domingo, 12 de julho de 2015

Viveu pela paz, morreu na paz

Muitas e muitos já fizeram ouvir a sua voz e fizeram deslizar a sua pena nos encómios merecidos e justos ao perfil e a toda a ação de Maria de Jesus Barroso Soares, recentemente falecida no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa e sepultada no Cemitério dos Prazeres, depois da missa exequial na igreja do Campo Grande.
Estava disposto a não escrever algo, pelo facto de nada ter a acrescentar ao que tem sido dito e escrito – repito-me – com toda a justeza. Entretanto, no termo do programa “Eixo do Mal”, de hoje, na SIC Notícias, a pedido do moderador, a realização mostrou a ilustre finada a declamar o poemeto “A paz sem vencedor e sem vencidos”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dual (1972). E aí fiquei com a tentação de ligar num só feixe Maria Barroso e Sophia de Mello Breyner ao texto litúrgico da celebração eucarística que vem logo a seguir ao embolismo,
“Senhor Jesus Cristo, que dissestes aos vossos Apóstolos, Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz, não olheis aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja e dai-lhe a união e a paz, como é da vossa vontade. Vós que sois Deus com o Pai, na unidade do Espírito Santo”,
e ao texto do Evangelho de João
“Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acobarde.” (Jo 14,27).
Ora, à luz desta perspetiva textual, é possível construir a paz, é desejável obter a paz. Não é, porém, desejável edificar uma paz que resulte unicamente do desastre da guerra (essa traz inexoravelmente) vencedores e vencidos, dado que resulta da resolução – habitualmente má – de interesses em conflito.
Quando no sermão da montanha o Mestre proclamou o código das bem-aventuranças com o axioma “Felizes os construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9), não propunha a paz de que resultassem os vingadores, os escravizantes, os exploradores os vencedores com direito, só eles, a escreverem a História. É, por isso que as bem-aventuranças têm de ser escutadas no seu todo. E o outro axioma Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” garante esta paz “sem vencedor e sem vencidos”, porque ela resultará da justiça, mas da justiça ao estilo de Deus, que garanta a todos a satisfação da dignidade humana, que proveja às necessidades de cada um, que satisfaça as justas compensações pelo trabalho e respeite aquilo que legitimamente pertença a cada um, sem desfavor dos demais.
***
Por outro lado, uma leitura atenta do poemeto de Sophia permite-nos outras ilações. Vejamos:

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos




Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dual (1972)

Sophia de Mello Breyner, utilizando intertextos religiosos, alude metaforicamente às situações de opressão e de injustiça que proliferavam – e ainda proliferam – entre nós e faz, em jeito de oração, o apelo lancinante à “paz sem vencedor e sem vencidos”, a que “nasce da verdade”, “da justiça”, da própria “liberdade”, de modo que o “reino” de Deus seja instituído entre nós, na prática enaltecida da transparência e da lisura de caráter. Será nesse tempo “novo” que o povo se levantará orientado pela luz e calor da “esperança e justiça”; e paz e a liberdade serão um e mesmo elemento a dirigir os homens.
Para que tal suceda urge que “a paz seja de todos”, que todos e cada um dos seres humanos consigam “ler e reler melhor a vida” e entendam o “mandamento” divino e o assumam. Fica então implícito na ótica andreseniana, que é necessário abolir a situação de injustiça que domina a sociedade, mas que tal só será frutífero se uma situação de injustiça não for substituída por outra.
Este é um dos melhores textos a explicitar como a escrita pode constituir um ato específico de solidariedade humana e social e um registo credível da relação, que se pretende ecológica e ecoeconómica, entre a criação e a sociedade. Além disso, o ato da escrita tem uma dupla faceta: nasce do confronto do escritor com a sociedade e procura projetar-se nessa mesma sociedade que lhe deu origem e até interferir nela e no seu devir, estabelecendo uma circularidade ou, como lhe chamou Roland Barthes, um “transfer tragique” entre o texto, o escritor e a sociedade.
Neste âmbito, a poesia assume, de forma eminente, para o homem da sua época a dimensão de “um ato total”, a partir do qual é possível relacionar a situação do próprio homem com o contexto da sua criação poética.
O poemeto A paz sem vencedor e sem vencidos” corporiza exemplarmente a busca e o achamento de uma lei prioritária que se concretiza na poesia andreseniana também em deslocamento e apropriação para uma visão do mundo mesclada com o cristianismo ínsito na sua pureza evangélica, tão forte nos seus versos, na demanda, por vezes, de preceitos cristãos de equidade e compaixão, bem como na tentativa de refletir sobre trechos bíblicos, todos como uma transposição e exigência de uma justiça imutável. Este posicionamento pode ser visto no poemeto cujos versos compõem uma espécie de prece e pedido – estribilhado por um refrão temático, A paz sem vencedor e sem vencidos – como podemos ver sobretudo na penúltima das suas estrofes.
Entender assim o mandamento bíblico da construção da paz e do pedido deste dom constitui uma maneira própria que Sophia de Mello Breyner Andresen adota para assumir o preceito como uma regência das relações mais básicas humanas interpessoais e que deve ser tema recorrente da ação educativa. A justiça fundamental, o alicerce estuturante sobre o qual se constrói uma obra é reflexo de uma lei de thémis; é a justiça da lei eterna, do direito natural, da vontade divina, aquela que uma consciência ôntica e ética presente nos versos de Sophia pretende devolver ao mundo, ao âmbito da coletividade, em forma de poema, para que possa também essa ensinar com a sua justeza a justiça à cidade dos homens.
***
Maria Barroso, a quem, segundo ela revelou, ainda ensinaram os rudimentos da doutrina cristã e algumas orações, viveu num mundo dominado pela ciência, cultura e arte (nomeadamente a arte dramática). Quando se debateu com a dúvida existencial da existência de Deus, alguém lhe sussurrou que Deus gostaria de que ela seguisse, antes de mais, a sua consciência (era uma voz bem avisada num tempo bem longínquo do Concílio Vaticano II). Com efeito, a Constituição Pastoral da Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, ensina:
“A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social.”. 
Neste sentido, Maria entregou-se aos estudos e ao movimento associativo estudantil, ao exercício profissional da arte dramática como atriz. Impedida de representar pelo regime, ainda se dedicou à lecionação. Proibida de ensinar, aplicou-se à logística, por vezes difícil e árdua, do Colégio Moderno, fundado pelo sogro e ainda hoje uma escola de referência. E, sem descurar a educação e o sustento em família, entrou na luta política de oposição ao regime, na convicção de que nele residia assinalável fonte de injustiça, opressão e exploração e, sobretudo, coarctação da liberdade.
No alvorecer conturbado da era democrática, foi o paladino discreto da construção de pontes de paz interna – familiar, partidária e interpartidária – e da paz externa (nomeadamente em Angola, Moçambique), nem sempre por caminho facilitado, mas com mérito hoje reconhecido. Presidiu à Cruz Vermelha, a que deu um alor revigorado e criou a fundação Pro Dignitate (com o objetivo de prevenir a violência e promover os direitos humanos “através de estudos científicos, de planeamento e avaliação de medidas de prevenção e de outras ações dirigidas à defesa dos referidos direitos”), a que presidiu até ao fim dos seus dias.
O seu empenhamento pelas grandes causas ganhou reforço e outro suporte quando, por ocasião do grave acidente a que foi sujeito o filho João em Angola, se reencontrou com o catolicismo e a tornou assídua no conhecimento doutrinal e na prática da vida cristã.
***
Não sei se António Costa, quando pronunciou o seu elogio fúnebre no Cemitério dos Prazeres, tinha a consciência clara de que estava perante a nova Rainha Santa, a do século XXI, dado que salientou o papel de Maria Barroso enquanto “a voz amiga, a presença incentivadora, o fator de agregação, de união e paz entre todos, quer nos partidos, quer na vida”. Tanto assim era que, recordando as divergências políticas entre militantes e Mário Soares, o líder socialista lembra que “foi Maria de Jesus [Barroso] quem estendeu a mão e ajudou a encontrar uma comunhão de alegria, unidade na luta e na partilha de valores”.
Em suma, alinhada com Sophia e inspirada na Bíblia e na vida por que lutou até à queda fatal, declamou com mestria muitos poemas, fez política, foi educadora, mas sobretudo viveu pela paz e morreu na paz.
Bem-aventurados os construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus!
E os filhos de Deus não morrem.
2015.07.12 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário