Conforme notícia veiculada pela
agência Ecclesia, a 25 de
julho, e por outros órgãos de comunicação social ligados à região do Sado e à
medicina, a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, na Diocese de Setúbal,
inaugurou uma Clínica Social Dentária (CSD), no passado dia 24, com o propósito claro de
trazer “mais dignidade” e “alegria” à vida de quem, por inúmeras razões, não
consegue tratar da sua saúde oral.
A
inauguração da CSD num bairro de gente pobre foi motivo de festa e alegria e
reuniu autoridades políticas, civis e religiosas.
A este respeito, o bispo
de Setúbal, Dom Gilberto Reis, sublinhou a “importância real” de uma clínica
que vai ajudar na saúde oral de quem “tem muitas dificuldades” e nasceu porque
a paróquia esteve “atenta às necessidades” das pessoas e – acrescente-se –
daquelas pessoas que sofrem em muito a penúria de tudo: acesso a habitação
condigna, alimentação saudável, vestuário apresentável, emprego/reemprego,
condições de sucesso educativo, cuidados primários de saúde e higiene oral.
O prelado
sadino destacou uma outra quádrupla dimensão à qual são vocacionadas todas as
pessoas: primeiro, prestar a devida atenção aos sofrimentos e dores do outro e querer
dar-lhe acompanhamento eficaz; segundo, crer que é possível fazer alguma coisa;
terceiro, aproximar-se de quem sofre; e, quarto, envolver os outros, estruturar
e organizar bem.
Por seu
turno, o padre Constantino Alves, prior da paróquia e responsável pela igreja
de Nossa Senhora da Conceição define o objetivo primordial:
“No
fundo é para trazer mais dignidade à vida das pessoas que fizemos avançar o
projeto, que acreditamos nele e que fizemos nascer com o apoio de tantas
pessoas”.
O
zeloso sacerdote salienta também as motivações humanistas, “porque ninguém pode
ficar insensível ao sofrimento e aos dramas dos outros homens”, e as razões da
fé e do Evangelho subjacentes ao projeto da CSD. E, citando o Papa Francisco,
recorda que, “se o cristianismo perder o sentido da solidariedade, é como
termos uma religião sem o próprio Cristo”, e que “os pobres devem estar no
centro da Igreja”. E os pobres não podem esperar, como referia em tempos o
bispo do Porto.
Por
outro lado, o padre Constantino Alves faz remontar a ideia a uma conversa com o
atual diretor clínico, o cirurgião José Rafael, e um colaborador da paróquia,
em setembro de 2014, em que os três partilhavam a preocupação com a falta de
recursos financeiros de muitas famílias carenciadas daquela zona.
O prior revelou:
“A ideia da criação de uma Clínica Dentária
Social surgiu da observação e do contacto direto com a população dos bairros
periféricos de Setúbal. Ao olhar para eles, via que, muitas vezes, as suas
bocas não sorriam, porque não tinham dentes ou tinham os dentes muito
maltratados. E as pessoas que procuravam acesso ao mercado de trabalho viam-se
impossibilitadas de o conseguir”.
O sacerdote intuiu esta necessidade a partir
de uma experiência que lhe passou pelas mãos – ou seja, “depois de ter pago o
tratamento a uma pessoa desempregada, que, passados 15 dias, arranjou logo
trabalho” –, lembrando que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não
dá resposta a este tipo de necessidades básicas da população e que as clínicas
privadas praticam preços inacessíveis para famílias carenciadas.
Presentemente, a CSD já tem seis dentistas
voluntários, que o diretor clínico conseguiu “interessar e envolver”. São mais de
três dezenas de voluntários que vão colaborar gratuitamente com a nova Clínica
Dentária Social. Todavia, o pároco lança o desafio a mais médicos que pretendam
abraçar esta iniciativa, prestando algum serviço de voluntariado, porque –
garante – “vão-se sentir felizes”.
O cirurgião dentista José Rafael, que também
foi um dos mentores do projeto, declarou:
“Por vezes, o dinheiro já não nos move. A
ajuda às pessoas é mais importante do que qualquer outra coisa. E com a ajuda
dos amigos, dos colegas, de toda a gente que quer participar, surgiu o projeto
da Clínica Social Dentária. Já temos seis pessoas [dentistas]. Pensamos que
serão necessários, no mínimo, doze médicos, porque temos de ter alguma
rotatividade para pôr a clínica a funcionar”.
E acrescentou:
“Vamos falar com a Universidade Egas Moniz
para saber da disponibilidade de alguns colegas que acabaram o curso, mas que
ainda não têm trabalho, e que queiram dar o seu contributo. E temos colegas com
muita experiência, que também estão interessados em dar o seu contributo”.
Por sua
vez, Cristina Figueiredo, que vive no bairro da Bela Vista há apenas dois meses,
considera a clínica um “projeto bom”, dado que há muitas pessoas que “até
recebem o rendimento mínimo, que não chega para pagar as despesas, para
sobreviver”.
Da sua
parte, Ana Lúcia Bordal, que mora no bairro servido pela Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição “há mais de 12 anos”, revelou-se “muito agradecida” ao
“prior e a Deus” pela iniciativa e declarou:
“Acho
muito bem para os pobres terem uma boca limpa e acabar com as infeções porque
há muitas famílias que têm de tirar da barriga para arranjar a boca”.
Eugénio
Fonseca, presidente da Cáritas Nacional e também da Cáritas Diocesana de
Setúbal, e Nuno Costa, presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião,
destacaram positivamente a iniciativa que não pode substituir o Serviço
Nacional de Saúde e as obrigações do Estado. Eugénio Fonseca, que inclui a
clínica num projeto “mais vasto que é a erradicação da pobreza”, referiu:
“É
muito importante que as pessoas abram a boca para sorrir, para dizer das suas
mágoas, dos seus anseios, das suas esperanças e quem está junto delas e as vê
abrir a boca não faça logo avaliações subjetivas”.
Nuno
Costa, recordando que, com números de pobreza que apontam para os 35% no bairro
da Bela Vista, “10% acima da média nacional”, considera que para si este é “um
dia muito feliz”.
A nova Clínica Social Dentária, a funcionar em
instalações resultantes de obras de adaptação do edifício da Igreja de Nossa
Senhora da Conceição, que também foram realizadas por voluntários
desempregados, só irá abrir as portas em setembro, depois de cumpridos todos os
requisitos legais e, segundo informação justificativa do padre Constantino
Alves, porque “é necessário dar formação adequada” a quem vai estar, por
exemplo, na receção na marcação das consultas ou no atendimento social
personalizado.
***
Esta dignificante iniciativa vem
em linha e está em paralelismo com o texto do Evangelho do XVII Domingo do
Tempo Comum (Jo 6,1-13).
Jesus subiu ao monte, sentou-se
com os discípulos a ensiná-los. Ao ver a grande multidão que o acompanhara por
ter presenciado os sinais miraculosos que realizava em favor dos doentes,
perguntou a Filipe onde haviam de comprar pão para toda aquela gente comer. Ao
que o discípulo respondeu, no seu calculismo, que nem duzentos denários
chegavam para cada um comer um pedacinho.
Entretanto, André informou, na
sua atenção e coscuvilhice, que havia ali um rapaz que tinha cinco pães de
cevada e dois peixes. Porém, desvalorizando aquela posse do outro, perguntou o
que era aquilo para tanta gente – eram cinco mil homens (sem contar as mulheres e as crianças).
Era o tempo de aproximação da
Páscoa judaica. Esta proximidade daquela Páscoa, sublinhada pela existência de
muita erva naquele local, constitui uma chave para a descoberta, no milagre da
multiplicação do pão, a figura da Páscoa cristã e da instituição da Eucaristia,
até porque no mesmo capítulo (vv
22-71) vem o discurso do Pão do Céu, com a reação negativa das multidões
e de muitos dos discípulos e a positiva dos doze apóstolos. Por outro lado, o
próprio relato do milagre está feito com palavras utilizadas pelos evangelhos
sinóticos para o relato da instituição da Eucaristia (cf Mt 26,17.26; Mc 14,1.22; Lc 22,7.19): Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, os
distribuiu pelos que estavam sentados…
Ora, Jesus vendo as necessidades
da multidão e o cerne da sua missão messiânica, compadeceu-se, mas sabia o que
ia fazer. Todavia, não dispensou o diálogo com os discípulos, aos quais
pretendia tornar cúmplices responsáveis da compaixão pelas multidões e da
missão messiânica de Jesus. Ignorou o calculismo de Filipe e a desvalorização
de André pela existência dos cinco pães e dos dois peixes e aceitou como
importante a oferta do mencionado rapaz.
O Mestre que fazia prodígios em
prol dos doentes pela dignidade humana (e a Igreja setubalense O segue nesta linha), com a
multiplicação dos pães e dos peixes propõe a missão da sua comunidade – a
Igreja – enquanto sinal do amor misericordioso de Deus, assegurando a todos a
possibilidade de subsistência e dignidade (também a Igreja presente na região do Sado o tem feito contínua
e persistentemente nas áreas da alimentação, da habitação, da saúde, da
educação e, em geral, do serviço social).
Porém, o milagre da subsistência
não se pode estar a exigir só de Deus, mas também dos homens, sem calculismos
inúteis, sem desvalorizar o pouco que se tem, mas sobretudo apelando
permanentemente à lucidez da análise da realidade, à vontade de fazer e à
mobilização da solidariedade. A eficácia da subsistência não está no muito que
poucos possuem e retêm para si próprios, mas no pouco de cada um que é
repartido entre todos. A garantia da dignidade não reside no poder do chefe que
manda, mas na organização comunitária do serviço de cada um para o bem de
todos.
***
Como resulta impróprio, ineficaz
e até não humano, pregar a estômagos vazios, a desalojados e a doentes, importa
que a comunidade evangelizante se preocupe com a promoção da condição humana e
a dignidade da pessoa. Caso contrário, está a construir sobre areia movediça. Porém,
a comunidade missionária não pode parar aí, porque a sua missão, tendo também
de a assumir, não se reduz à dimensão filantrópica.
Da boca de Deus vem o pão para o
homem, mas também a palavra de que este necessita (vd Dt 8,3). Ao dar o pão, Cristo mostra que a sua
palavra é de Deus.
Jesus apresenta-se como o pastor
no meio do seu rebanho, no meio das suas ovelhas. Vários pormenores dos relatos
de multiplicação dos pães e dos peixes e de outros episódios dos textos de
Mateus, Marcos, Lucas e João, comparados com escritos paralelos do Antigo
Testamento, nos ajudam a descobrir em Jesus o pastor anunciado pelos profetas.
Deus dá o pão ao seu povo (Ex 16,4-36;
Sl 72/71,16; 81/80,17; 132/131,15; 147,14)
e tudo o que são da boca de Deus, nomeadamente a palavra (vd Dt 8,3; Sb 16,26; Mt 4,4). Ora,
Jesus, nestes tempos, que são os últimos, o faz de modo eminente e o manda
fazer a todos os seus.
Sentaram-se nos pastos
verdejantes (Sl 23/22,2)
e ficaram saciados (Sl 78/77,29).
Esta multidão sentada para comer é a imagem da humanidade que Jesus reunirá no
banquete fraternal do Reino (vd
Lc 14,15).
Com o gesto de levantar os olhos
ao céu Jesus exprime a sua íntima relação pessoal com o Pai, utilizando
qualquer oração que os santos profetas teriam feito em caso semelhante.
Por outro lado, o pão vem de Deus,
que pôs na terra tudo aquilo de que a humanidade precisa para sua alimentação e
seu desenvolvimento. Porém, os problemas da distribuição equitativa são tão complexos
como a própria natureza humana e nenhum sistema os pode solucionar enquanto não
aprendermos a escutar a palavra de Deus e a pô-la em prática.
A quem escuta esta palavra Deus
ensina a construir um mundo de justiça e de pão repartido. Para tanto – tal como
não ceder a calculismos egoístas ou a desvalorização do que se tem – é
necessário nada desperdiçar. A compaixão de Jesus pela multidão não se reduziu
ao lamento platónico ou romântico, mas tornou-se eficaz. Compadeceu-se da
multidão daqueles por quem os governantes se interessavam muito pouco e que O
haviam escutado durante muito tempo sem preocupação com a comida; fê-los sentar
por grupos de uns cinquenta; e, sentindo-se pastor e verdadeiro pão, deu-lhes o
pão e distribuiu-lho. Eles comeram e ficaram saciados.
Depois, mandou recolher o que
sobrava. E, sem contar os peixes que restaram, recolheram-se ainda doze cestos
de pedaços de pão.
***
Depois, de saciar a fome das
multidões, que aceitaram o pão que alimenta o corpo, partiu para o discurso do
pão da vida, que as multidões e alguns discípulos, ávidos do messianismo exclusivamente
político e terrestre, não aceitaram.
Faltou-lhes saber que nem só de pão
vive o homem – mas de toda a palavra que vem da boca de Deus (cf Mt 4,4) – e fazer a ponte da
subsistência e da dignidade humana para as palavras de vida eterna, que os
apóstolos liderados por Pedro reconheceram no discurso do Senhor: “Para onde havemos de ir se Tu, e apenas Tu,
tens palavras de vida eterna? Nos cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus.”
(Jo 6,68-69).
E esta é a batalha de todos os
dias a travar pela Igreja missionária e promotora da comunhão dos homens com
Deus e dos homens entre si e com o zelo da Casa comum.
2015.07.26 – Louro de Carvalho
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