segunda-feira, 27 de julho de 2015

O trabalho pela dignidade das pessoas não tem limites

Conforme notícia veiculada pela agência Ecclesia, a 25 de julho, e por outros órgãos de comunicação social ligados à região do Sado e à medicina, a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, na Diocese de Setúbal, inaugurou uma Clínica Social Dentária (CSD), no passado dia 24, com o propósito claro de trazer “mais dignidade” e “alegria” à vida de quem, por inúmeras razões, não consegue tratar da sua saúde oral.
A inauguração da CSD num bairro de gente pobre foi motivo de festa e alegria e reuniu autoridades políticas, civis e religiosas.
A este respeito, o bispo de Setúbal, Dom Gilberto Reis, sublinhou a “importância real” de uma clínica que vai ajudar na saúde oral de quem “tem muitas dificuldades” e nasceu porque a paróquia esteve “atenta às necessidades” das pessoas e – acrescente-se – daquelas pessoas que sofrem em muito a penúria de tudo: acesso a habitação condigna, alimentação saudável, vestuário apresentável, emprego/reemprego, condições de sucesso educativo, cuidados primários de saúde e higiene oral.
O prelado sadino destacou uma outra quádrupla dimensão à qual são vocacionadas todas as pessoas: primeiro, prestar a devida atenção aos sofrimentos e dores do outro e querer dar-lhe acompanhamento eficaz; segundo, crer que é possível fazer alguma coisa; terceiro, aproximar-se de quem sofre; e, quarto, envolver os outros, estruturar e organizar bem.
Por seu turno, o padre Constantino Alves, prior da paróquia e responsável pela igreja de Nossa Senhora da Conceição define o objetivo primordial:
“No fundo é para trazer mais dignidade à vida das pessoas que fizemos avançar o projeto, que acreditamos nele e que fizemos nascer com o apoio de tantas pessoas”.
O zeloso sacerdote salienta também as motivações humanistas, “porque ninguém pode ficar insensível ao sofrimento e aos dramas dos outros homens”, e as razões da fé e do Evangelho subjacentes ao projeto da CSD. E, citando o Papa Francisco, recorda que, “se o cristianismo perder o sentido da solidariedade, é como termos uma religião sem o próprio Cristo”, e que “os pobres devem estar no centro da Igreja”. E os pobres não podem esperar, como referia em tempos o bispo do Porto.
Por outro lado, o padre Constantino Alves faz remontar a ideia a uma conversa com o atual diretor clínico, o cirurgião José Rafael, e um colaborador da paróquia, em setembro de 2014, em que os três partilhavam a preocupação com a falta de recursos financeiros de muitas famílias carenciadas daquela zona.
O prior revelou:
“A ideia da criação de uma Clínica Dentária Social surgiu da observação e do contacto direto com a população dos bairros periféricos de Setúbal. Ao olhar para eles, via que, muitas vezes, as suas bocas não sorriam, porque não tinham dentes ou tinham os dentes muito maltratados. E as pessoas que procuravam acesso ao mercado de trabalho viam-se impossibilitadas de o conseguir”.
O sacerdote intuiu esta necessidade a partir de uma experiência que lhe passou pelas mãos – ou seja, “depois de ter pago o tratamento a uma pessoa desempregada, que, passados 15 dias, arranjou logo trabalho” –, lembrando que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não dá resposta a este tipo de necessidades básicas da população e que as clínicas privadas praticam preços inacessíveis para famílias carenciadas.
Presentemente, a CSD já tem seis dentistas voluntários, que o diretor clínico conseguiu “interessar e envolver”. São mais de três dezenas de voluntários que vão colaborar gratuitamente com a nova Clínica Dentária Social. Todavia, o pároco lança o desafio a mais médicos que pretendam abraçar esta iniciativa, prestando algum serviço de voluntariado, porque – garante – “vão-se sentir felizes”.
O cirurgião dentista José Rafael, que também foi um dos mentores do projeto, declarou:
“Por vezes, o dinheiro já não nos move. A ajuda às pessoas é mais importante do que qualquer outra coisa. E com a ajuda dos amigos, dos colegas, de toda a gente que quer participar, surgiu o projeto da Clínica Social Dentária. Já temos seis pessoas [dentistas]. Pensamos que serão necessários, no mínimo, doze médicos, porque temos de ter alguma rotatividade para pôr a clínica a funcionar”.
E acrescentou:
“Vamos falar com a Universidade Egas Moniz para saber da disponibilidade de alguns colegas que acabaram o curso, mas que ainda não têm trabalho, e que queiram dar o seu contributo. E temos colegas com muita experiência, que também estão interessados em dar o seu contributo”.
Por sua vez, Cristina Figueiredo, que vive no bairro da Bela Vista há apenas dois meses, considera a clínica um “projeto bom”, dado que há muitas pessoas que “até recebem o rendimento mínimo, que não chega para pagar as despesas, para sobreviver”.
Da sua parte, Ana Lúcia Bordal, que mora no bairro servido pela Paróquia de Nossa Senhora da Conceição “há mais de 12 anos”, revelou-se “muito agradecida” ao “prior e a Deus” pela iniciativa e declarou:
“Acho muito bem para os pobres terem uma boca limpa e acabar com as infeções porque há muitas famílias que têm de tirar da barriga para arranjar a boca”.
Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Nacional e também da Cáritas Diocesana de Setúbal, e Nuno Costa, presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião, destacaram positivamente a iniciativa que não pode substituir o Serviço Nacional de Saúde e as obrigações do Estado. Eugénio Fonseca, que inclui a clínica num projeto “mais vasto que é a erradicação da pobreza”, referiu:
“É muito importante que as pessoas abram a boca para sorrir, para dizer das suas mágoas, dos seus anseios, das suas esperanças e quem está junto delas e as vê abrir a boca não faça logo avaliações subjetivas”.
Nuno Costa, recordando que, com números de pobreza que apontam para os 35% no bairro da Bela Vista, “10% acima da média nacional”, considera que para si este é “um dia muito feliz”.
A nova Clínica Social Dentária, a funcionar em instalações resultantes de obras de adaptação do edifício da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que também foram realizadas por voluntários desempregados, só irá abrir as portas em setembro, depois de cumpridos todos os requisitos legais e, segundo informação justificativa do padre Constantino Alves, porque “é necessário dar formação adequada” a quem vai estar, por exemplo, na receção na marcação das consultas ou no atendimento social personalizado.
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Esta dignificante iniciativa vem em linha e está em paralelismo com o texto do Evangelho do XVII Domingo do Tempo Comum (Jo 6,1-13).
Jesus subiu ao monte, sentou-se com os discípulos a ensiná-los. Ao ver a grande multidão que o acompanhara por ter presenciado os sinais miraculosos que realizava em favor dos doentes, perguntou a Filipe onde haviam de comprar pão para toda aquela gente comer. Ao que o discípulo respondeu, no seu calculismo, que nem duzentos denários chegavam para cada um comer um pedacinho.
Entretanto, André informou, na sua atenção e coscuvilhice, que havia ali um rapaz que tinha cinco pães de cevada e dois peixes. Porém, desvalorizando aquela posse do outro, perguntou o que era aquilo para tanta gente – eram cinco mil homens (sem contar as mulheres e as crianças).
Era o tempo de aproximação da Páscoa judaica. Esta proximidade daquela Páscoa, sublinhada pela existência de muita erva naquele local, constitui uma chave para a descoberta, no milagre da multiplicação do pão, a figura da Páscoa cristã e da instituição da Eucaristia, até porque no mesmo capítulo (vv 22-71) vem o discurso do Pão do Céu, com a reação negativa das multidões e de muitos dos discípulos e a positiva dos doze apóstolos. Por outro lado, o próprio relato do milagre está feito com palavras utilizadas pelos evangelhos sinóticos para o relato da instituição da Eucaristia (cf Mt 26,17.26; Mc 14,1.22; Lc 22,7.19): Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, os distribuiu pelos que estavam sentados…
Ora, Jesus vendo as necessidades da multidão e o cerne da sua missão messiânica, compadeceu-se, mas sabia o que ia fazer. Todavia, não dispensou o diálogo com os discípulos, aos quais pretendia tornar cúmplices responsáveis da compaixão pelas multidões e da missão messiânica de Jesus. Ignorou o calculismo de Filipe e a desvalorização de André pela existência dos cinco pães e dos dois peixes e aceitou como importante a oferta do mencionado rapaz.
O Mestre que fazia prodígios em prol dos doentes pela dignidade humana (e a Igreja setubalense O segue nesta linha), com a multiplicação dos pães e dos peixes propõe a missão da sua comunidade – a Igreja – enquanto sinal do amor misericordioso de Deus, assegurando a todos a possibilidade de subsistência e dignidade (também a Igreja presente na região do Sado o tem feito contínua e persistentemente nas áreas da alimentação, da habitação, da saúde, da educação e, em geral, do serviço social).
Porém, o milagre da subsistência não se pode estar a exigir só de Deus, mas também dos homens, sem calculismos inúteis, sem desvalorizar o pouco que se tem, mas sobretudo apelando permanentemente à lucidez da análise da realidade, à vontade de fazer e à mobilização da solidariedade. A eficácia da subsistência não está no muito que poucos possuem e retêm para si próprios, mas no pouco de cada um que é repartido entre todos. A garantia da dignidade não reside no poder do chefe que manda, mas na organização comunitária do serviço de cada um para o bem de todos.
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Como resulta impróprio, ineficaz e até não humano, pregar a estômagos vazios, a desalojados e a doentes, importa que a comunidade evangelizante se preocupe com a promoção da condição humana e a dignidade da pessoa. Caso contrário, está a construir sobre areia movediça. Porém, a comunidade missionária não pode parar aí, porque a sua missão, tendo também de a assumir, não se reduz à dimensão filantrópica.
Da boca de Deus vem o pão para o homem, mas também a palavra de que este necessita (vd Dt 8,3). Ao dar o pão, Cristo mostra que a sua palavra é de Deus.
Jesus apresenta-se como o pastor no meio do seu rebanho, no meio das suas ovelhas. Vários pormenores dos relatos de multiplicação dos pães e dos peixes e de outros episódios dos textos de Mateus, Marcos, Lucas e João, comparados com escritos paralelos do Antigo Testamento, nos ajudam a descobrir em Jesus o pastor anunciado pelos profetas. Deus dá o pão ao seu povo (Ex 16,4-36; Sl 72/71,16; 81/80,17; 132/131,15; 147,14) e tudo o que são da boca de Deus, nomeadamente a palavra (vd Dt 8,3; Sb 16,26; Mt 4,4). Ora, Jesus, nestes tempos, que são os últimos, o faz de modo eminente e o manda fazer a todos os seus.
Sentaram-se nos pastos verdejantes (Sl 23/22,2) e ficaram saciados (Sl 78/77,29). Esta multidão sentada para comer é a imagem da humanidade que Jesus reunirá no banquete fraternal do Reino (vd Lc 14,15).
Com o gesto de levantar os olhos ao céu Jesus exprime a sua íntima relação pessoal com o Pai, utilizando qualquer oração que os santos profetas teriam feito em caso semelhante.
Por outro lado, o pão vem de Deus, que pôs na terra tudo aquilo de que a humanidade precisa para sua alimentação e seu desenvolvimento. Porém, os problemas da distribuição equitativa são tão complexos como a própria natureza humana e nenhum sistema os pode solucionar enquanto não aprendermos a escutar a palavra de Deus e a pô-la em prática.
A quem escuta esta palavra Deus ensina a construir um mundo de justiça e de pão repartido. Para tanto – tal como não ceder a calculismos egoístas ou a desvalorização do que se tem – é necessário nada desperdiçar. A compaixão de Jesus pela multidão não se reduziu ao lamento platónico ou romântico, mas tornou-se eficaz. Compadeceu-se da multidão daqueles por quem os governantes se interessavam muito pouco e que O haviam escutado durante muito tempo sem preocupação com a comida; fê-los sentar por grupos de uns cinquenta; e, sentindo-se pastor e verdadeiro pão, deu-lhes o pão e distribuiu-lho. Eles comeram e ficaram saciados.
Depois, mandou recolher o que sobrava. E, sem contar os peixes que restaram, recolheram-se ainda doze cestos de pedaços de pão.
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Depois, de saciar a fome das multidões, que aceitaram o pão que alimenta o corpo, partiu para o discurso do pão da vida, que as multidões e alguns discípulos, ávidos do messianismo exclusivamente político e terrestre, não aceitaram.
Faltou-lhes saber que nem só de pão vive o homem – mas de toda a palavra que vem da boca de Deus (cf Mt 4,4) – e fazer a ponte da subsistência e da dignidade humana para as palavras de vida eterna, que os apóstolos liderados por Pedro reconheceram no discurso do Senhor: “Para onde havemos de ir se Tu, e apenas Tu, tens palavras de vida eterna? Nos cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus.” (Jo 6,68-69).
E esta é a batalha de todos os dias a travar pela Igreja missionária e promotora da comunhão dos homens com Deus e dos homens entre si e com o zelo da Casa comum.

2015.07.26 – Louro de Carvalho 

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