sexta-feira, 31 de julho de 2015

Crer em Deus numa cultura secularizada

Está a decorrer, no Seminário Diocesano de Leiria, de 30 de julho a 2 de agosto, o Encontro de Reflexão Teológica 2015 (ERT 2015) organizado pelo movimento católico de profissionais “Metanoia” em torno do tema Crer em Deus numa cultura secularizada.
A escolha do tema parte dos seguintes pressupostos, como se pode ler no folheto/programa:
Crer em Deus não é necessário para se ser feliz. Crer em Deus tampouco é indispensável para ter valores importantes na vida ou para ter sentido para a vida. Todos convivemos ou conhecemos pessoas que comprovam estas afirmações. Contudo, acreditar no Deus de Jesus e no seu Evangelho podem constituir o maior tesouro na vida.
Daí, do tesouro que encerra a fé em Jesus Cristo, as questões que motivam a reflexão:
E, nesse caso, porque não partilhá-lo? Porque não testemunhar de um Deus verdadeiramente apetecível?
O tema central deste ERT, cujo desenvolvimento teológico ficou ao encargo do perito dominicano frei José Nunes, explicita-se através dos seguintes subtemas, correspondentes a outras tantas conferências: 1. Deus – um rival do Homem (?); 2. Deus criador – a criação como um dom; 3. Deus salvador-libertador: “não tenhais medo”; e 4. Deus da alegria.
As primeiras três das conferências foram proferidas no dia 31 (hoje), seguindo-se o trabalho de grupos, sob guião apropriado, e o plenário de partilha; e a quarta sê-lo-á dia 1 (amanhã), a que se seguirá a síntese do ERT.
Para lá do tema central acima enunciado, vários intervenientes apresentaram reflexão oportuna sobre várias experiências pastorais, na rubrica “painel de experiências”, do dia 30. Assim, o padre Idalino Simões falou sobre “A experiência pastoral na periferia das grandes cidades”; Paula Cristina Santos abordou o tema “Pelos caminhos de Santiago”; e António Marujo apresentou o tema “Escutar a Cidade, em preparação para o Sínodo de Lisboa”.
Durante o ERT 2014, os participantes organizaram um cartaz com “a indicação de um conjunto de iniciativas” onde os presentes tinham “uma participação ativa, designadas “Pequenos Milagres”, cujas iniciativas, este ano, foram revisitadas, de modo que se fique a saber o que realmente aconteceu durante o ano, neste âmbito, e se possam acrescentar outras experiências. Para esta revisitação serviu a rubrica do dia 30 “Pequenos Milagres”.
Além da conferência prevista, o dia 1 de agosto ficará marcado pelo “Passeio e visita ao Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota”, durante a manhã, bem como pela “Celebração Eucarística”, pelas 18,15 horas, e “Festa”, pelas 21 horas. Por seu turno, um concerto marcará a manhã do dia 2 de agosto, logo a seguir ao debate sobre “Que desafios a partir deste ERT?”.
Cada um dos outros dias contempla um momento forte de oração em comum, sendo que o último dia prevê um “Mosaico/Oração dos fiéis”.
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O que é o grupo “Metanoia”?
Para melhor compreensão deste movimento católico de profissionais, seu perfil e suas atividades, talvez não seja despiciendo um pequeno excursus etimológico e bíblico.
“Metanoia” é a transcrição do nome grego “μετάνοια”, que significa “mudança de sentimentos”, “arrependimento”. Depois, na literatura eclesiástica, passou a ter o significado específico de “penitência” (arrependimento com as obras consonantes com o arrependimento – conversão). Como é óbvio, “μετάνοια” relaciona-se com o verbo “μετανοέω”, que significa “mudar de parecer”, “arrepender-se”.
Porém, não parece que esta mudança seja automática ou instintiva. Veja-se que na formação de “μετανοέω” entra o verbo “νοέω”, com o significados de “pensar”, “cair na conta”, “ver”, “meditar”, “ser prudente”, “projetar”, “olhar para o futuro”. Ora, todos estes sentidos apontam para uma operação que é produzida na mente (na ideia, no intelecto), que mobiliza a consciência e a vontade, que possibilita a clarividência e que faz avançar para o futuro (sem receio, embora com algumas cautelas). Por outro lado, na formação de “μετανοέω” entra o prefixo “μετά”, a indicar, na derivação de palavras, a ideia de “comunidade”, “participação”, “entre”, “sucessão de tempo”, “a seguir”, “durante”.
O prefixo “μετά” resulta da forma igual com a função de advérbio (a significar “no meio”, “entre”; com ideia de lugar – “por detrás”, “a seguir”; com a ideia de tempo – “a seguir”; “detrás de outro, seguindo-o”) e de preposição (com genitivo, “em meio de”, “em companhia de”, “de acordo com”; com dativo, “em meio de”, “com”, “para”; com acusativo, “depois de”, “a seguir”, “entre”, “para”; com a ideia de tempo, “durante”).
Nos textos bíblicos do Novo Testamento, o apelo ao arrependimento/penitência/conversão é lancinante da parte de Cristo como condição da aceitação do Reino de Deus, que está próximo (vd Mt 4,17 e Mc 1,15) e constitui a predisposição para a fé no Evangelho. A forma verbal utilizada é “μετανοϊτε”, presente do optativo da voz ativa na 2.ª pessoa do plural do verbo “μετανοέω”. É a formulação do brado/apelo que exprime um vivo desejo do pregador, que se deve entender como uma viva recomendação, quase ordem, pois exprime a condição sine qua non da aceitação do Reino de Deus ou Reino dos Céus.
Também João Batista, o precursor, lança o mesmo brado/apelo ao arrependimento como predisposição para a purificação dos pecados. A forma verbal é a mesma (vd Mt 3,2).
Após a ressurreição e ascensão do Senhor, reforçada pelo Espírito Santo do Pentecostes, Pedro dirige aos circunstantes o mesmo brado/apelo, mas agora a forma verbal utilizada é outra, “μετανοήσατε”, no aoristo do imperativo na 2.ª pessoa do plural do mesmo verbo “μετανοέω” (vd At 2,38; 3,19).
O aoristo, no grego, indicava uma ação verbal ou um acontecimento, sem definir absolutamente o seu tempo de duração, ou sem definir com precisão o tempo em que a ação ocorreu ou havia de ter ocorrido. Ao invés, no grego do Novo Testamento, o aoristo tem como efeito reverter a um momento, ou seja, considera a ação como num curto instante: representa um momento de entrada ou de término ou, então, faz o enfoque numa ação completa de algo que tenha ocorrido simples e isoladamente, sem distinguir passos ou detalhes do progresso da ação.
No caso vertente, o arrependimento refere-se a ações pecaminosas do passado e, se elas voltarem a ocorrer, o mesmo arrependimento se impõe com mais força. O arrependimento, seguido da fé no Reino, abre a porta do futuro irreversível. E esse futuro não pode esperar mais.
É óbvio que muitos textos bíblicos fazem eco ora do brado/apelo ao arrependimento (cf 1Rs 8,47; Ez 18,30-31; Mt 21,29-32; Mc 1,4; 6,12; Lc 1,16; 13,5; 15,7.10; 24,47; At 17,30), ora da atitude sincera de arrependimento assumido (Mt 12,41; 21,29-32; Jb 42,6; Lc 15,17-20; At 11,18) ou da sua obstinada rejeição (cf Mt 11,20; Lc 16,19-31).
Por tudo isto, se vê como o arrependimento é uma atitude provocada pela pregação do Reino, predispõe para a fé na Boa Nova. Impõe-se contra o tempo e exige a mudança das mentalidades, do coração, das atitudes e dos comportamentos de cada um no contexto comunitário. Implica, pois, um novo rumo, configura uma nova vida. A conversão não se fica pelas aparências; tem de ser real, fruto da pregação dos conteúdos da fé e da lúcida e voluntariosa reflexão pessoal coadjuvada pela comunidade e sua força. Porém, sendo real, tem de frutificar também no exterior, no ambiente; tem de ter consequências. Recordemos que o prefixo “μετά” configura a ação no espaço em que se vive e no tempo em que temos mesmo de agir sem demoras e sem precipitações.
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Sendo assim, o movimento “Metanoia” assume-se como espaço e tempo de encontro, acolhendo pessoas, crentes ou não, nas mais variadas circunstâncias de vida. O encontro acontece a partir daquilo o que cada um vive, experiencializa e transporta, procurando não separar interioridade e exterioridade, reflexão e vivência, princípios e ação, espiritualidade e cidadania, opções pessoais e futuro das nossas sociedades.
O movimento propõe-se “construir comunidade entre pessoas com condições pessoais, profissionais e percursos de vida diversos, para quem o encontro e a celebração da fé em Jesus Cristo são indissociáveis da abertura aos outros, num processo nunca acabado de conversão pessoal” (cf site do movimento), com recurso “a formas organizativas” que se querem “leves e flexíveis, baseadas nos princípios da participação democrática, da corresponsabilidade, do voluntariado e da assunção coletiva dos encargos”.
Configura outrossim:
. Um espaço de descoberta e vivência da fé que dá sentido ao vivido, que integra e inclui a partir do essencial – Jesus, que nos seus gestos e palavras sempre amou e incitou ao amor.
. Uma experiência de Igreja construída na fragilidade e que bebe da sabedoria de tantos homens e mulheres que viveram e vivem a experiência de Deus e dão sentido à Paixão de Jesus.
. Um espaço de liberdade, corresponsabilidade, reflexão e partilha de vida, de conversão e aprendizagem com os outros.

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É claro que o mecanismo vital de reflexão/ação/reflexão de um movimento de Igreja que respeite e assuma a secularidade e se movimente evangelicamente no seu contexto constitui uma mais-valia inquestionável para realização do ser e da missão da Igreja no mundo encarado de modo holístico e na dinâmica do enriquecimento setorial. Sobre a aridez da secularidade autónoma (e, mesmo, da laicidade positiva), sobre a fluidez das ideologias e sobre o manto esfarrapado das desigualdades ou das desequilibradas assimetrias, é preciso estabelecer as necessárias pontes para que o homem do século XXI seja feliz e, nessa felicidade, veja em Deus e no outro homem os aliados mais vizinhos e mais solidários – o que se conseguirá se se apostar na construção de autênticas comunidades.

2015.07.31 – Louro de Carvalho

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