Enquanto muros significativos
ruem e outros se degradam, novos muros de separação e impedimento de
transposição e acesso se levantam.
Celebrou-se, em 2014, o 25.º aniversário da queda do
muro de Berlim. Não tendo sido este o princípio nem o fim do complexo processo
de reorganização geopolítico do pós-guerra fria, aquele muro subitamente a cair
aos pedaços foi o símbolo mais visível do fim de uma época que a todos constrangia
e de que, afinal, não se sabia bem como sair. De 1961 até 1989, portanto,
durante mais de 28 anos, Berlim ocidental constituiu um enclave cercado em
território pró-soviético. O muro dividiu a cidade, dividiu a Alemanha e dividiu
o mundo. E implantaram-se duas cosmovisões políticas, dois sistemas socioeconómicos,
dois blocos geoestratégicos e militares opostos – separados física e
simbolicamente por um muro.
Com a queda do muro, a URSS desmembrou-se, a guerra
deixou de se chamar fria, nasceram ou renasceram novas fronteiras e o mundo, no
seu conjunto, passou por uma reorganização difícil de imaginar no momento em
que os primeiros berlinenses bateram palmas lá do cimo do muro, metonímia da “cortina
de ferro”. Mas aqueles que divisavam resultados simples, configuradores de paz de
vencedores e vencidos a pôr um fim temporal a uma guerra civilizacional,
depressa se aperceberam de que não ia ser bem assim. E, ao celebrar o 25.º
aniversário da queda do muro, Vladimir Putin e o caso ucraniano, por via da
Crimeia, lembraram-nos agastadamente que onde cai um muro de pedra outros de
outros muros imateriais ou físicos se levantam.
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Também a Grande Muralha da China sentiu o desaparecimento de mais de
30% da sua estrutura e tessitura – desbaste que foi ocorrendo ao longo do tempo
mercê das condições meteorológicas adversas e das atividades humanas
irresponsáveis, como a retirada de tijolos para construção de casas. O turismo e as atividades
locais são os fatores que mais têm contribuído para o desgaste. Os residentes
da região de Lulong, no norte da Província de Hebei, os mais atingidos por dificuldades
financeiras, habituaram-se a recorrer aos tijolos da muralha para construírem
as suas casas. Está arreigado o hábito de retirar as “placas
que contêm inscrições chinesas para venderem por 4,30 euros por peça”, apesar
de a regulamentação chinesa prever multas de 5 mil yuan (0,73 euro) para quem
praticar semelhantes atos.
A este respeito, uma representante da proteção oficial de
Relíquias e da Cultura, Jia Hailin, declarou que “não existe nenhuma organização
específica para garantir o cumprimento da lei”, e, quando os atos ocorrem e as
autoridades são chamadas, é difícil resolver a questão, já que existem zonas
situadas entre fronteiras e, por isso, com diferentes jurisdições. Por outro
lado, “a exploração [turística] das secções incompletas da Grande
Muralha, uma atividade popular em crescimento nos últimos anos, tem atraído
mais turistas do que é possível comportar, originando um desgaste ainda maior”.
Em alguns trechos, o monumento estimado em 21000 Km de comprimento,
considerado património da humanidade pela UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura), encontra-se bastante degradado, no equivalente a cerca de 9000
Km.
Esta construção, dita da Dinastia Ming, não é uma estrutura única
e integrada, mas uma construção por secções, que se estende por milhares de quilómetros
a partir de Shanhaiguan, na Costa Leste de Jiayuguan, atravessando as areias do
deserto de Gobi. A construção iniciou-se por volta do século III a.C., mas cerca de
6300 Km foram construídos durante a Dinastia Ming, entre os anos 1368 e 1644,
incluindo os setores mais visitados ao norte de Pequim, a capital. Desse total,
1962 Km desapareceram ao longo dos séculos. (cf jornal I on line, de 29.06;)
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É mais que certo que os muros de betão e arame farpado
não desapareceram. Ao invés, verifica-se que até proliferaram. Existem, neste
momento, cerca de 50 muros da vergonha dispersos pelo orbe. A maior parte deles
foram edificados construídos no contexto de políticas restritivas da imigração:
fronteiras entre países ricos e países pobres são sempre bom instrumento para que
um muro mantenha os esfomeados do outro lado, o de fora.
Nos Estados Unidos, na fronteira com o México, há um
muro de 3200 km, formado de painéis de metal com mais de 4 metros de altura,
sensores infravermelhos, torres de vigia, câmaras e radares. Desde 1991, já
morreram mais de 5600 pessoas que tentavam transpô-lo.
Nas cidades espanholas de Ceuta e Melilla, no norte de
África, dois muros de 8 e 12 km, respetivamente, mantêm a sul os milhares de
africanos que pretendem entrar na Europa para realização do sonho de bem-estar
e vida condigna. São vedações de arame farpado, sensores de ruído e movimento,
câmaras e torres de vigia cujo custo ficou em 30 milhões de euros, financiados
pela UE (União Europeia), que não tem
dinheiro nem vontade política para aguentar a Grécia no Euro.
Por seu turno, no Médio Oriente, Israel continua a
construir, a manter e a reforçar um muro de cimento armado e aço, com vedações
eletrificadas e valas de proteção – a chamada “Barreira de Segurança”. Os
palestinianos, que se veem progressivamente cercados, dão-lhe o nome de “muro
do apartheid”. Se for concluído (faltam cerca de 30%), terá 810 km. E será um móbil de excelente nível
para continuar o conflito bélico israelo-palestiniano.
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Agora,
vem a Hungria proceder à construção de um muro para travar imigrantes – ou
melhor, impedir a entrada dos milhares de migrantes que percorrem a perigosa
rota ocidental balcânica, maioritariamente sírios que fogem da guerra – que se
estenderá por 175 km ao longo da fronteira com a Sérvia e terá em toda a sua
extensão uma altura de quatro metros. A Hungria, como lhe convém, confunde
refugiados com migrantes!
O novo
pacote de leis antimigração, aprovado recentemente no Parlamento húngaro, permitirá
ao país, segundo as pretensão governamentais, “controlar” o crescente fluxo de
imigração dos últimos meses, impondo ainda a aceleração da avaliação dos
pedidos de asilo e a limitação das possibilidades de recurso. O ministro do
Interior, Sandor Pinter, justificou-se, dizendo que “a Hungria está a ser
confrontada com a maior vaga de migrantes da sua história e as suas capacidades
acusam uma sobrecarga de 130%”. Segundo o governante, o objetivo da nova
legislação é facilitar a identificação seletiva “entre os migrantes que
precisam realmente de proteção e os que são migrantes económicos”.
A legislação,
aprovada com 151 votos a favor e 41 contra, contou com o apoio do partido no
Governo, o Fidesz, e do Jobbik, conotado com a extrema direita. Contudo, a medida
que está a causar mais impacto é a autorização da construção do muro de
separação da Sérvia, a sul, para o que a legislação prevê a expropriação das
terras onde a barreira será construída.
Por outro
lado, as medidas, que entrarão em vigor a partir de agosto, focam-se também no
procedimento da requisição de asilo. A lei impõe a redução do período para avaliação
dos pedidos, a limitação das possibilidades de recurso, o aumento do poder das
autoridades para deter imigrantes “indesejados” e ainda a rejeição dos pedidos
de asilo daqueles que tenham passado por países considerados “seguros”, como a
Sérvia, a Macedónia, a Bulgária e a Grécia.
De acordo
com fonte governamental, espera-se que apenas “algumas dúzias ou, no máximo,
poucas centenas” de requerentes de asilo sejam aceites no futuro; e as novas
regras nos pedidos de asilo cumprem os requisitos da Convenção das Nações
Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, e, com elas, a Hungria irá
lidar “mais facilmente” com a imigração crescente vinda do Sul. O Governo não
resiste às comparações e, nesse sentido, afirmou que este ano já entraram no
país perto de 72 mil migrantes, um número significativo se comparado com os 43 mil
que chegaram à Hungria durante os 12 meses de 2014.
Seguiram-se
várias reações negativas, em especial, contra o Governo de Viktor Orbán.
Babar
Baloch, da Agência da ONU para os Refugiados, referiu que os políticos húngaros
estão a descrever “erradamente” uma “crise de refugiados [...] como uma crise
de migração”, explicando que as especificidades da situação atual se devem ao
aumento dos conflitos armados e, por isso, ao aumento do número dos refugiados
que procuram a segurança europeia. “Oitenta por cento destas pessoas estão a
fugir da guerra.”
Por
seu turno, a Sérvia mostrou-se descontente com o anúncio da construção do muro.
Porém, o recente relatório da AI (Amnistia Internacional) demonstra a falta de vontade política
de Belgrado em receber imigrantes e acusa a polícia sérvia de “agressões” e
“extorsões” contra os que vão chegando ao país. Assim, a barreira física entre
Hungria e Sérvia aumentará o número de migrantes no país, vindos da Grécia e da
Macedónia.
Não
obstante, o Governo húngaro quis “descansar” o aliado do Sul. Janos Lazar, do
gabinete do primeiro-ministro, disse à imprensa húngara que o seu país “precisa
da Sérvia” e quer “manter e reforçar a aliança”. Nas suas palavras, o muro “é temporário”,
dependendo a sua existência de uma “solução definitiva” por parte da Europa.
Do lado
da UE, a primeira reação surgiu da ALDE (Aliança dos Liberais e
Democratas pela Europa).
Cecilia Wikström, porta-voz para as Migrações deste grupo do Parlamento
Europeu, em comunicado, exige uma reação imediata da Comissão Europeia à nova
legislação do Fidesz. As novas medidas são, para a ALDE, “inaceitáveis”,
“xenófobas” e “contrárias às leis europeias”. Este grupo parlamentar, muito
crítico para com Orbán, acusa-o de estar a “transformar a Hungria numa
‘mini-Rússia’” e de liderar um “regime” que “não respeita os valores
fundamentais europeus”. Por isso, é necessário que a UE “reaja imediatamente” e
“ponha pressão” na Hungria “antes que seja tarde de mais”. (cf
António Saraiva Lima,
In Público, de 09.07)
***
Porém, há muitos outros muros de betão, arame, aço e o
que mais se invente. Mas o pior do muro não é o muro em si, mas os muros
imateriais que geram, aprofundam e alimentam a desigualdade, a injustiça, a
exploração e o medo. E contra esse tipo de muro é difícil encontrar
instrumentos de desbaste e demolição, a não ser a vontade lúcida do homem. E a
União Europeia, fiel ao seu projeto inicial, devia dar o tom e o exemplo.
2015.07.13 –
Louro de Carvalho
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