da frente de batalha (devido aos abatises, às covas de lobo e aos fossos) os entorpecia, embaraçava e tornava “ficadiços” (como diz Fernão Lopes) e os aglutinava de modo informe na parte central do planalto. Terão sido estes os minutos mais decisivos.
As alas castelhanas permaneciam montadas, visto que destinadas – como era usual – a ensaiar um envolvimento da posição portuguesa, o que, devido à estreiteza do planalto, apenas a ala direita (comandada pelo Mestre de Alcântara) terá conseguido, mas em fase já tardia da refrega.
O pânico apoderou-se do exército castelhano, quando dentro do quadrado português, a bandeira do monarca castelhano foi derrubada. Os castelhanos precipitaram-se numa fuga desorganizada. Seguiu-se uma curta, mas devastadora perseguição portuguesa, interrompida pelo cair da noite. D. Juan I pôs-se em fuga, a cavalo, juntamente com centenas de cavaleiros castelhanos. Percorreu nessa noite perto de meia centena de quilómetros até alcançar Santarém, exausto e desesperado. Até à manhã do dia seguinte, milhares de castelhanos em fuga foram chacinados por populares (incluindo a lendária padeira) nas imediações do campo de batalha e nas aldeias vizinhas. O resto das forças franco-castelhanas saem de Portugal, parte passando por Santarém e depois por Badajoz e parte através da Beira, por onde tinham entrado.
No campo de batalha, as baixas portuguesas foram de cerca de mil mortos, enquanto as de Castela se situaram em cerca 4 mil mortos e 5 mil prisioneiros. Fora do campo da batalha, terão sido mortos nos dias seguintes pela população cerca de 5 mil homens de armas, em fuga, do exército castelhano. Devido ao significado político da Batalha e aos inúmeros nobres e homens de armas que aí morreram, Castela permaneceu em luto durante dois anos.
É isto basicamente o que os livros de HP nos dizem, divergindo no número de combatentes de uma e de outra hoste. Embora unânimes na discrepância entre a magnitude numérica de castelhano-franceses contra a exiguidade numérica do lado português, os números indicados são bastante díspares, sendo que os que apresentam maior aproximação referem entre 17 mil a 20 mil castelhanos e 10 mil portugueses.
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Como é que este feito bélico se erigiu em espetáculo? Foi sobretudo a pena épica de Camões que no relato analéptico da História de Portugal da parte de Vasco da Gama ao rei de Melinde o tornou um horrivelmente belo espetáculo enquanto significativo episódio d’ Os Lusíadas.
A batalha vem descrita no Canto IV (e. 28-44), precedida da narrativa de antecedentes e preparação (e. 12-27) e seguida dumas estrofes de consequências ou resultado final (estrofes 44-47).
Começando por dar conta da sessão deliberativa de D. João I com os conselheiros, em que sobressai o discurso do que havia de ser o Condestável (12-21), “Removem o temor frio, importuno /Que gelados lhe tinha os corações” (e. 21, VV 3-4), o épico vate faz ressaltar logo um vigoroso elemento de espetáculo, “Nos animais cavalgam de Neptuno, /Brandindo e volteando arremessões, “Vão correndo e gritando, a boca aberta: / ‘Viva o famoso Rei que nos liberta!’ (e. 21, vv 5-8).
Depois, as estrofes 22-25 refletem a preparação de armas e armaduras e a movimentação das tropas portuguesas. A estrofe 26 apresenta as assistentes ao desfile, com destaque para damas e esposas, em conformidade com o ideal da cavalaria medieval, “Estavam pelos muros, temerosas /E de hum alegre medo quási frias, /Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas” (vv 1-3) e a chegada das “esquadras belicosas /Defronte das imigas companhias” (vv 5-6). E a estrofe 27, ao mesmo tempo que espelha a resposta das “trombetas mensageiras”, pífaros e tambores, bem como as bandeiras de variegadas cores volteadas pelos alferes, situa-nos no espaço (eiras e vinhedos) e no tempo (agosto, tempo seco):
Era no seco tempo que nas eiras /Ceres ao fruto deixa aos lavradores (tempo das colheitas); /Entra em Astreia o Sol, no mês de agosto (signo da Virgem); /Baco das uvas tira o doce mosto”.
O relato do espetáculo bélico propriamente dito começa na estrofe 28 com o sinal dado pela “trombeta castelhana”, sinal “horrendo, fero ingente e temeroso” que produziu reações diversas:
- Nos elementos da natureza,
“Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana /Atrás tornou as ondas de medroso. /Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana; /Correu ao mar o Tejo duvidoso.” (e. 28, vv 3-6).
- Nas pessoas,
“E as mães, que o som terríbil escuitaram, /Aos peitos os filhinhos apertaram” (e. 28, vv 7-. 8). “Quantos rostos ali se veem sem cor, /Que ao coração acode o sangue amigo! /Que, nos perigos grandes, o temor /É maior muitas vezes que o perigo. /E se o não é, parece-o; que o furor /De ofender ou vencer o duro imigo /Faz não sentir que é perda grande e rara /Dos membros corporais, da vida cara.” (e. 29 – comentário do narrador da História de Portugal).
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A descrição da batalha surge em tom hiperbólico seja na alusão ao número e valor das hostes inimigas, seja nos pormenores dos preparativos, seja na evocação dos arroubos de valentia demonstrados. Desde logo, o som da trombeta castelhana (o som é um dos elementos do espetáculo) é caraterizado gradativamente (horrendo, fero ingente e temeroso) para aterrar a população civil e a própria natureza de que alguns elementos (os mais possantes) se tornam prosopopaicamente humanos: ouvem, têm medo e dúvidas. Depois, a visualização, o elemento mais caraterístico do espetáculo, é servida pela utilização discursiva do presente histórico (começa-se a travar; move-se a primeira ala; a uns leva-os a defensão; derriba, encontra, semeia…), pela alternância de ritmos e pelas sonoridades de base onomatopaica, a sugerir o efeito de sinestesia, como se pode ver, por exemplo, na estrofe 31:
“Já pelo espesso ar os estridentes /Farpões, setas e vários tiros voam; /Debaxo dos pés duros dos ardentes /Cavalos treme a terra, os vales soam. /Espedaçam-se as lanças, e as frequentes /Quedas co’ as duras armas tudo atroam. /Recrecem os imigos sobre a pouca /Gente do fero Nuno, que os apouca”.
Note-se que a sonoridade nos é dada pelo ritmo martelado pelo tropel dos pés duros dos ardentes cavalos (vv 3-4), pela preponderância das consoantes oclusivas (p, t, c, d, g) e pela associação a este ritmo martelado das aliterações (encontro de consoantes iguais ou semelhantes em lugares simétricos do texto: s, t, p, v) e assonâncias (encontro de consoantes iguais ou semelhantes em lugares simétricos do texto: a, i, u… - a exprimir abertura, luz, escuridão; movimento, sofrimento e morte). A sucessão de sibilantes, dentais, oclusivas e nasais sugere a sequência dos tiros e silvos das setas, a quebra das lanças, o derrube e o relevantamento dos cavalos, as vozes de comando, as imprecações e gritos de dor dos homens. Depois, a estrofe termina com um subtil jogo de palavras: “pouca”, quantificador existencial referido a gente de Nuno Álvares a contrastar com o efeito devastador, “apouca” os inimigos, que tinham recrescido.
O espetáculo é animado pela apóstrofe do Conde Nuno (o futuro condestável) ao ver seus irmãos nas hostes de Castela,
“Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, /Catilina, e vós outros dos antigos /Que contra vossas pátrias com profano /Coração vos fizestes inimigos: /E se lá no reino escuro de Sumano /Receberdes gravíssimos castigos, /Dizei-lhe que também dos Portugueses /Alguns tredores houve algüas vezes.” (e. 33),
E pela imagem da bravura do leão que arremete (e. 34) e da comparação da solicitude de D. João com a da “parida leoa, fera e brava, /Que os filhos, que no ninho sós estão, /Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, / O pastor de Massília lhos furtara (e. 36, vv 5-8).
Depois, vêm a fereza das movimentações do Mestre, os apelos do seu discurso em plena batalha e a nua crueza do seu exemplo, a par do relato de ferimentos e mortandades. E um cenário surge em tudo semelhante ao da estância 31, mas a revelar a forçada deserção do rei castelhano:
“Aqui a fera batalha se encruece /Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; /A multidão da gente que perece /Tem as flores da própria cor mudadas. /Já as costas dão e as vidas; já falece /O furor e sobejam as lançadas; /Já de Castela o Rei desbaratado /Se vê e de seu propósito mudado.” (e. 42).

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Fernão Lopes, com o seu visualismo descritivo, não é menos parco que o épico a caraterizar o espetáculo bélico, contrariando informação de outros e emprestando ao episódio mesmo uma notória ingenuidade portuguesa e até uma certa bonomia castelhana (ironia zombeteira):
“El-Rei de Portugal, quando viu a retaguarda rota e o Conde em tamanho aperto, muito preocupado (e todos com ele), abalou rijamente com sua bandeira, dizendo altas vozes: ‘Avante, senhores, avante! Avante! Avante! S. Jorge! S. Jorge! Portugal! Portugal! Que eu sou el-rei!’ (…).
Em Aljubarrota não havia melhoria do campo que os portugueses tivessem escolhido, nem vales que estorvassem seus contrários, como alguns mal escrevendo em seus livros querem contar, que tudo era campina igual, sem nenhum estorvo a ambos as partes. E sendo a batalha cada vez maior e muito ferida de ambas as partes, prouve a Deus que a bandeira de Castela foi derribada. Alguns castelãos começaram de voltar atrás. Os moços portugueses que guardavam as bestas e muitos outros começaram a bradar em altas vozes: ‘Já fogem! Já fogem!’ E os castelãos, por não fazerem deles mentirosos, começaram cada vez de fugir mais. (F. Lopes, Crónica de El-Rei D. João I – I Parte).
Tanto Fernão Lopes como Camões fazem jus ao espírito cavaleiresco da época, referindo que durante três dias a hoste portuguesa se manteve no campo de Aljubarrota, em sinal de glória pela retumbante vitória, gozando os frutos da batalha. E, tal como as mães e outras mulheres rezavam, “prometendo jejuns e romarias” (e. 26, v 4), também D. João, após a batalha, “Com ofertas, despois, e romarias, /As graças deu a Quem lhe deu vitória”. (e. 45, vv 3-4).
Porém, Nuno Álvares decidiu continuar a terçar armas pela causa da independência do Reino, passando-se ao Alentejo onde era fronteiro – postura de que providencialmente resultou a consolidação da campanha político-militar, como se pode ver pelas estrofes seguintes (e. 46 e 47):
Ajuda-o o seu destino de maneira
Que fez igual o efeito ao pensamento,
Porque a terra dos Vândalos, fronteira,
Lhe concede o despojo e o vencimento.
Já de Sevilha a Bética bandeira,
E de vários senhores, num momento
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa,
Obrigados da força Portuguesa.
Destas e outras vitórias longamente
Eram os Castelhanos oprimidos,
Quando a paz, desejada já da gente,
Deram os vencedores aos vencidos,
Despois que quis o Padre omnipotente
Dar os Reis inimigos por maridos
As duas Ilustríssimas Inglesas,
Gentis, fermosas, ínclitas princesas.

Finalmente, há que fazer evocação da lógica providencialista da História designadamente da HP. É este providencialismo (“quis o Padre Omnipotente”) que engrandece o espetáculo, cuja força resulta, em grande parte, das orações e “promessas de jejuns e romarias” e postula, além das graças dadas pelo rei (com ofertas e romarias), outros espetáculos similares e entrega nupcial de damas aos dois beligerantes. Assim, o duque de Lencastre, João Gaunt, dá em casamento a princesa D. Filipa a D. João I, de Portugal, (o que origina a ínclita geração) e a princesa Catarina a D. Henrique, de Castela (herdeiro de D. Juan I).
Como se pode depreender, o espetáculo bélico não se confinava ao espetáculo como mero espetáculo (sons, bandeiras, cavalos, armaduras, setas, lanças, monte, vale, fosso, movimentação, discursos…): tinha necessariamente consequências, como se viu – mais espetáculos, paz casamentos, gerações alianças. Até linguisticamente, falando de forças armadas, ainda se destaca o teatro de operações de guerra e o de simples exercícios militares (treino, manobras, festejos…).
Também disto se faz História e sua narrativa – ciência e arte, aqui talvez mais arte que ciência!

2015.08.17 – Louro de Carvalho

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