A 30 de novembro, passará o 80.º
aniversário da morte de Fernando António Nogueira Pessoa, o poeta português de
feição universalista e cosmopolita. A aposição ao menino dos nomes de Santo
António de Lisboa, por nascimento, ou de Pádua, por óbito (que teve como nome de nascimento e de batismo o de “Fernando” e como nome
de religioso o de António, quando se tornou franciscano) não foi premonitória nem do caráter
aristocraticamente culto dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, na lusa
Atenas, nem do franciscanismo religioso, bebido a partir dos santos mártires de
Marrocos, cujo culto os franciscanos vieram promover em Portugal. No entanto,
teve em si a premonição do vulto que adquiriu uma cultura construída e enditada
no labor insano e brilhou no cultivo e culto da língua portuguesa e da arte
literária, em profundidade e excentricidade como António de Lisboa: o
“olissipopaduano”, no campo religioso; o “afroluso”, no campo literário e
crítico.
Não suficientemente apreciada em vida,
esta personalidade extremamente rica e complexa, com uma bela produção
literária tão genuína como diversificada transmutou-se no poeta mais
universalizado e comentado pós-Camões e numa das figuras mais intrigantes da
lusa língua, não obstante as abundantes explicações fornecidas motu
proprio ou a solicitação de outrem.
Dele escreveu Almada Negreiros:
“Não conheci exemplo igual ao de Fernando Pessoa: o do homem substituído
pelo poeta! Esta sobreposição do poeta ao homem, outro que não Fernando Pessoa
poderia tê-la feito mal. Mas ele tinha posto toda a sua vida na Poesia; ele é
exatamente o poeta dos seus versos” (In Diário de Lisboa, 1935, aquando da notícia da morte de Pessoa).
De si mesmo fala o próprio poeta:
“A minha alma gira em torno da minha obra literária – boa ou má, que seja,
ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim interesse secundário” (In Cartas de Amor).
Tenra orfandade, forçada deambulação
familiar, namoro romântico sem desfecho e usufruto inveterado do álcool fazem,
por muitas décadas, do poeta polifacetado e prosador de discurso exato pretexto
atraente para a panóplia biobibliográfica de invejável envergadura.
Nascido em Lisboa a 13 de junho (dia do nascimento do seu onomástico) do ano da publicação de Os Maias de Eça e de A
Menina Júlia de Strindberg e
falecido com a idade de 47 anos, a 30 de novembro de 1935, a vida de Fernando
Pessoa consiste em não haver vida, se por vida se entender uma série de
fenómenos notórios e sonantes. Não casou. Não teve filhos, emprego certo,
amigos íntimos, tirando Mário de Sá-Carneiro. Não concluiu um curso superior,
não viajou após regresso a Lisboa subsequente à estada de dez anos no
estrangeiro. A sua vida confina-se à vasta sucessão de não eventos, rudemente
entrecortada pelo consternante suicídio de Sá-Carneiro. Ele, que, na idade
adulta, não se afastou 500 metros do Rossio, teve a grandeza patriótica, a
audácia lusa e a autoridade literária para clamar “a minha pátria é a língua
portuguesa” e reconhecer no Padre António Vieira o “imperador da língua
portuguesa”.
Joel Serrão, em Fernando Pessoa – Cidadão do Imaginário (Livros Horizonte, 1981) diz que “o ciclo vital e civil” de Pessoa principiou dois anos antes do Ultimatum inglês e “expirou quando o
Estado Novo definia o perfil com que arrostaria a implacável voragem do tempo” (“vida tão breve, mas cheia como um ovo”, a pulsar fremente e decisivamente
“em Portugal e no vasto Mundo”). Sabe-se que Fernando Pessoa tomou posição pelo Presidente-Rei como
acreditou no figurino (da Constituição de 1933) “forte, autoritário e corporativo” que
Salazar iria emprestar ao regime. Só que tarde se apercebeu de que a missão
essencial do caudilho “seria remeter para as calendas gregas os propósitos de
liberdade, igualdade e fraternidade, inscritos ainda, oficiosamente no lábaro
político da res publica”.
Porém – continua Serrão:
“No meio disto tudo, Fernando Pessoa, que não chegou a velho, como acontece
com aqueles ‘a quem os deuses amam’; no meio de tudo isto, acaso sobretudo
nisto tudo – no próprio coração das coisas, sopesando-as, ele debate-se e eleva
a voz, umas vezes (poucas), em público e quase
ininterruptamente, rabisca, datilografa, pelas noites fora, para a arca
inexaurível. Procurando, procurando-se, mediante a alquimia do verbo, seu
instrumento e seu tormento, julgando-se mais só e desamparado do que realmente
estaria…”.
***
O pai, Joaquim de Seabra Pessoa, médio
funcionário muito culto e dedicado à crítica musical, faleceu em 1893, quando o
poeta perfazia os 5 anos de idade. Decorridos 2 anos, a mãe, Maria Madalena
Pinheiro Nogueira, de boa família açoriana e educação esmerada, casou com João
Miguel Rosa, cônsul em Durban, aonde
chegou passado um ano.
Fernando estuda na High School e é galardoado, em 1904, com o Prémio Rainha Vitória por um ensaio em inglês integrante do exame
de admissão à Universidade do Cabo. Em agosto de 1905, regressa sozinho a
Lisboa para frequentar o Curso Superior de Letras, que abandona ao fim de
poucos meses. Eis-nos, pois, ante um duplo estrangeiro: português na África do
Sul de língua inglesa, dando lugar, anos depois, ao adolescente de fala inglesa
a flutuar na Lisboa portuguesa: tempos diferentes, estrangeiro em territórios
diferentes, mas seus! Apesar das saudades e nostalgia da infância, com a memória
da felicidade que dela remanesce – vida, amizade, língua, mundo, literatura, tudo
isso serão realidades estranhas, enigmas a deslindar. Nada lhe oferecem de
bandeja com a nitidez que as evidências costumam impor. Tudo é motivo de
assombro, como soía referir. Notas íntimas sublinham esta capacidade de
assombro aliada à incapacidade de se deixar perpassar por evidências que o não
são: o facto assombroso, o único
facto real, o de as coisas existirem, o de alguma coisa existir, o de o ser
ser, é a alma do fôlego de todas as artes [...] todo o génio é o renascimento
do assombro.
O poeta do fingimento é o artista do
assombro em cuja rentabilização está a raiz da prodigiosa e variegada produção
em verso e prosa prosseguida nos interstícios da errática profissão de
correspondente comercial. A
variedade, dirá ele, é a
única desculpa para a abundância. Ninguém deveria deixar escritos vinte livros
diferentes a não ser que conseguisse escrever como vinte homens diferentes.
Eis o segredo da ortonímia e da heteronímia pessoanas, a raiz inventora dos
heterónimos, invenção de que não sendo o pioneiro, levou a tal paroxismo de
intensidade e explicitação que a fez como que nova e sobretudo sua.
O dia auroral de 8 de março de 1914 – cujo
centenário ocorreu o ano passado – ganha o estatuto de data-viragem, nos anais
pessoanos, da escrita tumultuosa e imparável dos poemas que intitulou de O
Guardador de Rebanhos, cujo autor, pagão de espécie complicadamente
simples, se revela o Mestre, que o será também de Ricardo Reis e de Álvaro de
Campos. Este, por seu turno, proclamará que o mestre Alberto Caeiro não era um
pagão, era o paganismo. E o ortónimo asseguraria que Teixeira de Pascoais
virado do avesso, sem sair do seu lugar, daria Caeiro, que nos deixa perplexos
e arrancados à nossa atitude crítica.
Alberto Caeiro é estranha e pavorosamente
novo, é o poeta que olha o mundo com o espanto de se não espantar, satisfeito
com o mistério do não mistério: o
único mistério é haver quem pense no mistério. Esta é a terapêutica
simples e operacionalmente consoladora que desvairou o histérico e depressivo
engenheiro Álvaro de Campos, levando-o a mais uma exaltação do mestre: Ninguém é inconsolável ao pé da memória de
Caeiro ou dos seus versos; e a própria ideia do nada, a mais pavorosa de todas
se se pensa com a sensibilidade, tem, na obra e na recordação do meu mestre
querido, qualquer coisa de luminoso e de alto como o sol sobre as neves dos
píncaros inatingíveis. Inventado Caeiro, Pessoa arranja-lhe discípulos.
Assim nasceram Reis e Campos. Reis é pagão como Caeiro, mas tem rigor e
densidade: A sua inspiração é
estreita e densa, observará Campos, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real. A
respeito dele, observou Jonathan Griffin,
que Reis é o mais que Pessoa
conseguiu aproximar-se de Caeiro.
Reis trabalha o paganismo como doutrina
ética, epicurista e estoica, simultaneamente consciente e distante do universo
cristão, de forma a permitir que as pessoas vivam sofrendo o menos possível.
Campos é o engenheiro de Glasgow,
futurista, amante, panegirista das máquinas (dentro das quais vê o
passado clássico e o futuro do progresso), dos portos, da modernidade e do aerodinamismo, oscilando entre a
depressão e a histeria, desprezando os homens porque não ostentam a
simplicidade eficiente das máquinas, de que o poeta canta o encómio, celebra a
apoteose e pretende a similitude pessoal: Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! /Ser completo como
uma máquina! /Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Pessoa
traça o perfil magistralmente recortado de Campos como Walt Whitman com um poeta grego dentro de si, com a pujança
intelectual, emocional e física que caraterizava Whitman, mas com o poder de construção e ordenamento de poema que
poeta algum depois de Milton jamais
alcançou.
Contudo, Pessoa não nasceu do nada. Várias
vezes, o autor de Mensagem diz, com ênfase polémica, nunca se
avançar senão com um pé atrás e outro à frente. Se Almada Negreiros jura, com
laivos exibicionistas, fazer tábua rasa do passado incómodo, Pessoa regista
prováveis influências de Baudelaire, Cesário, Edgar Poe, Antero, Gomes Leal,
Junqueiro, Garrett, que o terá inspirado para escrever poesia portuguesa,
Milton, Keats, Shelley, Byron, Tennyson, Wordsworth, Carlyle, Camilo Pessanha,
António Nobre, José Duro e Correia de Oliveira.
É de notar como se lança, na aventura
modernista, dum lado, o grupo heterogéneo de Almada, Sá-Carneiro, Santa-Rita
Pintor, António Ferro; do outro, Fernando Pessoa, brincando a contragosto,
quase nauseado e sempre atento ao mistério de existir. Todavia, em 1915 (se tivesse persistido, seria hoje uma revista centenária), com os amigos literários funda a
revista Orpheu, para agitar a poeira duma cultura dormente.
Aparições isoladas e espasmódicas, golpes
de mão a aterrorizar os quatro gatos da literatura oficial fazem avolumar o
caudal do rio subterrâneo da criação solitária e obstinada. Qual abúlico
apaixonado e imaginativo, para não rebentar ou não enlouquecer, quase às
escondidas, à margem dos grandes projetos, escreve diariamente poemas, artigos,
reflexões. Tão preguiçoso e abúlico como obstinado administrador meticuloso da
própria glória presente e futura lhe chamou David Mourão-Ferreira ao verificar
o mapa das estratégias de publicação seguidas pelo poeta de Mensagem.
Na Athena, na Contemporânea e
na Presença, que o acolhe e lhe dá tratamento de Mestre, Pessoa vai
colocando a nata da sua produção, assim lhe assegurando letra de forma. Em
vida, tirante os poemas ingleses, só dá foros de livro à Mensagem,
com que concorre ao prémio do Secretariado da Propaganda Nacional, logrando o
2.º lugar. Conta, nos dois anos que julga lhe restarem de vida, deixar
organizados os manuscritos para publicação. Porém, o relógio do tempo trocou as
voltas ao seu horóscopo e os manuscritos ficam no baú intactos, mas não prontos
para edição imediata, quando o autor baixa ao Hospital de S. Luís dos Franceses
a 29 de novembro de 1935, onde falece no dia seguinte.
A melhor homenagem à grandeza do poeta
persiste na sua obra, cuja publicação sistemática foi iniciada em 1942 pela
Ática, sob a direção de João Gaspar Simões, e vem hoje complementada pela
notável edição crítica regida pela batuta de Ivo Castro.
***
A título
de exemplo, se transcreve o poemeto “Cansa sentir quando se pensa”.
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
|
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negro sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim!)
In Cancioneiro
|
Começando logo pelo 1.º
verso, é de referir que ele comporta o recorrente tema pessoano da dor de
pensar provocada pela intelectualização do sentir. Com efeito, pensar traz
cansaço ao sentir, impede a sensação e a emoção no seu estado puro e genuíno;
pode chegar mesmo a eliminar o sentir. No poemeto, o emissor lírico dá asas a
um estado de espírito marcado pelos sentimentos de solidão, tristeza e
desalento. No entanto, o estado de alma do sujeito poético mostra outras
facetas. Efetivamente, são temas que se entrecruzam: a dor de pensar (“Cansa sentir quando se
pensa”); o
enigma do ser (não
sei quem hei de ser”); a ilusão do real (“Pesa-me o informe real”); e a incapacidade de
viver a vida (“não
poder viver assim”).
O evocado estado de
espírito – triste, solitário e de desalento – face ao enigma do ser situa-se
num contexto de noite e silêncio para onde remete o poema. Com efeito, de noite
nenhuma resposta chega, é apenas o silêncio, a realidade indecifrável (“o informe real”). O ambiente é
sugerido através de vários recursos estilísticos: a perífrase “noite a madrugar (v 2); a adjetivação
e a metáfora, que caraterizam a
solidão (“uma
solidão imensa” – adjetivação; “que tem por corpo o frio do ar” – adjetivação
pela oração relativa adjetiva restritiva e metáfora em o frio do ar = corpo); a dupla adjetivação e a hipálage , que traduzem a tristeza
inquieta do momento (“Neste momento insone e triste”: “insone” e “triste” são dois
adjetivos referidos a “momento”; a hipálage existe pelo facto de os adjetivos
transferirem para uma coisa – momento – caraterísticas de ser animado, neste
caso, o homem);
e a insistência no campo lexical de “noite” (noite, antes de amanhecer, negro) e “silêncio (silêncio, insone, surdo,
mudo).
Finalmente, atente-se
na última quadra parentética, que aparentemente constitui uma repetição, mas
que acaba por ser uma negação de tudo o que foi evocado e como que séria e emocionalmente
descrito do lado do poeta: Ah, nada é
isto, nada é assim! – O que torna o poeta tão subjetivo e contraditório
como real e atraente, mas sempre enigmático.
2015.08.20 – Louro de Carvalho
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