A Comunicação Social deu, há quase oito dias, conta
à opinião pública de que uma denúncia, através de um blogue anónimo, de abusos
sexuais por um membro do clero e pedofilia, que se propagou nas redes sociais,
levou a católica hierarquia coimbrã a pedir mais informações via internet e
que, por consequência, a PJ (Polícia Judiciária)
iniciara a conveniente investigação, dado tratar-se de crime público.
No comunicado adrede
divulgado na Net, a diocese de Coimbra pede a quem tiver informações sobre
situações concretas [abuso de menores por membro do clero] que se dirija ao padre vigário-geral
através dos contactos ali especificados e identificados, designadamente um
telemóvel e um e-mail.
O referido vigário-geral
justifica-se:
“Demos conta de uma
denúncia anónima que se avolumou em muito pouco tempo e, por essa razão,
tivemos a iniciativa de apresentar publicamente essa informação e de esclarecer
as suspeitas”.
É uma queixa recente,
embora o caso tenha dois anos, mas foi o facto de rapidamente ter transbordado
as paredes da casa episcopal e ser objeto de comentários locais que levou a hierarquia
da Igreja Católica de Coimbra a apelar à denúncia de casos de pedofilia,
através daquele comunicado no passado dia 16 de julho.
O hierarca esclarece que
têm conhecimento de um caso, sabem quem é o alegado abusador, mas que não tomam
medidas enquanto não tiverem os resultados do inquérito interno. Porém,
adiantou que se iniciará “a investigação o mais rápido possível”, assegurou que
o comunicado fora “o primeiro passo” e sublinhou o desejo de “total
transparência e de boa vontade em colaborar com as autoridades e em apoiar as
eventuais vítimas”.
Embora não tenha sido
feita queixa na PJ, a mesma polícia de investigação criminal, depois de
conhecer o comunicado contactou as estruturas da diocese.
Foi recordado que, enquanto
crime público, o abuso sexual de menores não depende de queixa, pelo que a
Polícia Judiciária “vai iniciar uma investigação” ao caso. Todavia, a
Comunicação Social que reportava o caso declarava que nem a PJ nem a diocese tinham
recebido qualquer denúncia.
O padre vigário geral não
explicou se os factos relatados são tão evidentes que justifiquem o apelo à
denúncia. E, mesmo confrontado com o facto de ter sido lançado um alerta antes
da confirmação da veracidade das queixas, aduziu o respeito pelas diretrizes da
CEP (Conferência
Episcopal Portuguesa), que seguem a linha do Vaticano, encimada pelo Papa Francisco, para
quem “a preocupação pela segurança dos menores é uma prioridade para a Igreja”.
***
Ora, a CEP aprovou em
abril de 2012 as “diretrizes referentes ao tratamento dos casos de abuso sexual
de menores por parte de membros do clero ou praticados no âmbito da atividade
de pessoas jurídicas canónicas”. Também estabelece que, “em face da notícia de
verificação de indícios ou evidências de situações de abuso de menores e uma
vez obtido o conselho de técnicos habilitados, deverá ser feita uma avaliação
da situação relatada, ouvindo os denunciantes, a eventual vítima e o visado”.
Só depois serão qualificados os factos em face do direito canónico e da
jurisdição portuguesa para tomar medidas.
Face ao sucedido em
concreto, os responsáveis da CEP não comentaram a decisão da diocese de
Coimbra, salientando que as dioceses têm total autonomia.
***
A gravidade do tema impõe
uma reflexão tão compreensiva como crítica. Com efeito, qualquer pessoa de bom
senso tem de qualificar inequivocamente o abuso sexual de menores e, sobretudo,
a pedofilia como um dos crimes mais sensíveis do ponto de vista ético, físico,
psíquico e social (Contudo, mal haja quem atribuiu um vocábulo tão bonito –
pedofilia, a amizade pela criança – a um crime tão hediondo!). É também óbvio que o
membro do clero que sucumbe à tentação de cometer um crime destes coloca-se na
direção totalmente oposta ao ser sacerdotal e à missão ministerial de que está
incumbido e, pelo menos em tese, merece especial censura.
Todavia, nem por isso nem
por se tratar de crime público, podem os hierarcas tomar legítima e facilmente
as atitudes plausíveis para a opinião pública ou, como sói dizer-se,
politicamente corretas. E não podem meter no mesmo saco pedofilia e abuso
sexual de menores.
É certo que o caso do
padre que se tenta a abusar de crianças antes dos 12 anos delas (pedofilia) ou de adolescentes
acima dos 12 anos (abuso sexual de menores) e consuma essa tentação, não se resolve com a
mudança de paróquia ou de serviço em que tenha de contactar com menores.
Limita-se a mudar de ambiente, que não de tendência e provavelmente de hábitos.
Porém, conhecido o caso
exclusiva ou principalmente pelo seu bispo ou por quem faz as suas vezes, será
lícito e, sobretudo, evangélico entregá-lo ao poder judicial civil (no sentido de não
eclesiástico)?
Se sim, onde e/ou como fica a relação de confiança ou de reserva estabelecida
eclesialmente entre o bispo (ou seus colaboradores imediatos ou seus vigários no terreno) e os sacerdotes? Ora, é
verdade que alguns padres, em vez de se tornarem a coroa de louros do seu bispo
e da nossa Igreja, se constituem em sua verdadeira coroa de espinhos. Porém, quando
um dos qualificados servidores da Igreja e colaboradores do bispo cai em
desgraça, torna-se osso que todos querem derriçar.
É certo que pedofilia e
abuso sexual de menores são crimes públicos. Mas, então, porque não se instruem
as pessoas lesadas ou os responsáveis diretos por elas a fazer a respetiva
denúncia às autoridades judiciais? Terão mesmo de ser os bispos ou seus
colaboradores imediatos a fazê-lo? Advogados, médicos e jornalistas (para não falar de outros
profissionais)
estão vinculados pelo sigilo profissional. Não estão os bispos e os seus
colaboradores também obrigados ao sigilo sacramental e extrassacramental, desde
que se trate do foro interno? Com que moral se entrega um padre ao poder
judicial civil e depois se vai a correr fornecer-lhe apoio moral e/ou
psicológico e a solidariedade em nome da Igreja?
É claro que, entregue um
sacerdote, como qualquer pessoa, ao poder judicial compete à Igreja através dos
seus servidores prestar aquele apoio e aquela solidariedade, mas não lhes é
decente criar, por sua iniciativa, tais situações, com não é lícito rezar para
que haja sempre pobres a fim de eu ter oportunidade de exercer a caridade (?!).
Não posso, por outro
lado, aceitar que perante fumos anónimos, se faça, através de comunicado
público, o apelo à denúncia à autoridade eclesiástica, disponibilizando
telemóvel e e-mail. Seria prudente e eficaz estabelecer, através dos
competentes agentes pastorais, uma vigilância de proximidade, acompanhamento e diálogo
junto de quem surjam fundadas suspeitas. De resto, o espelhado no aludido
comunicado mais se assemelha (não cabe julgar intenções) ao regime de denúncia vigente nos tempos
inquisitoriais eclesiásticos (de cariz medieval, mesmo que posterior) ou políticos (de partido único
totalitário).
Só falta fazer a vigilância através de agente infiltrado tal como os fâmulos do
Santo Ofício. Bem me lembro de que a Igreja não castigava pela fogueira nem
pela tortura, apenas relaxava os relapsos ao braço secular. Que eufemismo para
alegadamente seguir os traços diretivos do Papa Francisco!
Acolham-se as vítimas que
se dirijam à Igreja; reorganizem-se os tribunais eclesiásticos para infligir
nos casos comprovados as penas disponíveis em Igreja, através de todas as
garantias de defesa e de recurso (com a competente assistência jurídica) e excluam-se do
exercício do ministério sacerdotal os que não querem regenerar-se. Não é isto
que Francisco está a fazer, criando um tribunal para julgamento dos altos
eclesiásticos que incorrem comprovadamente em crimes de abuso sexual de
menores? Ademais, as autoridades eclesiásticas, ao depararem com os seus
clérigos nas barras dos tribunais (não a atirar para lá com eles), devem colaborar com a Justiça, mas
também zelar para que lhes sejam criadas todas as garantias de defesa e
recurso, presumindo a inocência até haver decisão condenatória transitada em
julgado e presumindo que efetivamente se fará justiça.
***
Deve também a autoridade
eclesiástica estar precavida para duas circunstâncias. Primeiro, apesar de
serem praticados graves crimes de ordem sexual por membros do clero e apesar de
se tratar de crimes públicos, eles são de prova difícil – não aconteça que
homens mais expostos venham a ser objeto de justiça rápida e fácil, quando para
outrem é lenta e ineficaz. Prova fácil poderá acontecer quando se encontram iniludíveis
testemunhos que persistem sobre a erosão do tempo, como fotos, videogramas,
registos Internet – sujeitos à devida hermenêutica. Segundo, é preciso estar
com a atenção à onda da pretensão quer do pedido de indemnizações, a pretexto
de factos dúbios ou eventualmente mesmo inventados (Não estamos a inventar!), à tentação da
generalização, à utilização de alegados abusos sexuais como arma de arremesso
até por parte de colegas (já houve casos públicos destes) e à convicção fácil de que há pessoas
irrecuperáveis (de que é preciso fazer listas e torná-las acessíveis, com o quis
fazer o Governo). Quem trabalha nesta sociedade de conflito e de hipocrisia bem
sabe que ao lado de verdadeiras vítimas vivem autênticos caluniadores e
oportunistas!
***
Finalmente, parece-me que
há que se reler o capítulo 18 do Evangelho de Mateus, de que se transcrevem duas
passagens:
“Se o teu irmão pecar, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te der
ouvidos, terás ganho o teu irmão. Se não te der ouvidos, toma contigo mais
uma ou duas pessoas, para que toda a questão fique resolvida pela
palavra de duas ou três testemunhas. Se ele se recusar a ouvi-las,
comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a atender à própria Igreja, seja
para ti como um pagão ou um cobrador de impostos. Em verdade vos digo:
Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra
será desligado no Céu.”. (Mt 18,15-18).
+++
“Então,
Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: ‘Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas
vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?’. Jesus
respondeu: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’.” (Mt 18,21-22; cf Lc 17,3-4).
***
Estabelece
Cristo, na primeira passagem transcrita, um percurso gradativo de correção
fraterna: discreta, a sós; aberta a testemunhas; face à Igreja/assembleia (que não o tribunal – implacável, frio e cego); e
à consideração do irmão como um publicano (pecador público, cobrador de impostos) ou pagão (que não acredita no Deus de Israel, embora possa
acreditar noutros deuses). Ora, neste percurso, não está prevista a relaxação
ao braço secular, ao tribunal (que,
na perspetiva de Cristo, deveria ser o último recurso). O
v/ 18 deveria ser suficiente. Porém, tem-se abusado dele, interditando, proscrevendo,
excomungando, anatematizando…
Apressadamente
pensam muitos que passar a ter o irmão impenitente como pagão ou como publicano
significará lançá-lo ao desprezo, abandoná-lo, excomungá-lo, fazer-lhe guerra. Parece,
ao invés, que Jesus pretende o redobro de atenção, de esforço e a invenção de
novos métodos para conquistar o irmão, ou seja, a não desistência. Talvez valha
a pena reler Mt 18,12-13 e confrontar este texto e o próprio coração humano com
o referido em Lc 15,1-32 (parábolas
da misericórdia):
“Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas e
uma delas se tresmalhar, não deixará as noventa e nove no monte, para ir à
procura da tresmalhada? E,
se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo: alegra-se mais com ela do que com
as noventa e nove que não se tresmalharam.” (Mt 18,12-13).
+++
Quanto
à necessidade de perdoar sempre (setenta vezes sete – Mt 18,21-22), basta anotar que, do lado de Cristo, quando humanamente
já nada mais havia a fazer, Ele não desistiu, mas rezou: Pai, perdoa-lhes, porque eles não
sabem o que fazem! (Lc
23,34).
E o diácono
Estêvão, o protomártir, seguiu as pegadas de Jesus, pois no auge do martírio
por lapidação, rezou: Senhor, não os condenes por este pecado!
(At 7,60).
Em que
ficamos?
2015.07.22 – Louro de Carvalho
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