Entrou em vigor, para
aplicação a partir do ano letivo de 2015/2016, o novo programa de Português no
Ensino Básico.
Já tive ocasião de me
pronunciar sobre o mesmo. Recordo que este programa surge a poucos anos da
entrada em vigor e aplicação do anterior, sem que tenha sido feita qualquer
avaliação do seu impacto no sistema de ensino e nas aprendizagens. Por outro
lado, este novo programa abjura, como se de espírito maligno se tratasse, da
estruturação do ensino em torno das competências, voltando-se para o ensino por
objetivos e privilegiando os conteúdos. Depois, o que parece essencial no
programa são os conteúdos disfarçados nas metas curriculares e descritores
estabelecidos rigidamente para cada um dos anos da escolaridade básica, sendo
que algumas metas se tornam excessivamente ambiciosas para determinados níveis
etários e pouco exigentes outras. Ademais, a estruturação das metas
curriculares por anos de escolaridade em vez das metas de aprendizagem estabelecidas
até há pouco por ciclos parece desviar-se do espírito ta Lei de Bases do
Sistema Educativo, que entende o ensino básico como cíclico e progressivo:
A articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva,
conferindo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo
anterior, numa perspetiva de unidade global do ensino básico (art.º 8.º/2.).
Além disso, põe-se o acento não
nas aprendizagens em si, que pressupõem um esforço integrado e contextualizado
entre aluno e professor, com a diversificação de saberes (art.º 7.º, alínea b) e não
apenas o impacto da aquisição dos conteúdos; tendo em conta também o processo e
não apenas o produto.
***
Entretanto, uma
dirigente da Associação de Professores de Português (APP) – Filomena
Viegas – disse esperar que os colegas “tenham o bom senso” de não seguir as
diretrizes do novo programa de Português “de forma acrítica”. E o Ministério da
Educação e Ciência (MEC) veio, em resposta, recordar que “os
programas das disciplinas são para cumprir”, sendo prontamente secundado por Helena
Buescu, a coordenadora do novo programa de Português para o ensino básico, a
qual, do alto da sua autoridade e sabedoria, avisou que “apelar à desobediência
civil é um ato com consequências jurídicas”.
É óbvio que o professor que tenha
a pouca habilidade de apenas seguir à letra, à risca e ao espaço entre linhas,
palavras e riscas, um qualquer programa, por mais bem elaborado que esteja, não
merece ser chamado professor. É que o professor tem o dever e o direito de, em
nome da sua autonomia científica, técnica e profissional (vd ECD, art.º 35.º), fazer a gestão do programa, tendo em conta as capacidades
atuais e os contextos de cada aluno da sua turma, com vista a otimizar as
aprendizagens, fazendo com que o aluno adquira toda a mais-valia possível e
expectável para aquele ano de escolaridade e o ciclo em que se integra, numa
perspetiva holística. Aliás, quem é que falou em postura de rebeldia ou apelou
à desobediência civil?
O público de hoje, dia 7 de julho,
pela pena de Graça Barbosa
Ribeiro, faz crer que estão, aparentemente, em causa duas conceções diferentes
do ensino da língua portuguesa. Helena Buescu, frisando que comentava as
palavras de Filomena Viegas “como cidadã” – advoga, com toda a equipa de que foi
coordenadora e que traçou as novas diretrizes, “a importância da definição
clara de conteúdos programáticos, objetivos e respetivos descritores de
desempenho, ano a ano de escolaridade”.
Por seu turno, Filomena Viegas foi
coautora do programa de Português de 2009, que o atual Governo revogou
intempestivamente. Assim, considera – e bem, do meu ponto de vista – que aquele
que agora entra em vigor põe “de lado aquilo que deve ser essencial, a
aprendizagem das crianças”, e responde à “obsessão do que pode ser treinado,
quantificado e medido com exames”, de modo a deixar em boa posição de ranking nacional os alunos e as escolas
que recorram ao marranço (perdão pela gíria), numa perspetiva transacional e
mercantilista da educação, tão ajustável à ambição dos privados ou dos
municipalizadores da ação educativa, que privilegiam os resultados académicos e
a imagem. O compadrio fará o resto, se necessário.
A dirigente da APP, que poderia
ficar ressabiada pelo não reconhecimento do seu trabalho e do da equipa que
integrou, tem razão quando se refere “às metas e aos descritores de desempenho”
– ‘cerca de mil’ – que pretensamente se articulam com o programa, vindo juntas
como que em anexo, afirmando que “estabelecer metas anuais, objetivas e
mensuráveis para cada ano de um ciclo de ensino é desadequado e favorece a
retenção, porque não permite a flexibilização do currículo e dos programas ou a
recuperação de aprendizagens menos conseguidas”.
Respondendo de imediato, a equipa
que elaborou o programa recentemente homologado defendeu que os objetivos presentes
nas metas curriculares e os descritores de desempenho (enunciados precisos e objetivos do
que se espera que o aluno seja capaz de fazer junto ao final de cada não de
escolaridade – e não no final do ano letivo, já que a mor parte das provas
finais é realizada em maio) são entre 25 e 84,
respetivamente, por cada um dos nove anos do ensino básico. E contesta que a
avaliação, a cada ano, do cumprimento daqueles itens “dificulte a recuperação
de alunos com dificuldades”, dado que, na sua ótica, o professor pode “intervir
de imediato”, não deixando a recuperação para o fim do ciclo. Estas afirmações
só revelam o desconhecimento da paciência de que deve ser dotado o professor
destes níveis de ensino e das usuais condições de trabalho docente.
Depois, na linha de quem puxa a
brasa para a sua sardinha, a mesma salienta que nas provas finais de 2015 (três anos depois da implementação
das metas curriculares), os alunos do 4.º ano e do 6.º
ano obtiveram “bons resultados”. Porém, esquece a tendência para o aumento das
retenções nos anos em que não há provas finais (cujos resultados académicos influenciam a avaliação
das escolas) e quer tapar o sol com a peneira,
pois os resultados de uma reforma não são imediatos e a maior parte dos
docentes (que não são
autómatos) nem tempo conseguiu para interiorizar as metas. O motivo
dos bons resultados tem mais a ver com a confecção das provas e os critérios de
correção e a preparação intensa no âmbito do esquema de exame a que a escola é
cada vez mais induzida, tal como as escolas de condução, que preparam para
exame e não para o saber.
O MEC, não analisando as críticas da
APP em pormenor, diz que os programas em vigor são para cumprir (nem outra cosia era de esperar,
tal como de qualquer lei) e lembra pomposa e sapientemente
que “numa sociedade democrática e num Estado de direito há procedimentos a
cumprir, tanto pelo Estado como pela sociedade em geral”, e que o programa de
Português, que esteve em consulta pública, faz parte desses procedimentos. Depois,
não me parece lícito que, por birra política ou ideológica se inobservem facilmente
os consensuais objetivos e princípios da Lei de Bases do Sistema Educativo.
Poderia, ao menos ter-se a coragem política para a substituir.
A equipa coordenadora do novo
programa explicita que, na introdução ao novo programa, agora em versão
consolidada, são referidas as alterações que resultaram das críticas à proposta,
no período de consulta. Tais críticas traduziram-se no reforço da sua “exequibilidade”
e passou, por exemplo, pela redução do número de textos de Educação Literária a
trabalhar nos três ciclos.
Não é, a meu ver, na educação
literária que reside o busílis das
metas, sendo até de pequeno e de moço que se forma o cidadão culto e autónomo.
Depois, o exemplo dado da passagem a opcionais dos poemas de Fernando Pessoa,
que na proposta eram obrigatórios, constitui mais uma cacetada na índole
cíclica e progressiva do ensino. É certo que a escolaridade obrigatória passou
para 12 anos, o que pode e deve dar um fôlego diferente na distribuição dos conteúdos,
mas cortar ou tornar opcional uma rubrica só por que também vai ser lecionada
no fim da escolaridade coloca o aluno frente a uma realidade totalmente nova na
reta final dos estudos. E, diga-se em abono da verdade, não havia necessidade.
Todavia, concorda-se que muitas
das rubricas deixem de ser obrigatórias, mas provavelmente foi-se longe demais
ao não se estabelecer um quadro de mínimos obrigatórios, deixando ao critério
do doente a seleção em consonância com as possibilidades da (s) respetiva (s)
turma (s).
Finalmente, continuo a deplorar a
não consignação de um conjunto de parâmetros de avaliação do programa e um
conjunto de orientações de avaliação das aprendizagens na disciplina de
Português, uma vez que os normativos no atinente à avaliação das aprendizagens
são necessariamente genéricos.
E talvez seja oportuno que o MEC
recorde que, se os programas são para cumprir, também a nova ortografia deve
ser respeitada e seguida por parte de quem tem responsabilidades públicas,
mesmo quem coordena ou integra as equipas de elaboração de programas de
educação e ensino.
2015.07.07 – Louro de Carvalho
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