quarta-feira, 8 de julho de 2015

Português no Ensino Básico – gestão do programa

Entrou em vigor, para aplicação a partir do ano letivo de 2015/2016, o novo programa de Português no Ensino Básico.
Já tive ocasião de me pronunciar sobre o mesmo. Recordo que este programa surge a poucos anos da entrada em vigor e aplicação do anterior, sem que tenha sido feita qualquer avaliação do seu impacto no sistema de ensino e nas aprendizagens. Por outro lado, este novo programa abjura, como se de espírito maligno se tratasse, da estruturação do ensino em torno das competências, voltando-se para o ensino por objetivos e privilegiando os conteúdos. Depois, o que parece essencial no programa são os conteúdos disfarçados nas metas curriculares e descritores estabelecidos rigidamente para cada um dos anos da escolaridade básica, sendo que algumas metas se tornam excessivamente ambiciosas para determinados níveis etários e pouco exigentes outras. Ademais, a estruturação das metas curriculares por anos de escolaridade em vez das metas de aprendizagem estabelecidas até há pouco por ciclos parece desviar-se do espírito ta Lei de Bases do Sistema Educativo, que entende o ensino básico como cíclico e progressivo:
A articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspetiva de unidade global do ensino básico (art.º 8.º/2.). 
Além disso, põe-se o acento não nas aprendizagens em si, que pressupõem um esforço integrado e contextualizado entre aluno e professor, com a diversificação de saberes (art.º 7.º, alínea b) e não apenas o impacto da aquisição dos conteúdos; tendo em conta também o processo e não apenas o produto.
***
Entretanto, uma dirigente da Associação de Professores de Português (APP) – Filomena Viegas – disse esperar que os colegas “tenham o bom senso” de não seguir as diretrizes do novo programa de Português “de forma acrítica”. E o Ministério da Educação e Ciência (MEC) veio, em resposta, recordar que “os programas das disciplinas são para cumprir”, sendo prontamente secundado por Helena Buescu, a coordenadora do novo programa de Português para o ensino básico, a qual, do alto da sua autoridade e sabedoria, avisou que “apelar à desobediência civil é um ato com consequências jurídicas”.
É óbvio que o professor que tenha a pouca habilidade de apenas seguir à letra, à risca e ao espaço entre linhas, palavras e riscas, um qualquer programa, por mais bem elaborado que esteja, não merece ser chamado professor. É que o professor tem o dever e o direito de, em nome da sua autonomia científica, técnica e profissional (vd ECD, art.º 35.º), fazer a gestão do programa, tendo em conta as capacidades atuais e os contextos de cada aluno da sua turma, com vista a otimizar as aprendizagens, fazendo com que o aluno adquira toda a mais-valia possível e expectável para aquele ano de escolaridade e o ciclo em que se integra, numa perspetiva holística. Aliás, quem é que falou em postura de rebeldia ou apelou à desobediência civil?
O público de hoje, dia 7 de julho, pela pena de Graça Barbosa Ribeiro, faz crer que estão, aparentemente, em causa duas conceções diferentes do ensino da língua portuguesa. Helena Buescu, frisando que comentava as palavras de Filomena Viegas “como cidadã” – advoga, com toda a equipa de que foi coordenadora e que traçou as novas diretrizes, “a importância da definição clara de conteúdos programáticos, objetivos e respetivos descritores de desempenho, ano a ano de escolaridade”.
Por seu turno, Filomena Viegas foi coautora do programa de Português de 2009, que o atual Governo revogou intempestivamente. Assim, considera – e bem, do meu ponto de vista – que aquele que agora entra em vigor põe “de lado aquilo que deve ser essencial, a aprendizagem das crianças”, e responde à “obsessão do que pode ser treinado, quantificado e medido com exames”, de modo a deixar em boa posição de ranking nacional os alunos e as escolas que recorram ao marranço (perdão pela gíria), numa perspetiva transacional e mercantilista da educação, tão ajustável à ambição dos privados ou dos municipalizadores da ação educativa, que privilegiam os resultados académicos e a imagem. O compadrio fará o resto, se necessário.
A dirigente da APP, que poderia ficar ressabiada pelo não reconhecimento do seu trabalho e do da equipa que integrou, tem razão quando se refere “às metas e aos descritores de desempenho” – ‘cerca de mil’ – que pretensamente se articulam com o programa, vindo juntas como que em anexo, afirmando que “estabelecer metas anuais, objetivas e mensuráveis para cada ano de um ciclo de ensino é desadequado e favorece a retenção, porque não permite a flexibilização do currículo e dos programas ou a recuperação de aprendizagens menos conseguidas”.
Respondendo de imediato, a equipa que elaborou o programa recentemente homologado defendeu que os objetivos presentes nas metas curriculares e os descritores de desempenho (enunciados precisos e objetivos do que se espera que o aluno seja capaz de fazer junto ao final de cada não de escolaridade – e não no final do ano letivo, já que a mor parte das provas finais é realizada em maio) são entre 25 e 84, respetivamente, por cada um dos nove anos do ensino básico. E contesta que a avaliação, a cada ano, do cumprimento daqueles itens “dificulte a recuperação de alunos com dificuldades”, dado que, na sua ótica, o professor pode “intervir de imediato”, não deixando a recuperação para o fim do ciclo. Estas afirmações só revelam o desconhecimento da paciência de que deve ser dotado o professor destes níveis de ensino e das usuais condições de trabalho docente.
Depois, na linha de quem puxa a brasa para a sua sardinha, a mesma salienta que nas provas finais de 2015 (três anos depois da implementação das metas curriculares), os alunos do 4.º ano e do 6.º ano obtiveram “bons resultados”. Porém, esquece a tendência para o aumento das retenções nos anos em que não há provas finais (cujos resultados académicos influenciam a avaliação das escolas) e quer tapar o sol com a peneira, pois os resultados de uma reforma não são imediatos e a maior parte dos docentes (que não são autómatos) nem tempo conseguiu para interiorizar as metas. O motivo dos bons resultados tem mais a ver com a confecção das provas e os critérios de correção e a preparação intensa no âmbito do esquema de exame a que a escola é cada vez mais induzida, tal como as escolas de condução, que preparam para exame e não para o saber.
O MEC, não analisando as críticas da APP em pormenor, diz que os programas em vigor são para cumprir (nem outra cosia era de esperar, tal como de qualquer lei) e lembra pomposa e sapientemente que “numa sociedade democrática e num Estado de direito há procedimentos a cumprir, tanto pelo Estado como pela sociedade em geral”, e que o programa de Português, que esteve em consulta pública, faz parte desses procedimentos. Depois, não me parece lícito que, por birra política ou ideológica se inobservem facilmente os consensuais objetivos e princípios da Lei de Bases do Sistema Educativo. Poderia, ao menos ter-se a coragem política para a substituir.
A equipa coordenadora do novo programa explicita que, na introdução ao novo programa, agora em versão consolidada, são referidas as alterações que resultaram das críticas à proposta, no período de consulta. Tais críticas traduziram-se no reforço da sua “exequibilidade” e passou, por exemplo, pela redução do número de textos de Educação Literária a trabalhar nos três ciclos.
Não é, a meu ver, na educação literária que reside o busílis das metas, sendo até de pequeno e de moço que se forma o cidadão culto e autónomo. Depois, o exemplo dado da passagem a opcionais dos poemas de Fernando Pessoa, que na proposta eram obrigatórios, constitui mais uma cacetada na índole cíclica e progressiva do ensino. É certo que a escolaridade obrigatória passou para 12 anos, o que pode e deve dar um fôlego diferente na distribuição dos conteúdos, mas cortar ou tornar opcional uma rubrica só por que também vai ser lecionada no fim da escolaridade coloca o aluno frente a uma realidade totalmente nova na reta final dos estudos. E, diga-se em abono da verdade, não havia necessidade.
Todavia, concorda-se que muitas das rubricas deixem de ser obrigatórias, mas provavelmente foi-se longe demais ao não se estabelecer um quadro de mínimos obrigatórios, deixando ao critério do doente a seleção em consonância com as possibilidades da (s) respetiva (s) turma (s).
Finalmente, continuo a deplorar a não consignação de um conjunto de parâmetros de avaliação do programa e um conjunto de orientações de avaliação das aprendizagens na disciplina de Português, uma vez que os normativos no atinente à avaliação das aprendizagens são necessariamente genéricos.
E talvez seja oportuno que o MEC recorde que, se os programas são para cumprir, também a nova ortografia deve ser respeitada e seguida por parte de quem tem responsabilidades públicas, mesmo quem coordena ou integra as equipas de elaboração de programas de educação e ensino.

2015.07.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário