quarta-feira, 22 de julho de 2015

A raiar a delação e a perspetiva inquisitorial

A Comunicação Social deu, há quase oito dias, conta à opinião pública de que uma denúncia, através de um blogue anónimo, de abusos sexuais por um membro do clero e pedofilia, que se propagou nas redes sociais, levou a católica hierarquia coimbrã a pedir mais informações via internet e que, por consequência, a PJ (Polícia Judiciária) iniciara a conveniente investigação, dado tratar-se de crime público.
No comunicado adrede divulgado na Net, a diocese de Coimbra pede a quem tiver informações sobre situações concretas [abuso de menores por membro do clero] que se dirija ao padre vigário-geral através dos contactos ali especificados e identificados, designadamente um telemóvel e um e-mail.
O referido vigário-geral justifica-se:
“Demos conta de uma denúncia anónima que se avolumou em muito pouco tempo e, por essa razão, tivemos a iniciativa de apresentar publicamente essa informação e de esclarecer as suspeitas”.
É uma queixa recente, embora o caso tenha dois anos, mas foi o facto de rapidamente ter transbordado as paredes da casa episcopal e ser objeto de comentários locais que levou a hierarquia da Igreja Católica de Coimbra a apelar à denúncia de casos de pedofilia, através daquele comunicado no passado dia 16 de julho.
O hierarca esclarece que têm conhecimento de um caso, sabem quem é o alegado abusador, mas que não tomam medidas enquanto não tiverem os resultados do inquérito interno. Porém, adiantou que se iniciará “a investigação o mais rápido possível”, assegurou que o comunicado fora “o primeiro passo” e sublinhou o desejo de “total transparência e de boa vontade em colaborar com as autoridades e em apoiar as eventuais vítimas”.
Embora não tenha sido feita queixa na PJ, a mesma polícia de investigação criminal, depois de conhecer o comunicado contactou as estruturas da diocese.
Foi recordado que, enquanto crime público, o abuso sexual de menores não depende de queixa, pelo que a Polícia Judiciária “vai iniciar uma investigação” ao caso. Todavia, a Comunicação Social que reportava o caso declarava que nem a PJ nem a diocese tinham recebido qualquer denúncia.
O padre vigário geral não explicou se os factos relatados são tão evidentes que justifiquem o apelo à denúncia. E, mesmo confrontado com o facto de ter sido lançado um alerta antes da confirmação da veracidade das queixas, aduziu o respeito pelas diretrizes da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), que seguem a linha do Vaticano, encimada pelo Papa Francisco, para quem “a preocupação pela segurança dos menores é uma prioridade para a Igreja”.
***
Ora, a CEP aprovou em abril de 2012 as “diretrizes referentes ao tratamento dos casos de abuso sexual de menores por parte de membros do clero ou praticados no âmbito da atividade de pessoas jurídicas canónicas”. Também estabelece que, “em face da notícia de verificação de indícios ou evidências de situações de abuso de menores e uma vez obtido o conselho de técnicos habilitados, deverá ser feita uma avaliação da situação relatada, ouvindo os denunciantes, a eventual vítima e o visado”. Só depois serão qualificados os factos em face do direito canónico e da jurisdição portuguesa para tomar medidas.
Face ao sucedido em concreto, os responsáveis da CEP não comentaram a decisão da diocese de Coimbra, salientando que as dioceses têm total autonomia.
***
A gravidade do tema impõe uma reflexão tão compreensiva como crítica. Com efeito, qualquer pessoa de bom senso tem de qualificar inequivocamente o abuso sexual de menores e, sobretudo, a pedofilia como um dos crimes mais sensíveis do ponto de vista ético, físico, psíquico e social (Contudo, mal haja quem atribuiu um vocábulo tão bonito – pedofilia, a amizade pela criança – a um crime tão hediondo!). É também óbvio que o membro do clero que sucumbe à tentação de cometer um crime destes coloca-se na direção totalmente oposta ao ser sacerdotal e à missão ministerial de que está incumbido e, pelo menos em tese, merece especial censura.
Todavia, nem por isso nem por se tratar de crime público, podem os hierarcas tomar legítima e facilmente as atitudes plausíveis para a opinião pública ou, como sói dizer-se, politicamente corretas. E não podem meter no mesmo saco pedofilia e abuso sexual de menores.
É certo que o caso do padre que se tenta a abusar de crianças antes dos 12 anos delas (pedofilia) ou de adolescentes acima dos 12 anos (abuso sexual de menores) e consuma essa tentação, não se resolve com a mudança de paróquia ou de serviço em que tenha de contactar com menores. Limita-se a mudar de ambiente, que não de tendência e provavelmente de hábitos.
Porém, conhecido o caso exclusiva ou principalmente pelo seu bispo ou por quem faz as suas vezes, será lícito e, sobretudo, evangélico entregá-lo ao poder judicial civil (no sentido de não eclesiástico)? Se sim, onde e/ou como fica a relação de confiança ou de reserva estabelecida eclesialmente entre o bispo (ou seus colaboradores imediatos ou seus vigários no terreno) e os sacerdotes? Ora, é verdade que alguns padres, em vez de se tornarem a coroa de louros do seu bispo e da nossa Igreja, se constituem em sua verdadeira coroa de espinhos. Porém, quando um dos qualificados servidores da Igreja e colaboradores do bispo cai em desgraça, torna-se osso que todos querem derriçar.
É certo que pedofilia e abuso sexual de menores são crimes públicos. Mas, então, porque não se instruem as pessoas lesadas ou os responsáveis diretos por elas a fazer a respetiva denúncia às autoridades judiciais? Terão mesmo de ser os bispos ou seus colaboradores imediatos a fazê-lo? Advogados, médicos e jornalistas (para não falar de outros profissionais) estão vinculados pelo sigilo profissional. Não estão os bispos e os seus colaboradores também obrigados ao sigilo sacramental e extrassacramental, desde que se trate do foro interno? Com que moral se entrega um padre ao poder judicial civil e depois se vai a correr fornecer-lhe apoio moral e/ou psicológico e a solidariedade em nome da Igreja?
É claro que, entregue um sacerdote, como qualquer pessoa, ao poder judicial compete à Igreja através dos seus servidores prestar aquele apoio e aquela solidariedade, mas não lhes é decente criar, por sua iniciativa, tais situações, com não é lícito rezar para que haja sempre pobres a fim de eu ter oportunidade de exercer a caridade (?!).
Não posso, por outro lado, aceitar que perante fumos anónimos, se faça, através de comunicado público, o apelo à denúncia à autoridade eclesiástica, disponibilizando telemóvel e e-mail. Seria prudente e eficaz estabelecer, através dos competentes agentes pastorais, uma vigilância de proximidade, acompanhamento e diálogo junto de quem surjam fundadas suspeitas. De resto, o espelhado no aludido comunicado mais se assemelha (não cabe julgar intenções) ao regime de denúncia vigente nos tempos inquisitoriais eclesiásticos (de cariz medieval, mesmo que posterior) ou políticos (de partido único totalitário). Só falta fazer a vigilância através de agente infiltrado tal como os fâmulos do Santo Ofício. Bem me lembro de que a Igreja não castigava pela fogueira nem pela tortura, apenas relaxava os relapsos ao braço secular. Que eufemismo para alegadamente seguir os traços diretivos do Papa Francisco!
Acolham-se as vítimas que se dirijam à Igreja; reorganizem-se os tribunais eclesiásticos para infligir nos casos comprovados as penas disponíveis em Igreja, através de todas as garantias de defesa e de recurso (com a competente assistência jurídica) e excluam-se do exercício do ministério sacerdotal os que não querem regenerar-se. Não é isto que Francisco está a fazer, criando um tribunal para julgamento dos altos eclesiásticos que incorrem comprovadamente em crimes de abuso sexual de menores? Ademais, as autoridades eclesiásticas, ao depararem com os seus clérigos nas barras dos tribunais (não a atirar para lá com eles), devem colaborar com a Justiça, mas também zelar para que lhes sejam criadas todas as garantias de defesa e recurso, presumindo a inocência até haver decisão condenatória transitada em julgado e presumindo que efetivamente se fará justiça.
***
Deve também a autoridade eclesiástica estar precavida para duas circunstâncias. Primeiro, apesar de serem praticados graves crimes de ordem sexual por membros do clero e apesar de se tratar de crimes públicos, eles são de prova difícil – não aconteça que homens mais expostos venham a ser objeto de justiça rápida e fácil, quando para outrem é lenta e ineficaz. Prova fácil poderá acontecer quando se encontram iniludíveis testemunhos que persistem sobre a erosão do tempo, como fotos, videogramas, registos Internet – sujeitos à devida hermenêutica. Segundo, é preciso estar com a atenção à onda da pretensão quer do pedido de indemnizações, a pretexto de factos dúbios ou eventualmente mesmo inventados (Não estamos a inventar!), à tentação da generalização, à utilização de alegados abusos sexuais como arma de arremesso até por parte de colegas (já houve casos públicos destes) e à convicção fácil de que há pessoas irrecuperáveis (de que é preciso fazer listas e torná-las acessíveis, com o quis fazer o Governo). Quem trabalha nesta sociedade de conflito e de hipocrisia bem sabe que ao lado de verdadeiras vítimas vivem autênticos caluniadores e oportunistas!
***
Finalmente, parece-me que há que se reler o capítulo 18 do Evangelho de Mateus, de que se transcrevem duas passagens:
“Se o teu irmão pecar, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te der ouvidos, terás ganho o teu irmão. Se não te der ouvidos, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas. Se ele se recusar a ouvi-las, comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a atender à própria Igreja, seja para ti como um pagão ou um cobrador de impostos. Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu.”. (Mt 18,15-18).
+++
Então, Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: ‘Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?’. Jesus respondeu: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’.” (Mt 18,21-22; cf Lc 17,3-4).
***
Estabelece Cristo, na primeira passagem transcrita, um percurso gradativo de correção fraterna: discreta, a sós; aberta a testemunhas; face à Igreja/assembleia (que não o tribunal – implacável, frio e cego); e à consideração do irmão como um publicano (pecador público, cobrador de impostos) ou pagão (que não acredita no Deus de Israel, embora possa acreditar noutros deuses). Ora, neste percurso, não está prevista a relaxação ao braço secular, ao tribunal (que, na perspetiva de Cristo, deveria ser o último recurso). O v/ 18 deveria ser suficiente. Porém, tem-se abusado dele, interditando, proscrevendo, excomungando, anatematizando…
Apressadamente pensam muitos que passar a ter o irmão impenitente como pagão ou como publicano significará lançá-lo ao desprezo, abandoná-lo, excomungá-lo, fazer-lhe guerra. Parece, ao invés, que Jesus pretende o redobro de atenção, de esforço e a invenção de novos métodos para conquistar o irmão, ou seja, a não desistência. Talvez valha a pena reler Mt 18,12-13 e confrontar este texto e o próprio coração humano com o referido em Lc 15,1-32 (parábolas da misericórdia):
“Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se tresmalhar, não deixará as noventa e nove no monte, para ir à procura da tresmalhada? E, se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo: alegra-se mais com ela do que com as noventa e nove que não se tresmalharam.” (Mt 18,12-13).
+++
Quanto à necessidade de perdoar sempre (setenta vezes sete – Mt 18,21-22), basta anotar que, do lado de Cristo, quando humanamente já nada mais havia a fazer, Ele não desistiu, mas rezou: Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem! (Lc 23,34).
E o diácono Estêvão, o protomártir, seguiu as pegadas de Jesus, pois no auge do martírio por lapidação, rezou: Senhor, não os condenes por este pecado! (At 7,60).
Em que ficamos?

2015.07.22 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário