No quadro da viagem apostólica de Francisco à América
Latina, o Presidente da Bolívia, Evo Morales ofereceu ao insigne visitante um
crucifixo dito marxista. Crucifixo ou
crucificado é o homem pregado na cruz
(agarrado à cruz), no caso vertente, Jesus Cristo, e, por sinédoque, a
própria cruz. Como a imagem de Cristo aparece esculpida, cabeça e braços no
martelo e o resto do corpo ao longo do cabo do martelo (martelo
– metonímia
do operariado proletarizado)
e como que atravessada no terço inferior do cabo do martelo (aos
pés do crucificado)
pela foice (foice – metonímia do campesinato), e dada a experiência da luta de
libertação boliviana, os observadores acorreram a designar a oferta simbólica
presidencial de crucifixo marxista.
***
Antes de prosseguir no comentário ao episódio e à reação do
Papa, penso oportuno relatar alguns factos pelo que significam de enfoque
parcelar das realidades.
Um dia dos idos de
1980, o pároco duma determinada freguesia foi celebrar missa a uma das outras
paróquias de que também tinha a cura pastoral. Por motivos que ora não vêm ao
caso, foi acompanhado por um dos paroquianos da freguesia donde o pároco vinha.
Um grupinho de crianças aproximou-se do sacerdote e ofereceu-lhe um raminho de
cravos vermelhos. O circunstante, talvez vendo naquela pequenina oferta uma
inocente conotação comunista (provavelmente telecomandada por adultos), disse às crianças que ao senhor
Padre deveriam ter oferecido rosas brancas, símbolo da pureza de Nossa Senhora,
ao que o sacerdote retorquiu agradecendo aos meninos e meninas e lembrando que
a cor vermelha era símbolo do Sagrado Coração de Jesus e a missa que ia ser
celebrada era em honra deste título de Jesus, que tinha vertido o seu sangue
pela nossa salvação.
Também, naquele ano, o mesmo sacerdote pretendeu, na
freguesia em que residia, fazer circular uma folha paroquial pelo sistema de
policópia, com algumas notícias de interesse eclesial e artigos de doutrinação
e experiência pastoral. Desde logo, o primeiro número foi cilindrado sob a
argumentação de que o padre era comunista, bem como todos os colaboradores da
folha, mesmo os confessadamente partidários do CDS. Isto, porque o rosto da
folha apresentava um crucifixo circundado por cinco círculos a representar a
totalidade dos continentes do mundo (um arremedilho de
extrato do logótipo dos jogos olímpicos) – o que fez lembrar verrinosamente a alguém o logótipo da
APU (Aliança Povo Unido), formada pelo PCP (Partido Comunista
Português),
MDP/CDE (Movimento Democrático Português – Comissão Democrática
Eleitoral)
e, após 1983, também pelo PEV (Partido Ecologista “Os Verdes).
Vêm ao caso estes episódios para ilustrar como é difícil,
perante um contexto político-social dominante e reação a ele, fazer a
conveniente hermenêutica dos textos e de outras mensagens que se pretendam
fazer passar. Nos casos relatados, ou a sanha anticomunista era supinamente
primaria ou o padre já tinha sido conotado com a onda comunista desde a sua
entrada nas paróquias. Em qualquer dos casos, os destinatários mais próximos
coibiram-se de fazer o quer que fosse por assinalar o perfil e a missão
evangélicos do sacerdote e/ou o ser e a missão da Igreja que ele devia servir.
Lembro-me também de que, no âmbito da visita pastoral de
João Paulo II a Cuba, o Presidente Fidel Castro, no seu discurso de boas-vindas
foi bem explícito no apontamento das vítimas dos opressores na luta que
culminou com a revolução socialista, pondo em evidência o martírio que sofreram
os revolucionários pela causa da Pátria que sofria. E nem o Pontífice polaco se
mostrou surpreendido nem surgiram críticas significativas a Castro ou a
Wojtyla. A este “já se permitia tudo”, dado que “tinha derrubado o comunismo”,
como dizem alguns. E ninguém disse o que pregam outros: o respeito pela Igreja
Católica foi-se (vd O
Diabo, de 13.07.2015).
***
Quanto ao Papa Francisco, as imagens televisivas permitem
ver bem a sua reação de surpreendido e dizem alguns que ele terá exclamado “isto não está bem”.
Porém, questionado pela jornalista da Rádio Renascença, Aura
Miguel, na entrevista coletiva
durante o voo de regresso do Paraguai,
o Santo Padre respondeu que ficara surpreendido, mas não ofendido,
sublinhando a importância da hermenêutica para compreender o passado.
O Pontífice revelou que não
conhecia aquela escultura nem sabia que o Padre Luís Espinal era escultor e
poeta – “Vi e para mim foi uma surpresa”
– disse.
Por outro lado, opinou – e bem –
tratar-se de um género de arte de protesto. E aduziu o episódio argentino da
exposição feita em tempos, em Buenos Aires, das peças de um bravo escultor
criativo, que fora morto. Uma dessas esculturas figurava um Cristo crucificado
sobre um bombardeiro que vinha em baixo. Era arte de protesto e, em concreto,
uma crítica contundente ao Cristianismo enquanto aliado ao imperialismo. É óbvio
– e o Papa reconhece-o – que, em alguns casos, a arte de protesto pode ser
ofensiva. Porém, este Bispo de Roma, independentemente de eventuais posições
controversas que tenha assumido no passado, não podia levar a mal esta mostra
diplomática de oferta boliviana, ele que, no mesmo país, veio a proferir as
palavras seguintes:
Como São João Paulo II, peço que a Igreja
[…] se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e
presentes dos seus filhos.
Depois, passou a comentar o caso do padre
jesuíta Luís Espinal (1932-1980),
que foi assassinado no ano de 1980 – num lugar que o Papa fez questão de visitar
em La Paz –, por forças paramilitares, no contexto da ditadura boliviana, mercê do impacto do seu enorme empenho
junto dos pobres e na resistência contra as ditaduras da região:
Era um tempo em que a Teologia da
Libertação tinha três tendências diferentes. Uma delas baseava-se na
análise marxista da realidade, e o Padre Espinal integrava esta tendência.
Isto, sim, sabia-o, porque naquele tempo eu era reitor da Faculdade Teológica e
falava-se muito disto, das diversas tendências e de quais eram os seus
representantes.
E refere as instruções dadas pelo Padre Geral da Companhia
de Jesus, o Padre Arrupe:
Escreveu uma
carta a toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade na teologia,
tentando fechar um pouco a questão e dizendo: “não se vai por aí, são coisas
diferentes, não está certo”.
Passa,
a seguir, à referência às intervenções diretas da Santa Sé, pela pena de
Ratzinger:
E quatro anos depois, em 1984, a
Congregação para a Doutrina da Fé publica o primeiro volumezinho, a primeira
declaração sobre a Teologia da Libertação, que critica aquela tendência. Vem,
depois, o segundo livreto, que abre as prospetivas mais cristãs.
Por isso,
embora simplificando, como diz, parte para a hermenêutica daquela época.
Espinal é um entusiasta desta análise
marxista da realidade, mas também da Teologia, utilizando o marxismo. Daqui,
deste entusiasmo, surgiu aquela peça. Também as poesias de Espinal pertencem ao
género de protesto: era a sua vida, era o seu pensamento, era um homem
especial, com tão grande genialidade humana, e que lutava de boa fé. Ora,
fazendo a hermenêutica do género [e o
Papa poderia ter acrescentado a do tempo, que se deduz do discurso],
compreendo esta obra. Para mim não foi uma ofensa. Mas devo fazer esta hermenêutica
e digo-vo-lo a vós porque se trata de opiniões que habitualmente não nos são
facultadas.
Por fim,
Francisco refere-se à guarda do objeto e à presumível intenção de Evo Morales,
não provocatória, já que Espinal não usava o dito crucifixo como propaganda do
comunismo, mas como sinal de diálogo e como símbolo da opressão vivida:
Agora este objeto, trago-o comigo, vem
comigo. Senti que talvez o Presidente Morales tivesse pretendido dar-me duas
honorificências: uma é a mais importante da Bolívia; e a outra é da Ordem do
Padre Espinal, uma nova Ordem. Não tenho aceitado qualquer honorificência nem
isso me interessa. Porém, ele fê-lo com tão boa vontade e com o desejo de me
agradar. E pensei que isto vem do povo da Bolívia – rezei sobre o assunto e
pensei: se as levo para o Vaticano, ficarão num museu e ninguém as verá. Então
pensei deixá-las a Nossa Senhora de Copacabana, a Mãe da Bolívia, e
permanecerão no Santuário de Copacabana, na Senhora, estas duas honorificências
que lhe entreguei. Ao invés, o Cristo, trago-o comigo.
***
Gostasse que não gostasse,
não vejo um papa, sobretudo este, a rejeitar publicamente um presente de um seu
homólogo. Por outro lado, a aceitação não significaria concordância. Assim,
Francisco, ao fazer a hermenêutica do género e sugerindo a do tempo, guardou
consigo – e bem – o crucifixo. Este Papa não pode ser apontado, por isto nem pela
doutrina que prega, como marxista, já que a doutrina bergogliana tem as raízes
e a matriz no Evangelho. Ele, apesar do seu estilo empenhado pelos pobres, até aparece
apontado com um dos opositores à linha mais progressista e engajada da teologia
latino-americana, talvez em obediência ao seu Padre Geral e à Santa Sé. Talvez se
ele tivesse alinhado pela dinâmica de Gustavo Gutierres, Arturo Paoli (falecido a 13 deste mês),
Luís Espinal ou Ronaldo Muñoz e Leonardo Boff – os silenciados pelo Vaticano –,
não teríamos hoje o Papa Francisco.
Mesmo que não se concorde
com alguma das diversas tendências da Teologia da Libertação, convém referir que,
até ao assassinato de Espinal, nem a Santa Sé nem o Padre Geral da Companhia se
haviam pronunciado sobre as tendências da Teologia da Libertação – pelo que
Espinal não incorrera em qualquer tipo de desobediência.
Algo parecido se deve dizer
de Camilo Torres, sacerdote católico colombiano,
pioneiro da Teologia da Libertação, cofundador da primeira Faculdade de
Sociologia de América Latina e membro do grupo guerrilheiro ELN (Exército de Libertação
Nacional), que acabou por se desvincular do sacerdócio ao
ter sido destituído da capelania da Universidade e das atividades académicas da
Universidade pelo cardeal Concha Córdoba, que não aprovou seu labor (desobedeceu, mas não podemos
contestar a sai boa fé).
***
Todavia, independentemente da
hermenêutica do género e, implicitamente, da do tempo, que Francisco apresentou
a Aura Miguel, e de podermos considerar a análise marxista da realidade (que não os pressupostos filosóficos, sociais e
políticos) como uma metodologia de análise da realidade, tão válida como
outras, para suporte da elaboração política e teológica, convém evidenciar a
hermenêutica bíblica e minimizar a opção marxista pelos símbolos da foice e do
martelo.
Jesus de Nazaré praticou o ofício
de carpinteiro, que aprendeu de José (cf Mt 13,55; Mc 6,3; Lc 4,23). Nunca os seus conterrâneos
o desligaram daquele ofício de operário (um dos instrumentos do carpinteiro e dos operários em geral, antes
do advento da máquina era o martelo,
que cedo se tornou o símbolo do operariado proletarizado).
E ele foi morto na cruz por motivos religiosos, fazer-se filho de Deus (cf Lc 22,70-71), com pretexto político, afrontar César fazendo-se rei (cf Jo 19,12-15), quando a verdadeira razão foi “congregar na unidade os filhos de Deus que andavam
dispersos” (Jo
11,52).
Por outro lado, a metáfora
do pecado que brada aos céus em matéria de salário é configurada pela carta de
Tiago no grupo dos ceifeiros:
Olhai que o
salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a
clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo!
Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os
vossos apetites… para o dia da matança! Condenastes
e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se? (Tg 5,4-6).
Por
isso, a foice bem poderia ter sido desde há milénios a metonímia do campesinato,
como o poderiam ser outros instrumentos de lavoura – o arado ou a relha, por
exemplo –, como se verá a seguir, pelo apontamento que os profetas fazem sobre
as exigências dos tempos messiânicos:
– Ele julgará as nações e dará as
suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de
arados, e as suas lanças, em foices (Is 2,4).
– Forjai espadas das relhas dos
vossos arados, e lanças, das vossas foices (Jl 4,10).
– Eles converterão as suas espadas
em relhas de arados, e as suas lanças em foices (Mq 4,3).
Cristo
foi pregado no madeiro, símbolo da escravidão e da infâmia, mas os apóstolos
não se fixaram na hermenêutica comum da escravidão. Reconhecendo, no
Crucificado, o servo sofrente de Javé (Is 52,13-53,12), passaram rapidamente à hermenêutica do Senhorio
de Cristo e da missão por todo o mundo, como se pode verificar pela leitura, por
exemplo, do discurso pós-pentecostal de Pedro:
Jesus de Nazaré, Homem acreditado
por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais que Deus realizou no
meio de vós por seu intermédio, como vós próprios sabeis, este, depois de entregue, conforme o
desígnio imutável e a previsão de Deus, vós o matastes, cravando-o na cruz pela
mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da
morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte. Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto nós
somos testemunhas. Saiba toda a casa
de Israel, com absoluta certeza, que Deus estabeleceu como Senhor e Messias a
esse Jesus por vós crucificado. (At 2,22-24.32.36; cf Fil 2,6-11).
Não
se percebe, pois, como é que os cristãos ainda não veem Cristo em cada um dos
irmãos, sejam eles quem forem, estejam onde estiverem, sobretudo se pobres,
deserdados, descartados! (cf Mt 25,40.45).
***
Por fim, não resisto a transcrever
a comunicação/prece do Papa Francisco em La Paz, a 8 de julho, no local onde
foi assassinado o padre Salinas:
Boas tardes, queridas irmãs e irmãos, detive-me aqui para vos
saudar e sobretudo para recordar, recordar um irmão, um irmão nosso, vítima de
interesses que não queriam que se lutasse pela liberdade da Bolívia. O Padre
Espinal pregou o Evangelho e esse Evangelho incomodou e por isso o eliminaram. Guardemos
um minuto de silêncio em oração e depois rezemos todos juntos.
(silêncio)
Que o Senhor tenha em sua glória o Padre Espinal, que pregou o Evangelho,
esse Evangelho que nos traz a liberdade, que nos faz livres, como todo o filho
de Deus. Jesus trouxe-nos essa liberdade, Ele pregou esse Evangelho. Que Jesus
o tenha junto de Si. Dá-lhe, Senhor, o descanso eterno e brilhe para ele a luz
que não tem fim. Que descanse em paz.
E a todos vós, queridos irmãos, vos abençoe Deus Todo-poderoso, o
Pai, e o Filho e o Espírito Santo. E por favor, por favor, peço-lhes que não se
esqueçam de rezar por mim. Obrigado.
Porquê ver só o pequeno arbusto e não ver a riqueza, a
diversidade e a beleza da floresta?
2015.07.15 – Louro de
Carvalho
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