terça-feira, 21 de julho de 2015

Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu

É a terceira petição/invocação da oração dominical, na qual pedimos ao Pai que una a nossa vontade à de seu Filho Jesus para que se cumpra o seu desígnio de salvação na vida do mundo (cf CIC, 2860). Esta petição surge, pois, na oração emblemática dos discípulos, como expressão do desejo e da esperança de que seja feita a vontade de Deus. Pedimos a autêntica obediência para que se cumpra em cada um de nós a vontade Deus como Cristo a cumpriu e como os anjos a cumprem no céu, ou na terra quando Deus os envia em seu serviço.
E em que consiste a vontade de Deus Pai? O Catecismo da Igreja Católica (CIC) explicita-o de forma clara:
“É vontade do nosso Pai ‘que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4). Ele ‘usa de paciência [...], não querendo que ninguém se perca, mas que todos se convertam’ (2Pe 3,9). O seu mandamento, que resume todos os outros e nos diz toda a sua vontade (cf Mt 18,14; 23,37-40), é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (cf Jo 13,34; 1Jo 3,3-7; Lc 10,25-37).” – CIC, 2822.
Alguns veem a expressão da esperança da realização da vontade de Deus como um anexo à petição do advento do Reino de Deus, configurando um pedido para que a terra esteja direta e manifestamente sob o comando divino. Outros veem-na como um convite às pessoas para se submeterem a Deus e aos seus ensinamentos (praeceptis salutaribus moniti et divina institutione formati).
Por outro lado, o n.º 2823 do CIC refere-se à vontade de Deus como um mistério revelado pelo próprio Deus, constante do plano divino a nosso respeito, e ao empenho que nós devemos ter na realização desse projeto de Deus: 
“Ele ‘manifestou-nos o mistério da sua vontade, segundo o bene­plácito que nele de antemão estabeleceu [...]: instaurar todas as coisas em Cristo [...]. Foi n’Ele também que fomos escolhidos como sua herança, predestinados de acordo com o desígnio daquele que tudo opera de acordo com a decisão da sua vontade’ (Ef 1,9-11). Nós pedimos com empenho que este plano benevolente se realize por completo na terra, como já se cumpre no céu.”.
O termo grego θέλημα tanto significa vontade como desejo, projeto, finalidade. No Evangelho, este pedido, “Faça-se a Vossa vontade” (θέλημά σου), vem com o esclarecimento aditado, na terra, como no céu. Assim sendo, a petição resulta uma frase ambígua, que pode, em grego, ser uma símile, isto é, fazer a terra parecida com o céu; ou um paralelismo, isto é, tanto no céu como na terra). Contudo, talvez a símile seja uma significativa interpretação mais comum.
Faça-se a vossa vontade – Segundo La Biblia latinoamerica, este segmento discursivo, que Jesus colocará no centro da sua oração no Horto (cf Mt 26,39), condena muitas orações em que pretendemos recolocar o papel de Deus a nosso modo de ver. Se muitas pessoas creem que têm muita fé porque esperam constantemente que Deus lhes solucione os problemas, os filhos de Deus, ao invés, elevam para Ele o seu espírito para que a vontade divina passe a ser a sua vontade. Na terra como no céu – esta precisão vale para a petição da vontade de Deus como também para as petições anteriores, as atinentes ao Nome de Deus e ao Advento do Reino. O segmento em causa recorda-nos que tudo o que acontece no universo criado, sujeito ao tempo, depende de outro mundo, o não criado, onde não flui o tempo. Este é o mistério do ser divino. O Pai, fonte do ser divino, goza das riquezas da sua infinita perfeição na entrega mútua das três divinas pessoas. E com Ele estarão os seus eleitos, tal como serão depois da ressurreição da carne. Ele vê a sua criação tal como ela será no fim da História, depois da sua unificação em Cristo. Vê a sua vontade realizada e glorificada por todos. Porém, somos nós os que vivemos no tempo, os que estamos angustiados por vivermos uma realidade imperfeita, num mundo em dores de parto, perante o triunfo aparente das forças do mal. Por isso, pedimos que tudo venha a ficar conforme ao projeto inicial de Deus, o qual se cumprirá infalivelmente. (cf La Biblia latinoamerica, 1995, San Pablo:nota a Mt 6,9). Assim, urge a oração dos filhos de Deus e o compromisso deles com o seu conteúdo.
A Bíblia de Jerusalém (BJ) observa que esta frase pode ser um acréscimo proposto por Mateus, já que não consta na versão da oração registada por Lucas (cf Lc 11,2-4), mas é notória a correlação temática da parte final desse versículo com o próprio registo de Mateus (cf Mt 7,21; 21,31; 26,39.42) e de Daniel (cf Dn 4,32).
Por seu turno, a Bíblia do Peregrino (BP), que traduz esta frase/petição como “cumpra-se o teu desígnio na terra como no céu”, observa que cumprir o desígnio equivale a exercer o reinado.
Já a Tradução Ecuménica da Bíblia (TOB), que traduz esta petição como “faz com que se realize a tua vontade, na terra, à imagem do céu”, observa que: a tradução literal seria “que a tua vontade se realize tal como no céu assim na terra”; existe correlação temática desta invocação com a oração de Jesus no Monte das Oliveiras – Meu Pai, se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade – (cf Mt 26,42; Lc 22,42); este pedido não é uma prece de resignação, mas um apelo à Deus para que faça com que a sua vontade se cumpra, tratando-se de um pedido estreitamente conexo com os dois anteriores (cf Is 44,28; 46,10-11; 48,14; Ef 1,5.9); esta vontade se relaciona com os homens e não pode ser posta em prática sem a sua adesão (cf Jr 31,31-33; Ez 36,27; Mt 5,17-20; 6,33; 7,21; 12,50; 21,24-27; 21,28-32); a tradução para a segunda parte da petição, “assim na terra como no céu” é inadequada, pois insinua que se trata de uma adição (na terra e também no céu), quando o verdadeiro sentido é pedir que se realize na terra uma situação que já existe no céu (cf Dn 4,33; 1Mac 3,60); o céu é concebido como o Reino de Deus totalmente realizado, portanto, a terra deve converte-se em imagem do Céu. Não se deve esquecer que, em Mateus, reino dos Céus e reino de Deus são expressões que se equivalem.
Também a Nova Bíblia dos Capuchinhos (1998) entende que esta petição corporiza “uma ação própria de Deus, mas que envolve a pessoa humana”. Por outras palavras, “o reino dos céus assenta na adesão das pessoas à vontade de Deus: desde já, pelo cumprimento dos seus mandamentos” (vd Mt 6,33; 5,17-20; 7,21.24-27); “e, no fim dos tempos, mediante o acordo da vontade humana com a divina” (vd Jr 31,31-33; Ez 36,27). “Como na oração de Jesus no Getsémani (Mt 26,42), esta petição não traduz resignação, mas um apelo a que Deus torne palpável a realização da sua soberana vontade na terra como no céu.
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É óbvio que é por Cristo e em Cristo que se realiza a vontade do Pai:
“Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a vontade do Pai se cumpriu perfeitamente e duma vez para sempre. Ao entrar neste mundo, Jesus disse: ‘Eu venho, [...] ó Deus, para fazer a tua vontade’ (Heb 10,7). Só Jesus pode dizer: ‘Faço sempre o que é do seu agrado’ (Jo 8,29). Na oração da sua agonia, Ele conforma-Se totalmente com esta vontade: ‘Não se faça a minha vontade, mas a tua’ (Lc 22,42). Eis por que Jesus ‘Se entregou pelos nossos pecados [...] consoante a vontade de Deus’ (Gl 1,4). ‘Em virtude dessa mesma vontade é que nós fomos santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo’ (Heb 10,10).” – cf CIC, 2824.
É na obediência de Cristo ao desígnio do Pai, pelo sofrimento, que Jesus se tornou fonte de salvação e consigo nos tornou filhos adotivos de Deus (vd Fl 2,6-11), como ensina o CIC, no seu n.º 2825:
Jesus, ‘apesar de ser Filho, aprendeu, por aquilo que sofreu, o que é obedecer’ (Heb 5,8). Com quanto mais razão nós, criaturas e pecadores, que n’Ele nos tornamos filhos de adoção!
Por isso, como já foi referido, nós pedimos ao Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, para que se cumpra a vontade d’Ele – o seu plano de salvação para a vida do mundo – porque somos radicalmente impotentes para tal. Todavia, unidos a Jesus e com o poder do seu Espírito Santo, podemos entregar-Lhe a nossa vontade e decidir escolher o que o seu Filho sempre escolheu, fazer o que é do agrado do Pai (cf Jo 8,29). Com efeito, aderindo a Cristo, podemos tornar-nos um só espírito com Ele e assim cumprir a sua vontade e, deste modo, ela será feita na terra como já é feita no céu. 
A este respeito, São João Crisóstomo, citado pelo CIC, no n.º 2825, adverte:
“Considerai como Jesus Cristo nos ensina a ser humildes, fazendo-nos ver que a nossa virtude não depende só do nosso trabalho, mas da graça de Deus. Aqui, Ele ordena a todo o fiel que ora a fazê-lo de modo universal, por toda a terra. Porque não diz seja feita a vossa vontade em mim ou em vós, mas em toda a terra, para que dela seja banido o erro e nela reine a verdade, o vício seja destruído e a virtude refloresça, e para que a terra deixe de ser diferente do céu” (São João Crisóstomo, In Matthaeum homilia l9, 5: PG 57, 280).
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Ora, como é que nós sabemos qual a vontade de Deus? A resposta mais imediata vem do CIC, no seu n.º 2826:
“É pela oração que podemos discernir qual é a vontade de Deus (cf Rm 12,2; Ef 5,17) e obter perseverança para a cumprir (cf Heb 10,36). Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos céus, não por palavras, mas fazendo a ‘vontade do meu Pai’ que está nos céus” (Mt 7,21).
É efetivamente pela oração que discerne a vontade de Deus, mas não pela tautologia e pela blattologia, mas tentando mais escutar Deus que falar-lhe, ou, se quisermos dizê-lo de outro modo, estando com atenção às moções do Espírito Santo, rezando segundo as indicações de Cristo e, tanto quanto possível, como Ele: em tom coloquial, perseverando, confiando; louvando, agradecendo, impetrando e pedindo perdão. E, sobretudo, comprometendo-nos com o que rezamos.
A este propósito, o n.º 2827 do CIC estabelece:
Se alguém honrar a Deus e cumprir a sua vontade, Ele o atenderá (Jo 9,31; cf 1Jo 5,14). Tal é o poder da oração da Igreja feita em nome do seu Senhor, sobretudo na Eucaristia; ela é comunhão de intercessão com a santíssima Mãe de Deus (cf Lc 1,38.49) e com todos os santos que foram agradáveis ao Senhor por não terem querido senão a sua vontade”.
E, depois de realçar o valor oracional da Eucaristia e da ligação do orante à Mãe de Deus, o mesmo n.º do CIC cita Agostinho de Hipona, que oferece um sentido eclesial ao segmento pericopal da oração dominical que induziu esta reflexão: 
“Podemos ainda, sem trair a verdade, traduzir estas palavras, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu por estoutras: na Igreja como em nosso Senhor Jesus Cristo, na esposa que Lhe foi desposada, como no esposo que cumpriu a vontade do Pai” (Santo Agostinho, De sermone Domini in monte, 2, 6, 24: CCL 35, 113PL34, 1279).
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Por fim, convém ter em conta a síntese feita pelo compêndio do CIC, no seu n.º 591, em resposta à questão Porque pedir: Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu?
“A vontade do Pai é que todos os homens sejam salvos (1Tim 2,3). Para isso é que Jesus veio: para realizar perfeitamente a Vontade salvífica do Pai. Nós pedimos a Deus Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, a exemplo de Maria Santíssima e dos Santos. Pedimos que o seu desígnio de benevolência se realize plenamente na terra como no céu. É mediante a oração que podemos discernir a vontade de Deus (Rm 12,2) e obter a perseverança para a cumprir.” (Heb 10,36).
Mas é preciso que escutar o Espírito de Deus para que opere no coração do homem até que ele compreenda que Deus é de facto seu Pai e que, reconciliado em Cristo no Espírito, se pode e deve relacionar com Ele, acertando o seu passo com a vontade divina (cf Bispos de França, Catecismo para Adultos – a aliança de Deus com os homens, 1992: Gráfica de Coimbra).

2015.07.21 – Louro de Carvalho

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