sábado, 11 de julho de 2015

Interligação entre o cultivo e o cuidado

Um dia, uma família católica convidou o pároco da freguesia para almoçar, convite que ele aceitou com gosto. Chegada a hora da refeição, um dos elementos da família anfitriã adiantou a explicação: Sabe, senhor Padre, o almoço tem como prato principal uma galinha daquelas que nós cultivamos aqui em casa.
E o eclesiástico, que nunca havia ouvido falar de cultivo de galinhas e de outros animais, mas de criação, tratamento, cuidado e outros termos similares, começou a fazer a ponte intelectual para o papel do padre-cura – aquele que, não sendo o abade da paróquia, fora incumbido de prover ao seu cuidado, à sua cura (em latim, cuidado, tratamento, guarda). Com efeito, pastor guarda o rebanho, trata das ovelhas todas e dos cordeiros, com especial cuidado para com as doentes, frágeis, tresmalhadas ou perdidas. O pastor guarda o rebanho da intempérie, do lobo e de outros inimigos do rebanho, nomeadamente os falsos pastores e os salteadores. Cuida e trata para que estejam em sossego, pastem à vontade, se robusteçam, cresçam se desenvolvam. (cf Ez 34,2-31; Jo 10,1-18).
Ora, quando se aposta na guarda, no cuidado ativo, para que cresçam ou para que tenham a vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10), estamos a cultivar os animaizinhos com o mesmo cuidado e mimo com que se cultivam as plantas, que se desenvolvem, florescem e frutificam. Este meticuloso trabalho é cultivo, esta atitude assídua junto do objeto do cultivo, cuidado e guarda é cultura. E a dedicação amorosa é culto análogo ao culto dedicado e amoroso que se presta a Deus.
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Miguel Torga, no seu pequeno poema “Bucólica”, em Diário I, dá-nos uma dupla visão da vida.

Bucólica

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;


De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz uma trança à filha.

Efetivamente, a vida é feita de coisas vulgares, miudezas, mas que vale a pena contemplar, conservar, guardar. É a índole estática dos elementos da Natureza, é o movimento do vento; são as serras, que o homem não construiu; são as searas que o homem cultiva, guarda e de que desfruta; são casas que o homem constrói, conserva ou deixa à lei da natureza, em comunhão com os passarinhos e com a poeira e as árvores.
Mas a vida, na sua plenitude, é feita pelas pessoas: o pai, a mãe, a filha. Não é um pai qualquer, mas o “meu” pai, que se dedica ao cultivo cuidadoso de erguer uma videira – a metonímia do trabalho dedicado, amoroso, de proximidade. Porém, o filho ou a filha reconhece o desvelo de uma mãe, a sua, que faz com desvelo, atenciosidade e gosto do pormenor, utilizando as suas mãos de fada, uma trança à filha. Erguer a videira e fazer a trança à filha são formas equivalentes de guarda, jeito, cuidado e cultivo da parte de quem ama em torno do ser que se ama. A repetição do determinante indefinido “uma”, com a sua nasalidade, evoca a ternura, a paciência e até os gemidos com que se tratam as plantas, os animais e, sobretudo as pessoas de quem se gosta.
Quantas coisas vulgares que podemos ver em redor de nós e que, vistas com olhos da simplicidade e do amor, da poesia e do enlevo, se tornam maravilhosas!
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Ora, na sua viagem apostólica à América do Sul, ainda em decurso, o Papa aborda com a mestria que se lhe reconhece a temática da guarda e do cuidado, do respeito e do cultivo, segundo o querer de Deus, o bem do homem e o zelo pela casa comum (a terra).
Assim, no encontro com o mundo da escola e da universidade, na Pontifícia Universidade Católica do Equador, em Quito, no passado dia 7, Francisco começou por referir que aquela Universidade, “desde há quase 70 anos, cumpre e atualiza a fecunda missão educativa da Igreja ao serviço dos homens e mulheres da nação”. Ora educar é cuidar e cultivar, apesar de haver, de vez em quando, “umas nuvens escuras lá no horizonte”, que se espera “que não venha uma tempestade, mas que seja só uma leve garoa”.
Depois, cita o exemplo de Jesus, que “ensinava a multidão e o pequeno grupo dos discípulos, adaptando-Se à sua capacidade de compreensão”, utilizando parábolas, como a do semeador” (Lc 8,4-15), sendo sempre “plástico” no modo de ensinar, “de forma que todos pudessem entender”. Segundo o Papa, “Jesus não procura ‘doutorear’; pelo contrário, quer chegar ao coração do homem, à sua inteligência, à sua vida e para que esta dê fruto”.
A parábola, falando em cultivo, mostra os diversos tipos de terra, de semente, de fruto e “a relação que se gera entre eles”. Desde o “Génesis”, – comenta Francisco – Deus sussurra ao homem o duplo convite: cultivar e cuidar. Não se circunscreve à concessão de vida, mas “dá-lhe a terra, a criação”, “uma companheira e infinitas possibilidades”; e sobretudo faz-lhe “um convite”, “dá-lhe uma missão”, de participar na sua obra criadora. Numa palavra, dá-lhe uma ordem: “cultiva!”. Trata-se de um presente de Deus para o podermos fazer nosso, em linha com Deus, pois, “Deus não quer uma criação para Si, para Se ver a Si mesmo”. A criação é, antes, “um dom para ser partilhado”: “o espaço que Deus nos dá, para construir connosco, para construir um nós”. (cf Gn 1,26.28-30; 2,5-24).
E o Papa Bergoglio – chamando a atenção para uma singular peculiaridade da narração do Génesis: ao lado da palavra “cultivar”, aparece logo outra, “cuidar” – criou um significativo aforismo teândrico: não cultiva quem não cuida e não cuida quem não cultiva. É a participação contemplativa e ativa na obra criadora e providente de Deus: cultivando, fazendo crescer, desenvolvendo, mas também cuidando, protegendo, guardando.
Mas o sucessor de Pedro, que desde o início do seu pontificado, tem apelado a este dinamismo da guarda, cuidado e cultivo na esteira do Génesis e na da missão de São José, assegura que hoje este convite divino se torna imperativo e não se confina a uma simples recomendação, dado o mal que “provocamos à terra por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou”. Em vez de administradores solícitos, racionais e solícitos, “crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la”. Neste sentido, a terra oprimida e devastada figura como irmã dos “pobres mais abandonados e maltratados que há hoje em dia no mundo” ou como sua mãe maltratada e desprezada.
Francisco, em coerência com a sua recente encíclica e o seu discurso desde os primórdios do seu Pontificado, verifica a relação existente entre a vida humana e a da mãe terra (na perspetiva ecoeconómica), nos termos seguintes:
“O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social (LS 48). Ora, tal como dizemos que se degradam, assim também podemos dizer que se apoiam e podem transfigurar. É uma relação que encerra uma possibilidade tanto de abertura, transformação e vida, como de destruição e morte”.
Por isso insiste em que “não podemos continuar a desinteressar-nos da nossa realidade, dos nossos irmãos, da nossa mãe terra”, não nos sendo lícito ignorar o que acontece ao nosso redor, como se situações gravemente antiéticas não existissem ou nada tivessem a ver connosco. Não é lícito, não é humano pactuar com a cultura do descarte. E o Bispo de Roma faz sua e faz nossa a pergunta do Senhor a Caim, “Onde está o teu irmão?”, não querendo, porém, que respondamos contínua, agressiva e supinamente como o interpelado, “Sou, porventura, guarda de meu irmão?” (Gn 4,9). Deixa até um apontamento curiosamente dramático:
“Um pobre morre por causa do frio e da fome e isso não é notícia, mas se as bolsas das principais capitais do mundo caem dois ou três pontos arma-se um grande escândalo mundial. E eu pergunto-me: onde está o teu irmão? E peço-vos que vos façais outra vez, cada um, essa pergunta, e que o façais à universidade: a ti, Universidade Católica, onde está o teu irmão? Neste contexto universitário, seria bom interrogarmo-nos sobre a nossa educação a respeito desta terra que clama ao céu.”.
Ora, sendo os nossos centros educativos “uma sementeira, uma possibilidade, terra fértil para cuidar, estimular e proteger” – “terra fértil, sedenta de vida” – o Pontífice interpela:
“Como entra, nos currículos universitários ou nas diferentes áreas do trabalho educativo, a vida que nos rodeia com as suas perguntas, suas interpelações, suas controvérsias? Como geramos e acompanhamos o debate construtivo que nasce do diálogo em prol de um mundo mais humano? O diálogo, esta palavra-ponte, esta palavra que cria pontes.”.
Relevando o papel das comunidades educativas – papel fundamental e essencial na construção da cidadania e da cultura – Francisco adverte para a tentação de se ficar pelas análises e descrições da realidade, defendendo a necessidade de “gerar as áreas, espaços de verdadeira pesquisa, debates que gerem alternativas para as problemáticas especialmente de hoje”, ou seja, “é necessário ir ao concreto”.
Face à globalização do paradigma tecnocrático, que faz coincidir com a mera aquisição de poder o progresso e o aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores – como se “a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia” (LS 105) – o Bispo de Roma a todos incita urgentemente a “pensar, a debater sobre a nossa situação atual”. Uma vez que recebemos a terra “como herança, como um dom, como um presente”, deveremos interrogar-nos:
Como queremos deixá-la? Qual é a orientação, o sentido que queremos dar à existência? Com que finalidade passamos por este mundo? Para que lutamos e trabalhamos? (LS 160). Para que estudamos?
Para tanto, o Papa conta com as iniciativas individuais, que “são sempre boas e fundamentais”, mas quer um passo mais: temos que nos animar “a olhar a realidade organicamente e não de forma fragmentária, a fazer perguntas que nos envolvam a todos, uma vez que ‘tudo está interligado’ (LS 138)”, não havendo assim direito e lugar à exclusão.
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Na saudação às pessoas reunidas na catedral de Quito, a 6 de julho, o Santo Padre apresentou-se como peregrino, “para partilhar convosco a alegria de evangelizar”. Revelou que, ao sair do Vaticano, saudou “a imagem de Santa Mariana de Jesus”, que, no exterior da abside basilical de São Pedro, “vela pelo caminho que o Papa percorre tantas vezes” e lhe pediu que fizesse com que aprendêssemos “com o seu exemplo”. É certo que “o seu sacrifício e a sua heroica virtude são representados por uma açucena”. Porém, a sua imagem em São Pedro “carrega um ramo de açucenas, porque juntamente com a dela apresenta ao Senhor, no coração da Igreja, as flores que sois todos vós, as flores do Equador”.
Pelo caminho de Santa Mariana enveredaram outros e outras, tendo o Papa salientado o exemplo de Santa Narcisa de Jesus e da Beata Mercedes de Jesus Molina, que se sentiram interpeladas pelo exemplo de Mariana. Mas não deixou de sublinhar a situação plangente e a ação discreta e eficaz de todos quantos “hoje sofrem ou sofreram a orfandade”, de quantos “tiveram que tomar a seu cargo irmãos ainda pequenos”, de quantos “se empenham diariamente no cuidado dos enfermos ou idosos”.
E Francisco afirma:
“Elas não fizeram grandes proezas, aos olhos do mundo. Simplesmente amaram muito, demonstrando-o no dia-a-dia até chegarem a tocar a carne sofredora de Cristo no povo (cf EG 24). Não o fizeram sozinhas; fizeram-no ‘junto com’ outros; as pedras, escultura e alvenaria desta catedral foram feitas por meio da forma própria dos povos nativos: a ‘minga’, um trabalho de todos a favor da comunidade, anónimo, sem cartazes nem aplausos. Queira Deus que, tal como as pedras desta catedral, assim ponhamos aos ombros as necessidades dos outros, assim ajudemos a construir ou reparar a vida de tantos irmãos que não têm forças para a construir ou a deixam por terra.”.
É a apologia e a necessidade do trabalho intenso de cada um, mas em interação com os outros, em comunidade, em solidariedade. É este o postulado do trabalho social ou da guarda/cuidado do irmão; do trabalho da terra, do seu cultivo e da sua defesa; do trabalho pela paz, que é o trabalho do homem, pelo homem e com o homem.
E o Papa termina a saudação com o rasgo poético da paz, da missão, do ser do cristão criado em Jesus Cristo, responsável por si mesmo, pelo irmão e pela terra que nos foi ofertada como dom e tarefa.
Que formosos são sobre os montes os pés do mensageiro (…), que apregoa a boa-nova (Is 52,7). É a beleza que somos chamados a difundir, como bom perfume de Cristo: a nossa oração, as nossas boas obras, o nosso sacrifício pelos mais necessitados. É a alegria de evangelizar e, uma vez que sabeis isto, sereis felizes se o puserdes em prática” (Jo 13,17).
Laudetur Dominus!
EG – Evangelii Gaudium; LS – Laudato Si’

2015.07.11 – Louro de Carvalho

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