quinta-feira, 20 de agosto de 2015

80.º aniversário da morte de Fernando Pessoa

A 30 de novembro, passará o 80.º aniversário da morte de Fernando António Nogueira Pessoa, o poeta português de feição universalista e cosmopolita. A aposição ao menino dos nomes de Santo António de Lisboa, por nascimento, ou de Pádua, por óbito (que teve como nome de nascimento e de batismo o de “Fernando” e como nome de religioso o de António, quando se tornou franciscano) não foi premonitória nem do caráter aristocraticamente culto dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, na lusa Atenas, nem do franciscanismo religioso, bebido a partir dos santos mártires de Marrocos, cujo culto os franciscanos vieram promover em Portugal. No entanto, teve em si a premonição do vulto que adquiriu uma cultura construída e enditada no labor insano e brilhou no cultivo e culto da língua portuguesa e da arte literária, em profundidade e excentricidade como António de Lisboa: o “olissipopaduano”, no campo religioso; o “afroluso”, no campo literário e crítico.
Não suficientemente apreciada em vida, esta personalidade extremamente rica e complexa, com uma bela produção literária tão genuína como diversificada transmutou-se no poeta mais universalizado e comentado pós-Camões e numa das figuras mais intrigantes da lusa língua, não obstante as abundantes explicações fornecidas motu proprio ou a solicitação de outrem.
Dele escreveu Almada Negreiros:
“Não conheci exemplo igual ao de Fernando Pessoa: o do homem substituído pelo poeta! Esta sobreposição do poeta ao homem, outro que não Fernando Pessoa poderia tê-la feito mal. Mas ele tinha posto toda a sua vida na Poesia; ele é exatamente o poeta dos seus versos” (In Diário de Lisboa, 1935, aquando da notícia da morte de Pessoa).
De si mesmo fala o próprio poeta:
“A minha alma gira em torno da minha obra literária – boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim interesse secundário” (In Cartas de Amor).  
Tenra orfandade, forçada deambulação familiar, namoro romântico sem desfecho e usufruto inveterado do álcool fazem, por muitas décadas, do poeta polifacetado e prosador de discurso exato pretexto atraente para a panóplia biobibliográfica de invejável envergadura.   
Nascido em Lisboa a 13 de junho (dia do nascimento do seu onomástico) do ano da publicação de Os Maias de Eça e de A Menina Júlia de Strindberg e falecido com a idade de 47 anos, a 30 de novembro de 1935, a vida de Fernando Pessoa consiste em não haver vida, se por vida se entender uma série de fenómenos notórios e sonantes. Não casou. Não teve filhos, emprego certo, amigos íntimos, tirando Mário de Sá-Carneiro. Não concluiu um curso superior, não viajou após regresso a Lisboa subsequente à estada de dez anos no estrangeiro. A sua vida confina-se à vasta sucessão de não eventos, rudemente entrecortada pelo consternante suicídio de Sá-Carneiro. Ele, que, na idade adulta, não se afastou 500 metros do Rossio, teve a grandeza patriótica, a audácia lusa e a autoridade literária para clamar “a minha pátria é a língua portuguesa” e reconhecer no Padre António Vieira o “imperador da língua portuguesa”.
Joel Serrão, em Fernando Pessoa – Cidadão do Imaginário (Livros Horizonte, 1981) diz que “o ciclo vital e civil” de Pessoa principiou dois anos antes do Ultimatum inglês e “expirou quando o Estado Novo definia o perfil com que arrostaria a implacável voragem do tempo” (“vida tão breve, mas cheia como um ovo”, a pulsar fremente e decisivamente “em Portugal e no vasto Mundo”). Sabe-se que Fernando Pessoa tomou posição pelo Presidente-Rei como acreditou no figurino (da Constituição de 1933) “forte, autoritário e corporativo” que Salazar iria emprestar ao regime. Só que tarde se apercebeu de que a missão essencial do caudilho “seria remeter para as calendas gregas os propósitos de liberdade, igualdade e fraternidade, inscritos ainda, oficiosamente no lábaro político da res publica”.
Porém – continua Serrão:
“No meio disto tudo, Fernando Pessoa, que não chegou a velho, como acontece com aqueles ‘a quem os deuses amam’; no meio de tudo isto, acaso sobretudo nisto tudo – no próprio coração das coisas, sopesando-as, ele debate-se e eleva a voz, umas vezes (poucas), em público e quase ininterruptamente, rabisca, datilografa, pelas noites fora, para a arca inexaurível. Procurando, procurando-se, mediante a alquimia do verbo, seu instrumento e seu tormento, julgando-se mais só e desamparado do que realmente estaria…”.
***
O pai, Joaquim de Seabra Pessoa, médio funcionário muito culto e dedicado à crítica musical, faleceu em 1893, quando o poeta perfazia os 5 anos de idade. Decorridos 2 anos, a mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, de boa família açoriana e educação esmerada, casou com João Miguel Rosa, cônsul em Durban, aonde chegou passado um ano.
Fernando estuda na High School e é galardoado, em 1904, com o Prémio Rainha Vitória por um ensaio em inglês integrante do exame de admissão à Universidade do Cabo. Em agosto de 1905, regressa sozinho a Lisboa para frequentar o Curso Superior de Letras, que abandona ao fim de poucos meses. Eis-nos, pois, ante um duplo estrangeiro: português na África do Sul de língua inglesa, dando lugar, anos depois, ao adolescente de fala inglesa a flutuar na Lisboa portuguesa: tempos diferentes, estrangeiro em territórios diferentes, mas seus! Apesar das saudades e nostalgia da infância, com a memória da felicidade que dela remanesce – vida, amizade, língua, mundo, literatura, tudo isso serão realidades estranhas, enigmas a deslindar. Nada lhe oferecem de bandeja com a nitidez que as evidências costumam impor. Tudo é motivo de assombro, como soía referir. Notas íntimas sublinham esta capacidade de assombro aliada à incapacidade de se deixar perpassar por evidências que o não sãoo facto assombroso, o único facto real, o de as coisas existirem, o de alguma coisa existir, o de o ser ser, é a alma do fôlego de todas as artes [...] todo o génio é o renascimento do assombro.
O poeta do fingimento é o artista do assombro em cuja rentabilização está a raiz da prodigiosa e variegada produção em verso e prosa prosseguida nos interstícios da errática profissão de correspondente comercial. A variedade, dirá ele, é a única desculpa para a abundância. Ninguém deveria deixar escritos vinte livros diferentes a não ser que conseguisse escrever como vinte homens diferentes. Eis o segredo da ortonímia e da heteronímia pessoanas, a raiz inventora dos heterónimos, invenção de que não sendo o pioneiro, levou a tal paroxismo de intensidade e explicitação que a fez como que nova e sobretudo sua.
O dia auroral de 8 de março de 1914 – cujo centenário ocorreu o ano passado – ganha o estatuto de data-viragem, nos anais pessoanos, da escrita tumultuosa e imparável dos poemas que intitulou de O Guardador de Rebanhos, cujo autor, pagão de espécie complicadamente simples, se revela o Mestre, que o será também de Ricardo Reis e de Álvaro de Campos. Este, por seu turno, proclamará que o mestre Alberto Caeiro não era um pagão, era o paganismo. E o ortónimo asseguraria que Teixeira de Pascoais virado do avesso, sem sair do seu lugar, daria Caeiro, que nos deixa perplexos e arrancados à nossa atitude crítica.
Alberto Caeiro é estranha e pavorosamente novo, é o poeta que olha o mundo com o espanto de se não espantar, satisfeito com o mistério do não mistério: o único mistério é haver quem pense no mistério. Esta é a terapêutica simples e operacionalmente consoladora que desvairou o histérico e depressivo engenheiro Álvaro de Campos, levando-o a mais uma exaltação do mestre: Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro ou dos seus versos; e a própria ideia do nada, a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade, tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis. Inventado Caeiro, Pessoa arranja-lhe discípulos. Assim nasceram Reis e Campos. Reis é pagão como Caeiro, mas tem rigor e densidade: A sua inspiração é estreita e densa, observará Campos, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real. A respeito dele, observou Jonathan Griffin, que Reis é o mais que Pessoa conseguiu aproximar-se de Caeiro.
Reis trabalha o paganismo como doutrina ética, epicurista e estoica, simultaneamente consciente e distante do universo cristão, de forma a permitir que as pessoas vivam sofrendo o menos possível. Campos é o engenheiro de Glasgow, futurista, amante, panegirista das máquinas (dentro das quais vê o passado clássico e o futuro do progresso), dos portos, da modernidade e do aerodinamismo, oscilando entre a depressão e a histeria, desprezando os homens porque não ostentam a simplicidade eficiente das máquinas, de que o poeta canta o encómio, celebra a apoteose e pretende a similitude pessoal: Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! /Ser completo como uma máquina! /Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Pessoa traça o perfil magistralmente recortado de Campos como Walt Whitman com um poeta grego dentro de si, com a pujança intelectual, emocional e física que caraterizava Whitman, mas com o poder de construção e ordenamento de poema que poeta algum depois de Milton jamais alcançou.
Contudo, Pessoa não nasceu do nada. Várias vezes, o autor de Mensagem diz, com ênfase polémica, nunca se avançar senão com um pé atrás e outro à frente. Se Almada Negreiros jura, com laivos exibicionistas, fazer tábua rasa do passado incómodo, Pessoa regista prováveis influências de Baudelaire, Cesário, Edgar Poe, Antero, Gomes Leal, Junqueiro, Garrett, que o terá inspirado para escrever poesia portuguesa, Milton, Keats, Shelley, Byron, Tennyson, Wordsworth, Carlyle, Camilo Pessanha, António Nobre, José Duro e Correia de Oliveira.
É de notar como se lança, na aventura modernista, dum lado, o grupo heterogéneo de Almada, Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, António Ferro; do outro, Fernando Pessoa, brincando a contragosto, quase nauseado e sempre atento ao mistério de existir. Todavia, em 1915 (se tivesse persistido, seria hoje uma revista centenária), com os amigos literários funda a revista Orpheu, para agitar a poeira duma cultura dormente.
Aparições isoladas e espasmódicas, golpes de mão a aterrorizar os quatro gatos da literatura oficial fazem avolumar o caudal do rio subterrâneo da criação solitária e obstinada. Qual abúlico apaixonado e imaginativo, para não rebentar ou não enlouquecer, quase às escondidas, à margem dos grandes projetos, escreve diariamente poemas, artigos, reflexões. Tão preguiçoso e abúlico como obstinado administrador meticuloso da própria glória presente e futura lhe chamou David Mourão-Ferreira ao verificar o mapa das estratégias de publicação seguidas pelo poeta de Mensagem.
Na Athena, na Contemporânea e na Presença, que o acolhe e lhe dá tratamento de Mestre, Pessoa vai colocando a nata da sua produção, assim lhe assegurando letra de forma. Em vida, tirante os poemas ingleses, só dá foros de livro à Mensagem, com que concorre ao prémio do Secretariado da Propaganda Nacional, logrando o 2.º lugar. Conta, nos dois anos que julga lhe restarem de vida, deixar organizados os manuscritos para publicação. Porém, o relógio do tempo trocou as voltas ao seu horóscopo e os manuscritos ficam no baú intactos, mas não prontos para edição imediata, quando o autor baixa ao Hospital de S. Luís dos Franceses a 29 de novembro de 1935, onde falece no dia seguinte.
A melhor homenagem à grandeza do poeta persiste na sua obra, cuja publicação sistemática foi iniciada em 1942 pela Ática, sob a direção de João Gaspar Simões, e vem hoje complementada pela notável edição crítica regida pela batuta de Ivo Castro.
***
A título de exemplo, se transcreve o poemetoCansa sentir quando se pensa”.

Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negro sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim!)
In Cancioneiro

Começando logo pelo 1.º verso, é de referir que ele comporta o recorrente tema pessoano da dor de pensar provocada pela intelectualização do sentir. Com efeito, pensar traz cansaço ao sentir, impede a sensação e a emoção no seu estado puro e genuíno; pode chegar mesmo a eliminar o sentir. No poemeto, o emissor lírico dá asas a um estado de espírito marcado pelos sentimentos de solidão, tristeza e desalento. No entanto, o estado de alma do sujeito poético mostra outras facetas. Efetivamente, são temas que se entrecruzam: a dor de pensar (“Cansa sentir quando se pensa”); o enigma do ser (não sei quem hei de ser”); a ilusão do real (“Pesa-me o informe real”); e a incapacidade de viver a vida (“não poder viver assim”).
O evocado estado de espírito – triste, solitário e de desalento – face ao enigma do ser situa-se num contexto de noite e silêncio para onde remete o poema. Com efeito, de noite nenhuma resposta chega, é apenas o silêncio, a realidade indecifrável (“o informe real”). O ambiente é sugerido através de vários recursos estilísticos: a perífrase “noite a madrugar (v 2); a adjetivação e a metáfora, que caraterizam a solidão (“uma solidão imensa” – adjetivação; “que tem por corpo o frio do ar” – adjetivação pela oração relativa adjetiva restritiva e metáfora em o frio do ar = corpo); a dupla adjetivação e a hipálage , que traduzem a tristeza inquieta do momento (“Neste momento insone e triste”: “insone” e “triste” são dois adjetivos referidos a “momento”; a hipálage existe pelo facto de os adjetivos transferirem para uma coisa – momento – caraterísticas de ser animado, neste caso, o homem); e a insistência no campo lexical de “noite” (noite, antes de amanhecer, negro) e “silêncio (silêncio, insone, surdo, mudo).
Finalmente, atente-se na última quadra parentética, que aparentemente constitui uma repetição, mas que acaba por ser uma negação de tudo o que foi evocado e como que séria e emocionalmente descrito do lado do poeta: Ah, nada é isto, nada é assim! – O que torna o poeta tão subjetivo e contraditório como real e atraente, mas sempre enigmático.

2015.08.20 – Louro de Carvalho

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