É a terceira petição/invocação da oração
dominical, na qual pedimos ao Pai que una a nossa vontade à de seu Filho Jesus
para que se cumpra o seu desígnio de salvação na vida do mundo (cf CIC, 2860). Esta petição surge, pois, na oração emblemática dos discípulos, como
expressão do desejo e da esperança de que seja feita a vontade
de Deus. Pedimos a autêntica obediência para que se cumpra em cada um de
nós a vontade Deus como Cristo a cumpriu e como os anjos a cumprem no céu, ou
na terra quando Deus os envia em seu serviço.
E em que consiste a vontade de Deus Pai?
O Catecismo da Igreja Católica (CIC) explicita-o de forma clara:
“É vontade do nosso Pai ‘que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento
da verdade’ (1Tm 2,4).
Ele ‘usa de paciência [...], não querendo que ninguém se perca, mas que todos
se convertam’ (2Pe 3,9). O
seu mandamento, que resume todos os outros e nos diz toda a sua
vontade (cf Mt 18,14; 23,37-40), é que nos amemos uns aos outros como Ele nos
amou (cf Jo 13,34; 1Jo 3,3-7; Lc 10,25-37).” – CIC, 2822.
Alguns veem a expressão da esperança da
realização da vontade de Deus como um anexo à petição do advento do Reino de
Deus, configurando um pedido para que a terra esteja direta e manifestamente
sob o comando divino. Outros veem-na como um convite às pessoas para se
submeterem a Deus e aos seus ensinamentos (praeceptis salutaribus moniti et divina institutione formati).
Por outro lado, o n.º 2823 do CIC
refere-se à vontade de Deus como um mistério revelado pelo próprio Deus,
constante do plano divino a nosso respeito, e ao empenho que nós devemos ter na
realização desse projeto de Deus:
“Ele ‘manifestou-nos o mistério da sua vontade, segundo o beneplácito que
nele de antemão estabeleceu [...]: instaurar todas as coisas em Cristo [...].
Foi n’Ele também que fomos escolhidos como sua herança, predestinados de acordo
com o desígnio daquele que tudo opera de acordo com a decisão da sua vontade’ (Ef 1,9-11). Nós pedimos
com empenho que este plano benevolente se realize por completo na terra, como
já se cumpre no céu.”.
O termo grego θέλημα tanto significa vontade como desejo, projeto, finalidade. No
Evangelho, este pedido, “Faça-se a Vossa
vontade” (θέλημά σου), vem com o esclarecimento aditado, na terra, como no céu.
Assim sendo, a petição resulta uma frase ambígua, que pode, em grego, ser uma
símile, isto é, fazer a terra parecida com o céu; ou um paralelismo,
isto é, tanto no céu como na terra). Contudo, talvez a símile seja
uma significativa interpretação mais comum.
Faça-se a vossa vontade – Segundo La Biblia latinoamerica, este segmento
discursivo, que Jesus colocará no centro da sua oração no Horto (cf Mt 26,39), condena muitas orações em que pretendemos recolocar o papel de Deus
a nosso modo de ver. Se muitas pessoas creem que têm muita fé porque esperam
constantemente que Deus lhes solucione os problemas, os filhos de Deus, ao invés,
elevam para Ele o seu espírito para que a vontade divina passe a ser a sua vontade.
Na terra como no céu – esta precisão vale para a petição da vontade de Deus como também
para as petições anteriores, as atinentes ao Nome de Deus e ao Advento do
Reino. O segmento em causa recorda-nos que tudo o que acontece no universo
criado, sujeito ao tempo, depende de outro mundo, o não criado, onde não flui o
tempo. Este é o mistério do ser divino. O Pai, fonte do ser divino, goza das
riquezas da sua infinita perfeição na entrega mútua das três divinas pessoas. E
com Ele estarão os seus eleitos, tal como serão depois da ressurreição da carne.
Ele vê a sua criação tal como ela será no fim da História, depois da sua
unificação em Cristo. Vê a sua vontade realizada e glorificada por todos. Porém,
somos nós os que vivemos no tempo, os que estamos angustiados por vivermos uma
realidade imperfeita, num mundo em dores de parto, perante o triunfo aparente
das forças do mal. Por isso, pedimos que tudo venha a ficar conforme ao projeto
inicial de Deus, o qual se cumprirá infalivelmente. (cf La Biblia latinoamerica,
1995, San Pablo:nota a Mt 6,9). Assim, urge a oração dos filhos de Deus e o compromisso deles com o
seu conteúdo.
A Bíblia
de Jerusalém (BJ) observa que esta frase pode ser um acréscimo proposto por Mateus, já que
não consta na versão da oração registada por Lucas (cf Lc 11,2-4), mas é notória a correlação temática da parte final desse versículo com o
próprio registo de Mateus (cf Mt 7,21; 21,31; 26,39.42) e de Daniel (cf Dn 4,32).
Por seu turno, a Bíblia do Peregrino (BP), que traduz esta frase/petição como “cumpra-se o teu desígnio na terra como no
céu”, observa que cumprir o desígnio equivale a exercer o reinado.
Já a Tradução Ecuménica da Bíblia (TOB), que traduz esta petição como “faz com que se realize a tua vontade,
na terra, à imagem do céu”, observa que: a tradução literal seria “que a tua vontade se realize tal como no céu
assim na terra”; existe correlação temática desta invocação com a oração de
Jesus no Monte das Oliveiras – Meu Pai,
se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade – (cf Mt 26,42; Lc 22,42); este pedido não é uma prece de resignação, mas um apelo à Deus para que
faça com que a sua vontade se cumpra, tratando-se de um pedido estreitamente
conexo com os dois anteriores (cf Is 44,28; 46,10-11; 48,14; Ef 1,5.9); esta vontade se relaciona com os
homens e não pode ser posta em prática sem a sua adesão (cf Jr 31,31-33; Ez 36,27; Mt 5,17-20; 6,33; 7,21; 12,50; 21,24-27;
21,28-32); a tradução para a
segunda parte da petição, “assim na
terra como no céu” é inadequada, pois insinua que se trata de uma adição (na terra e também no céu), quando o verdadeiro sentido é pedir que se realize na terra uma situação
que já existe no céu (cf Dn 4,33; 1Mac 3,60); o céu é concebido como o
Reino de Deus totalmente realizado, portanto, a terra deve converte-se em
imagem do Céu. Não se deve esquecer que, em Mateus, reino dos Céus e reino de
Deus são expressões que se equivalem.
Também a Nova Bíblia dos Capuchinhos (1998) entende que esta petição corporiza
“uma ação própria de Deus, mas que envolve a pessoa humana”. Por outras
palavras, “o reino dos céus assenta na adesão das pessoas à vontade de Deus:
desde já, pelo cumprimento dos seus mandamentos” (vd Mt 6,33; 5,17-20; 7,21.24-27); “e, no fim dos tempos, mediante o acordo da vontade humana com a divina”
(vd Jr 31,31-33; Ez 36,27). “Como na oração de Jesus no Getsémani (Mt 26,42), esta petição não traduz resignação,
mas um apelo a que Deus torne palpável a realização da sua soberana vontade na terra como no céu.
***
É óbvio que é por Cristo e em Cristo que
se realiza a vontade do Pai:
“Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a vontade do Pai se cumpriu
perfeitamente e duma vez para sempre. Ao entrar neste mundo, Jesus disse: ‘Eu
venho, [...] ó Deus, para fazer a tua vontade’ (Heb 10,7). Só Jesus pode dizer: ‘Faço sempre o que é do seu
agrado’ (Jo 8,29).
Na oração da sua agonia, Ele conforma-Se totalmente com esta vontade: ‘Não se faça
a minha vontade, mas a tua’ (Lc 22,42).
Eis por que Jesus ‘Se entregou pelos nossos pecados [...] consoante a vontade
de Deus’ (Gl 1,4). ‘Em
virtude dessa mesma vontade é que nós fomos santificados, pela oferenda do
corpo de Jesus Cristo’ (Heb 10,10).”
– cf CIC, 2824.
É na obediência de Cristo ao desígnio do Pai, pelo sofrimento, que Jesus se
tornou fonte de salvação e consigo nos tornou filhos adotivos de Deus (vd Fl 2,6-11), como ensina o CIC, no seu n.º 2825:
“Jesus, ‘apesar de ser Filho, aprendeu, por aquilo que sofreu, o que é
obedecer’ (Heb 5,8).
Com quanto mais razão nós, criaturas e pecadores, que n’Ele nos tornamos filhos
de adoção!
Por isso, como já foi referido, nós pedimos ao Pai que una a nossa vontade
à do seu Filho, para que se cumpra a vontade d’Ele – o seu plano de salvação para
a vida do mundo – porque somos radicalmente impotentes para tal. Todavia,
unidos a Jesus e com o poder do seu Espírito Santo, podemos entregar-Lhe a
nossa vontade e decidir escolher o que o seu Filho sempre escolheu, fazer o que é do agrado do Pai (cf Jo 8,29). Com efeito, aderindo a Cristo, podemos tornar-nos um só espírito com Ele
e assim cumprir a sua vontade e, deste modo, ela será feita na terra como já é
feita no céu.
A este respeito, São João Crisóstomo, citado
pelo CIC, no n.º 2825, adverte:
“Considerai como Jesus Cristo nos ensina a ser humildes, fazendo-nos ver
que a nossa virtude não depende só do nosso trabalho, mas da graça de Deus.
Aqui, Ele ordena a todo o fiel que ora a fazê-lo de modo universal, por toda a
terra. Porque não diz seja feita a vossa
vontade em mim ou em vós, mas em toda
a terra, para que dela seja banido o erro e nela reine a verdade, o vício
seja destruído e a virtude refloresça, e para que a terra deixe de ser
diferente do céu” (São João Crisóstomo, In Matthaeum homilia l9, 5: PG 57, 280).
***
Ora, como é que nós sabemos qual a vontade de
Deus? A resposta mais imediata vem do CIC, no seu n.º 2826:
“É pela oração que podemos discernir qual é a vontade de Deus (cf Rm 12,2; Ef 5,17) e obter perseverança para a cumprir (cf Heb 10,36). Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos céus, não por palavras, mas fazendo
a ‘vontade do meu Pai’ que está nos céus” (Mt 7,21).
É efetivamente pela oração que discerne a vontade de Deus, mas não pela tautologia e pela blattologia, mas tentando mais escutar Deus que falar-lhe, ou, se
quisermos dizê-lo de outro modo, estando
com atenção às moções do Espírito Santo, rezando segundo as indicações de
Cristo e, tanto quanto possível, como Ele: em tom coloquial, perseverando,
confiando; louvando, agradecendo, impetrando e pedindo perdão. E, sobretudo,
comprometendo-nos com o que rezamos.
A este propósito, o n.º 2827 do CIC estabelece:
“Se alguém honrar a Deus e cumprir a sua vontade, Ele o atenderá (Jo 9,31; cf 1Jo 5,14). Tal é o poder da oração da
Igreja feita em nome do seu Senhor, sobretudo na Eucaristia; ela é comunhão de
intercessão com a santíssima Mãe de Deus (cf Lc 1,38.49) e com todos os santos que foram
agradáveis ao Senhor por não terem querido senão a sua vontade”.
E, depois de realçar o valor oracional da Eucaristia e da ligação do orante
à Mãe de Deus, o mesmo n.º do CIC cita Agostinho de Hipona, que oferece um
sentido eclesial ao segmento pericopal da oração dominical que induziu esta
reflexão:
“Podemos ainda, sem trair a verdade, traduzir estas palavras, seja feita a vossa vontade assim na terra
como no céu por estoutras: na Igreja
como em nosso Senhor Jesus Cristo, na esposa que Lhe foi desposada, como no
esposo que cumpriu a vontade do Pai” (Santo
Agostinho, De sermone Domini
in monte, 2, 6, 24: CCL 35, 113 – PL34, 1279).
***
Por fim, convém ter em conta a síntese feita pelo
compêndio do CIC, no seu n.º 591, em resposta à questão Porque pedir: Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu?
“A vontade do Pai é que todos os
homens sejam salvos (1Tim 2,3).
Para isso é que Jesus veio: para realizar perfeitamente a Vontade salvífica do
Pai. Nós pedimos a Deus Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, a exemplo
de Maria Santíssima e dos Santos. Pedimos que o seu desígnio de benevolência se
realize plenamente na terra como no céu. É mediante a oração que podemos discernir a vontade de Deus (Rm 12,2) e obter a perseverança para a cumprir.” (Heb 10,36).
Mas é preciso que escutar o Espírito de Deus para que opere no coração do
homem até que ele compreenda que Deus é de facto seu Pai e que, reconciliado em
Cristo no Espírito, se pode e deve relacionar com Ele, acertando o seu passo
com a vontade divina (cf Bispos de França, Catecismo para Adultos – a aliança de Deus com os homens, 1992: Gráfica
de Coimbra).
2015.07.21 – Louro de Carvalho
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