Muitas
e muitos já fizeram ouvir a sua voz e fizeram deslizar a sua pena nos encómios merecidos
e justos ao perfil e a toda a ação de Maria de Jesus Barroso Soares,
recentemente falecida no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa e sepultada no
Cemitério dos Prazeres, depois da missa exequial na igreja do Campo Grande.
Estava disposto a
não escrever algo, pelo facto de nada ter a acrescentar ao que tem sido dito e
escrito – repito-me – com toda a justeza. Entretanto, no termo do programa “Eixo
do Mal”, de hoje, na SIC Notícias, a pedido do moderador, a realização mostrou
a ilustre finada a declamar o poemeto “A paz sem vencedor e sem vencidos”, de Sophia
de Mello Breyner Andresen, in Dual
(1972). E aí fiquei com a tentação de ligar num só feixe Maria Barroso e Sophia
de Mello Breyner ao texto litúrgico da celebração eucarística que vem logo a
seguir ao embolismo,
“Senhor
Jesus Cristo, que dissestes aos vossos Apóstolos, Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz, não olheis aos nossos
pecados, mas à fé da vossa Igreja e dai-lhe a união e a paz, como é da vossa
vontade. Vós que sois Deus com o Pai, na unidade do Espírito Santo”,
e ao texto
do Evangelho de João
“Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o
mundo, que Eu vo-la dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acobarde.” (Jo
14,27).
Ora, à luz desta
perspetiva textual, é possível construir a paz, é desejável obter a paz. Não é,
porém, desejável edificar uma paz que resulte unicamente do desastre da guerra (essa traz inexoravelmente) vencedores e vencidos, dado que resulta da resolução
– habitualmente má – de interesses em conflito.
Quando no
sermão da montanha o Mestre proclamou o código das bem-aventuranças com o axioma
“Felizes os construtores da paz, porque
serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9), não propunha a paz de que resultassem os vingadores, os escravizantes, os
exploradores os vencedores com direito, só eles, a escreverem a História. É,
por isso que as bem-aventuranças têm de ser escutadas no seu todo. E o outro
axioma “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” garante
esta paz “sem vencedor e sem vencidos”, porque ela resultará da justiça, mas da
justiça ao estilo de Deus, que garanta a todos a satisfação da dignidade
humana, que proveja às necessidades de cada um, que satisfaça as justas
compensações pelo trabalho e respeite aquilo que legitimamente pertença a cada um,
sem desfavor dos demais.
***
Por outro lado,
uma leitura atenta do poemeto de Sophia permite-nos outras ilações. Vejamos:
A paz sem
vencedor e sem vencidos
Dai-nos
Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos Que o tempo que nos deste seja um novo Recomeço de esperança e de justiça. Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência Para podermos ler melhor a vida Para entendermos vosso mandamento Para que venha a nós o vosso reino Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos |
Fazei Senhor que a paz seja de
todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade Dai-nos a paz que nasce da justiça Dai-nos a paz chamada liberdade Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos A paz sem vencedor e sem vencidos
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dual (1972)
|
Sophia de Mello Breyner, utilizando intertextos
religiosos, alude metaforicamente às situações de opressão e de injustiça que
proliferavam – e ainda proliferam – entre nós e faz, em jeito de oração, o
apelo lancinante à “paz sem vencedor e sem vencidos”, a que “nasce da verdade”,
“da justiça”, da própria “liberdade”, de modo que o “reino” de Deus seja
instituído entre nós, na prática enaltecida da transparência e da lisura de caráter.
Será nesse tempo “novo” que o povo se levantará orientado pela luz e calor da
“esperança e justiça”; e paz e a liberdade serão um e mesmo elemento a dirigir
os homens.
Para que tal suceda urge que “a paz seja de todos”,
que todos e cada um dos seres humanos consigam “ler e reler melhor a vida” e
entendam o “mandamento” divino e o assumam. Fica então implícito na ótica andreseniana,
que é necessário abolir a situação de injustiça que domina a sociedade, mas que
tal só será frutífero se uma situação de injustiça não for substituída por
outra.
Este é um dos melhores textos a explicitar como a escrita
pode constituir um ato específico de solidariedade humana e social e um registo
credível da relação, que se pretende ecológica e ecoeconómica, entre a criação
e a sociedade. Além disso, o ato da escrita tem uma dupla faceta: nasce do
confronto do escritor com a sociedade e procura projetar-se nessa mesma sociedade
que lhe deu origem e até interferir nela e no seu devir, estabelecendo uma
circularidade ou, como lhe chamou Roland Barthes, um “transfer tragique” entre o texto, o escritor e a sociedade.
Neste âmbito, a poesia assume, de forma eminente, para
o homem da sua época a dimensão de “um ato total”, a partir do qual é possível
relacionar a situação do próprio homem com o contexto da sua criação poética.
O poemeto “A paz sem vencedor e sem vencidos”
corporiza exemplarmente a busca e o achamento de uma lei prioritária que se
concretiza na poesia andreseniana também em deslocamento e apropriação para uma
visão do mundo mesclada com o cristianismo ínsito na sua pureza evangélica, tão
forte nos seus versos, na demanda, por vezes, de preceitos cristãos de equidade
e compaixão, bem como na tentativa de refletir sobre trechos bíblicos, todos
como uma transposição e exigência de uma justiça imutável. Este posicionamento
pode ser visto no poemeto cujos versos compõem uma espécie de prece e pedido –
estribilhado por um refrão temático, A paz sem vencedor e sem vencidos – como podemos ver sobretudo na penúltima
das suas estrofes.
Entender assim o mandamento
bíblico da construção da paz e do pedido deste dom constitui uma maneira
própria que Sophia de Mello Breyner Andresen adota para assumir o preceito como
uma regência das relações mais básicas humanas interpessoais e que deve ser
tema recorrente da ação educativa. A justiça fundamental, o alicerce
estuturante sobre o qual se constrói uma obra é reflexo de uma lei de thémis; é a justiça da lei eterna, do
direito natural, da vontade divina, aquela que uma consciência ôntica e ética presente
nos versos de Sophia pretende devolver ao mundo, ao âmbito da coletividade, em
forma de poema, para que possa também essa ensinar com a sua justeza a justiça
à cidade dos homens.
***
Maria
Barroso, a quem, segundo ela revelou, ainda ensinaram os rudimentos da doutrina
cristã e algumas orações, viveu num mundo dominado pela ciência, cultura e arte
(nomeadamente
a arte dramática). Quando
se debateu com a dúvida existencial da existência de Deus, alguém lhe sussurrou
que Deus gostaria de que ela seguisse, antes de mais, a sua consciência (era
uma voz bem avisada num tempo bem longínquo do Concílio Vaticano II). Com efeito, a Constituição Pastoral
da Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium
et Spes, ensina:
“A
consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra
a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à
consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de
Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos
aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver
tantos problemas morais que surgem na vida individual e social.”.
Neste
sentido, Maria entregou-se aos estudos e ao movimento associativo estudantil,
ao exercício profissional da arte dramática como atriz. Impedida de representar
pelo regime, ainda se dedicou à lecionação. Proibida de ensinar, aplicou-se à logística,
por vezes difícil e árdua, do Colégio Moderno, fundado pelo sogro e ainda hoje
uma escola de referência. E, sem descurar a educação e o sustento em família, entrou
na luta política de oposição ao regime, na convicção de que nele residia
assinalável fonte de injustiça, opressão e exploração e, sobretudo, coarctação
da liberdade.
No
alvorecer conturbado da era democrática, foi o paladino discreto da construção
de pontes de paz interna – familiar, partidária e interpartidária – e da paz
externa (nomeadamente em Angola, Moçambique), nem sempre por caminho facilitado,
mas com mérito hoje reconhecido. Presidiu à Cruz Vermelha, a que deu um alor
revigorado e criou a fundação Pro
Dignitate (com o objetivo de prevenir a violência e
promover os direitos humanos “através de estudos científicos, de planeamento e
avaliação de medidas de prevenção e de outras ações dirigidas à defesa dos
referidos direitos”),
a que presidiu até ao fim dos seus dias.
O
seu empenhamento pelas grandes causas ganhou reforço e outro suporte quando,
por ocasião do grave acidente a que foi sujeito o filho João em Angola, se reencontrou
com o catolicismo e a tornou assídua no conhecimento doutrinal e na prática da
vida cristã.
***
Não
sei se António Costa, quando pronunciou o seu elogio fúnebre no Cemitério dos Prazeres,
tinha a consciência clara de que estava perante a nova Rainha Santa, a do século XXI, dado que salientou o papel de Maria
Barroso enquanto “a voz amiga, a presença incentivadora, o fator de agregação,
de união e paz entre todos, quer nos partidos, quer na vida”. Tanto assim era que,
recordando as divergências políticas entre militantes e Mário Soares, o líder
socialista lembra que “foi Maria de Jesus [Barroso] quem estendeu a mão e
ajudou a encontrar uma comunhão de alegria, unidade na luta e na partilha de
valores”.
Em
suma, alinhada com Sophia e inspirada na Bíblia e na vida por que lutou até à
queda fatal, declamou com mestria muitos poemas, fez política, foi educadora, mas
sobretudo viveu pela paz e morreu na paz.
Bem-aventurados os
construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus!
E
os filhos de Deus não morrem.
2015.07.12 – Louro de Carvalho
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