quarta-feira, 15 de julho de 2015

O caso do crucifixo dito marxista

No quadro da viagem apostólica de Francisco à América Latina, o Presidente da Bolívia, Evo Morales ofereceu ao insigne visitante um crucifixo dito marxista. Crucifixo ou crucificado é o homem pregado na cruz (agarrado à cruz), no caso vertente, Jesus Cristo, e, por sinédoque, a própria cruz. Como a imagem de Cristo aparece esculpida, cabeça e braços no martelo e o resto do corpo ao longo do cabo do martelo (martelo metonímia do operariado proletarizado) e como que atravessada no terço inferior do cabo do martelo (aos pés do crucificado) pela foice (foice – metonímia do campesinato), e dada a experiência da luta de libertação boliviana, os observadores acorreram a designar a oferta simbólica presidencial de crucifixo marxista.
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Antes de prosseguir no comentário ao episódio e à reação do Papa, penso oportuno relatar alguns factos pelo que significam de enfoque parcelar das realidades.
Um dia dos idos de 1980, o pároco duma determinada freguesia foi celebrar missa a uma das outras paróquias de que também tinha a cura pastoral. Por motivos que ora não vêm ao caso, foi acompanhado por um dos paroquianos da freguesia donde o pároco vinha. Um grupinho de crianças aproximou-se do sacerdote e ofereceu-lhe um raminho de cravos vermelhos. O circunstante, talvez vendo naquela pequenina oferta uma inocente conotação comunista (provavelmente telecomandada por adultos), disse às crianças que ao senhor Padre deveriam ter oferecido rosas brancas, símbolo da pureza de Nossa Senhora, ao que o sacerdote retorquiu agradecendo aos meninos e meninas e lembrando que a cor vermelha era símbolo do Sagrado Coração de Jesus e a missa que ia ser celebrada era em honra deste título de Jesus, que tinha vertido o seu sangue pela nossa salvação.
Também, naquele ano, o mesmo sacerdote pretendeu, na freguesia em que residia, fazer circular uma folha paroquial pelo sistema de policópia, com algumas notícias de interesse eclesial e artigos de doutrinação e experiência pastoral. Desde logo, o primeiro número foi cilindrado sob a argumentação de que o padre era comunista, bem como todos os colaboradores da folha, mesmo os confessadamente partidários do CDS. Isto, porque o rosto da folha apresentava um crucifixo circundado por cinco círculos a representar a totalidade dos continentes do mundo (um arremedilho de extrato do logótipo dos jogos olímpicos) – o que fez lembrar verrinosamente a alguém o logótipo da APU (Aliança Povo Unido), formada pelo PCP (Partido Comunista Português), MDP/CDE (Movimento Democrático Português – Comissão Democrática Eleitoral) e, após 1983, também pelo PEV (Partido Ecologista “Os Verdes).
Vêm ao caso estes episódios para ilustrar como é difícil, perante um contexto político-social dominante e reação a ele, fazer a conveniente hermenêutica dos textos e de outras mensagens que se pretendam fazer passar. Nos casos relatados, ou a sanha anticomunista era supinamente primaria ou o padre já tinha sido conotado com a onda comunista desde a sua entrada nas paróquias. Em qualquer dos casos, os destinatários mais próximos coibiram-se de fazer o quer que fosse por assinalar o perfil e a missão evangélicos do sacerdote e/ou o ser e a missão da Igreja que ele devia servir.
Lembro-me também de que, no âmbito da visita pastoral de João Paulo II a Cuba, o Presidente Fidel Castro, no seu discurso de boas-vindas foi bem explícito no apontamento das vítimas dos opressores na luta que culminou com a revolução socialista, pondo em evidência o martírio que sofreram os revolucionários pela causa da Pátria que sofria. E nem o Pontífice polaco se mostrou surpreendido nem surgiram críticas significativas a Castro ou a Wojtyla. A este “já se permitia tudo”, dado que “tinha derrubado o comunismo”, como dizem alguns. E ninguém disse o que pregam outros: o respeito pela Igreja Católica foi-se (vd O Diabo, de 13.07.2015).
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Quanto ao Papa Francisco, as imagens televisivas permitem ver bem a sua reação de surpreendido e dizem alguns que ele terá exclamado “isto não está bem”.
Porém, questionado pela jornalista da Rádio Renascença, Aura Miguel, na entrevista coletiva durante o voo de regresso do Paraguai, o Santo Padre respondeu que ficara surpreendido, mas não ofendido, sublinhando a importância da hermenêutica para compreender o passado.

O Pontífice revelou que não conhecia aquela escultura nem sabia que o Padre Luís Espinal era escultor e poeta – “Vi e para mim foi uma surpresa” – disse.

Por outro lado, opinou – e bem – tratar-se de um género de arte de protesto. E aduziu o episódio argentino da exposição feita em tempos, em Buenos Aires, das peças de um bravo escultor criativo, que fora morto. Uma dessas esculturas figurava um Cristo crucificado sobre um bombardeiro que vinha em baixo. Era arte de protesto e, em concreto, uma crítica contundente ao Cristianismo enquanto aliado ao imperialismo. É óbvio – e o Papa reconhece-o – que, em alguns casos, a arte de protesto pode ser ofensiva. Porém, este Bispo de Roma, independentemente de eventuais posições controversas que tenha assumido no passado, não podia levar a mal esta mostra diplomática de oferta boliviana, ele que, no mesmo país, veio a proferir as palavras seguintes:

Como São João Paulo II, peço que a Igreja […] se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos

Depois, passou a comentar o caso do padre jesuíta Luís Espinal (1932-1980), que foi assassinado no ano de 1980 – num lugar que o Papa fez questão de visitar em La Paz –, por forças paramilitares, no contexto da ditadura boliviana, mercê do impacto do seu enorme empenho junto dos pobres e na resistência contra as ditaduras da região:
Era um tempo em que a Teologia da Libertação tinha três tendências diferentes. Uma delas baseava-se na análise marxista da realidade, e o Padre Espinal integrava esta tendência. Isto, sim, sabia-o, porque naquele tempo eu era reitor da Faculdade Teológica e falava-se muito disto, das diversas tendências e de quais eram os seus representantes.
E refere as instruções dadas pelo Padre Geral da Companhia de Jesus, o Padre Arrupe:
Escreveu uma carta a toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade na teologia, tentando fechar um pouco a questão e dizendo: “não se vai por aí, são coisas diferentes, não está certo”.
Passa, a seguir, à referência às intervenções diretas da Santa Sé, pela pena de Ratzinger:
E quatro anos depois, em 1984, a Congregação para a Doutrina da Fé publica o primeiro volumezinho, a primeira declaração sobre a Teologia da Libertação, que critica aquela tendência. Vem, depois, o segundo livreto, que abre as prospetivas mais cristãs.
Por isso, embora simplificando, como diz, parte para a hermenêutica daquela época.
Espinal é um entusiasta desta análise marxista da realidade, mas também da Teologia, utilizando o marxismo. Daqui, deste entusiasmo, surgiu aquela peça. Também as poesias de Espinal pertencem ao género de protesto: era a sua vida, era o seu pensamento, era um homem especial, com tão grande genialidade humana, e que lutava de boa fé. Ora, fazendo a hermenêutica do género [e o Papa poderia ter acrescentado a do tempo, que se deduz do discurso], compreendo esta obra. Para mim não foi uma ofensa. Mas devo fazer esta hermenêutica e digo-vo-lo a vós porque se trata de opiniões que habitualmente não nos são facultadas.
Por fim, Francisco refere-se à guarda do objeto e à presumível intenção de Evo Morales, não provocatória, já que Espinal não usava o dito crucifixo como propaganda do comunismo, mas como sinal de diálogo e como símbolo da opressão vivida:
Agora este objeto, trago-o comigo, vem comigo. Senti que talvez o Presidente Morales tivesse pretendido dar-me duas honorificências: uma é a mais importante da Bolívia; e a outra é da Ordem do Padre Espinal, uma nova Ordem. Não tenho aceitado qualquer honorificência nem isso me interessa. Porém, ele fê-lo com tão boa vontade e com o desejo de me agradar. E pensei que isto vem do povo da Bolívia – rezei sobre o assunto e pensei: se as levo para o Vaticano, ficarão num museu e ninguém as verá. Então pensei deixá-las a Nossa Senhora de Copacabana, a Mãe da Bolívia, e permanecerão no Santuário de Copacabana, na Senhora, estas duas honorificências que lhe entreguei. Ao invés, o Cristo, trago-o comigo.
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Gostasse que não gostasse, não vejo um papa, sobretudo este, a rejeitar publicamente um presente de um seu homólogo. Por outro lado, a aceitação não significaria concordância. Assim, Francisco, ao fazer a hermenêutica do género e sugerindo a do tempo, guardou consigo – e bem – o crucifixo. Este Papa não pode ser apontado, por isto nem pela doutrina que prega, como marxista, já que a doutrina bergogliana tem as raízes e a matriz no Evangelho. Ele, apesar do seu estilo empenhado pelos pobres, até aparece apontado com um dos opositores à linha mais progressista e engajada da teologia latino-americana, talvez em obediência ao seu Padre Geral e à Santa Sé. Talvez se ele tivesse alinhado pela dinâmica de Gustavo Gutierres, Arturo Paoli (falecido a 13 deste mês), Luís Espinal ou Ronaldo Muñoz e Leonardo Boff – os silenciados pelo Vaticano –, não teríamos hoje o Papa Francisco.
Mesmo que não se concorde com alguma das diversas tendências da Teologia da Libertação, convém referir que, até ao assassinato de Espinal, nem a Santa Sé nem o Padre Geral da Companhia se haviam pronunciado sobre as tendências da Teologia da Libertação – pelo que Espinal não incorrera em qualquer tipo de desobediência.
Algo parecido se deve dizer de Camilo Torres, sacerdote católico colombiano, pioneiro da Teologia da Libertação, cofundador da primeira Faculdade de Sociologia de América Latina e membro do grupo guerrilheiro ELN (Exército de Libertação Nacional), que acabou por se desvincular do sacerdócio ao ter sido destituído da capelania da Universidade e das atividades académicas da Universidade pelo cardeal Concha Córdoba, que não aprovou seu labor (desobedeceu, mas não podemos contestar a sai boa fé).
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Todavia, independentemente da hermenêutica do género e, implicitamente, da do tempo, que Francisco apresentou a Aura Miguel, e de podermos considerar a análise marxista da realidade (que não os pressupostos filosóficos, sociais e políticos) como uma metodologia de análise da realidade, tão válida como outras, para suporte da elaboração política e teológica, convém evidenciar a hermenêutica bíblica e minimizar a opção marxista pelos símbolos da foice e do martelo.
Jesus de Nazaré praticou o ofício de carpinteiro, que aprendeu de José (cf Mt 13,55; Mc 6,3; Lc 4,23). Nunca os seus conterrâneos o desligaram daquele ofício de operário (um dos instrumentos do carpinteiro e dos operários em geral, antes do advento da máquina era o martelo, que cedo se tornou o símbolo do operariado proletarizado). E ele foi morto na cruz por motivos religiosos, fazer-se filho de Deus (cf Lc 22,70-71), com pretexto político, afrontar César fazendo-se rei (cf Jo 19,12-15), quando a verdadeira razão foi “congregar na unidade os filhos de Deus que andavam dispersos” (Jo 11,52).
Por outro lado, a metáfora do pecado que brada aos céus em matéria de salário é configurada pela carta de Tiago no grupo dos ceifeiros:
Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança! Condenastes e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se? (Tg 5,4-6).
Por isso, a foice bem poderia ter sido desde há milénios a metonímia do campesinato, como o poderiam ser outros instrumentos de lavoura – o arado ou a relha, por exemplo –, como se verá a seguir, pelo apontamento que os profetas fazem sobre as exigências dos tempos messiânicos:
– Ele julgará as nações e dará as suas leis a muitos po­vos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices (Is 2,4).
– Forjai espadas das relhas dos vossos arados, e lanças, das vossas foices (Jl 4,10).
– Eles converterão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças em foices (Mq 4,3).
Cristo foi pregado no madeiro, símbolo da escravidão e da infâmia, mas os apóstolos não se fixaram na hermenêutica comum da escravidão. Reconhecendo, no Crucificado, o servo sofrente de Javé (Is 52,13-53,12), passaram rapidamente à hermenêutica do Senhorio de Cristo e da missão por todo o mundo, como se pode verificar pela leitura, por exemplo, do discurso pós-pentecostal de Pedro:
Jesus de Nazaré, Homem acreditado por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais que Deus realizou no meio de vós por seu intermédio, como vós próprios sabeis, este, depois de entregue, conforme o desígnio imutável e a previsão de Deus, vós o matastes, cravando-o na cruz pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte. Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto nós somos testemunhas. Saiba toda a casa de Israel, com absoluta certeza, que Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós crucificado. (At 2,22-24.32.36; cf Fil 2,6-11).
Não se percebe, pois, como é que os cristãos ainda não veem Cristo em cada um dos irmãos, sejam eles quem forem, estejam onde estiverem, sobretudo se pobres, deserdados, descartados! (cf Mt 25,40.45).
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Por fim, não resisto a transcrever a comunicação/prece do Papa Francisco em La Paz, a 8 de julho, no local onde foi assassinado o padre Salinas:
Boas tardes, queridas irmãs e irmãos, detive-me aqui para vos saudar e sobretudo para recordar, recordar um irmão, um irmão nosso, vítima de interesses que não queriam que se lutasse pela liberdade da Bolívia. O Padre Espinal pregou o Evangelho e esse Evangelho incomodou e por isso o eliminaram. Guardemos um minuto de silêncio em oração e depois rezemos todos juntos.
(silêncio)
Que o Senhor tenha em sua glória o Padre Espinal, que pregou o Evangelho, esse Evangelho que nos traz a liberdade, que nos faz livres, como todo o filho de Deus. Jesus trouxe-nos essa liberdade, Ele pregou esse Evangelho. Que Jesus o tenha junto de Si. Dá-lhe, Senhor, o descanso eterno e brilhe para ele a luz que não tem fim. Que descanse em paz.
E a todos vós, queridos irmãos, vos abençoe Deus Todo-poderoso, o Pai, e o Filho e o Espírito Santo. E por favor, por favor, peço-lhes que não se esqueçam de rezar por mim. Obrigado.

Porquê ver só o pequeno arbusto e não ver a riqueza, a diversidade e a beleza da floresta?

2015.07.15 – Louro de Carvalho

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