quarta-feira, 29 de julho de 2015

O homem e o burro

Não me ocorre contar nenhuma história de homens e burros. Porém, umas pitadas de curiosidades que reli em livrinhos de Nunes dos Santos, da coleção “Retalhos”, da Menabel, sugeriram-me alguma reflexão. Com efeito, no seu opúsculo O homem, esse granda ponto, o refinado autor de curiosidades e de ditos humorísticos desenvolve um conjunto de ideias em torno do título “As afinidades do homem com o burro”, o que me fez lembrar que, segundo algo que a experiência coletiva mostra e que o povo regista no seu rifonário, o homem é muitas vezes semelhante ao burro e, às vezes, até pior do que ele.  
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A palavra “burro” – que, em Português, funciona como nome que serve para designar o asno, jumento, jerico, onagro e, por vezes, besta – não remonta ao sermo urbanus do latim, como sucede, por exemplo, com o termo âne, em Francês, que remonta ao vocábulo asinus do sermo urbanus latino, mas provavelmente à expressão mais longa do asinus burrus (nome, asinus + adjetivo, burrus) do sermo vulgaris latino. Asinus burrus seria aquele tipo de besta ruça, pardo-avermelhada. Dizem que ainda hoje a carne de burro é um pouco avermelhada, mais que a do cavalo ou do muar. Burrus é, no Latim, um adjetivo de 1.ª classe alternativo a “ruber” ou “rubeus”. Aproveito o ensejo para solicitar que nunca aponham como assinatura abreviada outra coisa a não ser a rubrica (palavra grave e não esdrúxula, como alguns dizem e fazem), porque se fazia a vermelho para distinguir do resto do texto (habitualmente do aluno) ou porque se marcavam a vermelho os começos de apartado em contabilidade e se escreviam a vermelho os gestos e movimentos dos ministros sagrados nas liturgias.
Como acontece com outras expressões do latim vulgar, em que houve evolução diferente da mesma expressão conforme a língua românica em causa, também aqui a língua portuguesa na sua realização popular adotou preferencialmente a forma adjetiva “burrus” deixando para trás a forma nominal substantiva “asinus”. A língua francesa, ao invés, adotou a forma nominal substantiva asinus (âne) e deixou cair a forma adjetiva burrus (rouge).
Algo semelhante sucede com a frase “Não tenho nada”. No latim do sermo urbanus, dizia-se “Nihil habeo”. Todavia, o sermo vulgaris preferia expressões menos sintéticas e a forma vigente era “Non habeo rem natam” – não tenho coisa nascida. Os franceses perderam a “nascida” e ficaram com a “coisa” (nome, “res”) e dizem “Je n’ ai rien”; os portugueses, ao invés, abandonaram a “coisa” (nome, “res”) e preferiram a “nascida” (adjetivo). Mas repare-se que no Galaico-português dizíamos “no ei ren”, que sincreticamente podia escrever-se de várias maneiras: no(n) ai ren, no(n) hay ren, no(n) hei ren, no(n) hey ren, no(n) ey ren, no(n) ay ren. No Português, o verbo haver ficou como verbo auxiliar ou com o sentido de existir e perdeu o sentido de posse. Este passou a ser indicado pelo verbo “ter”, que significava, como o tenere latino, segurar, ter na mão, sustentar. Em Francês, mantém-se o verbo avoir, com o sentido de ter, possuir; e persiste o verbo tenir, com sentido de segurar, agarrar, ter na mão.
Mas há mais casos em que os falantes privilegiaram o adjetivo e desconsideraram o nome substantivo. Por exemplo, o “pêssego” (hoje nome, era dantes adjetivo) era conhecido como malum persicum (“fruto da Pérsia”, porque os romanos pensavam que ele tivesse sido trazido de lá pelos soldados de Alexandre Magno). Diz-se habitualmente, por exemplo, o básico, o secundário, com omissão do nome “ensino”; o pedagógico, o diretivo, com omissão do nome “conselho”; e o executivo, o deliberativo, com a omissão do nome “órgão”.
Também utilizamos como adjetivo a palavra “burro” em expressões como “tijolo burro” (tijolo maciço) e “fiquei burro”, quando me contaram o que aconteceu. E, como eles ou pior do que eles, fazemos asneiras, burrices e, como dizem os brasileiros, burradas.
Por outro lado, a palavra “burra”, que habitualmente designa a fêmea do burro, também designava, em Portugal, um sistema de tirar água do poço e uma arca de madeira, reforçada com couro e metal, usada para guardar dinheiro. A segunda destas duas asserções é ilustrada com a passagem de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, quando escreve: “E o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a burra, aos cinquenta e aos cem mil réis, e da burra para o banco, aos contos e aos contos”.
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Voltando aos escritos de Nunes dos Santos, há que referir que, no opúsculo acima referenciado, ele disserta com alguma abundância sobre as afinidades entre o homem e o burro – que passo a acompanhar modificando quanto baste e ampliando ad libitum.
Efetivamente, ainda sob a proteção materna, o homem se habitua a brincar com os animais e, entre eles, o burro, a burra e o burrinho. E tanto a mãe como o pai, os manos e os vizinhos advertem que não seja burreco ou burrinho (teimoso, ingénuo…). E quem nunca viu uma criança a achar graça á voz do burro e até a tentar imitá-lo? Quando, mais tarde, o pai e os amigos (os professores não o fazem nem o podem fazer) notam que o menino tem algumas dificuldades de aprendizagem, é preguiçoso ou ingénuo ou se deixa sovar pelos outros, chamam-lhe burrinho. E, se zangados, gritam: “Irra, que é burro!”. Ou “Arre, burro!”. Mas cuidado! Já ouvi pai a chamar burro ao filho, o qual ficou em silêncio desgostoso e, passado o nervosismo do pai, interpelou-o: “Ó pai, como se chamará o pai dum burro”?
Quando o homem se sente necessitado de ganhar o pão com o suor do seu rosto e se sujeita a todo o tipo e quantidade de trabalho, diz que é “um burro de carga” ou os outros dizem que trabalha “como um burro” ou que “nem um burro”. E, se come em demasia e assegura que comeu que nem um abade, podem retorquir-lhe que “comeu que nem um burro”. Quem nunca exclamou que “é mais fácil manter um burro a pão de ló!”. Porém, quando o sujeito dá conta de que o sobrecarregam sistematicamente e só a si, é capaz de refilar, dizendo que, às tantas, “atira com a albarda ao ar”. Mas pode acontecer que o destinador dos trabalhos responda que não faz mal, pois “está habituado a montar em pelo”.
Por vezes, em discussão familiar ou grupal, se um indivíduo começa a disparatar, pode ter de escutar como reação o ditado “Vozes de burro não chegam ao céu”. Mas, se o que profere o disparate tem notória calvície e desafia os demais se já viram algum burro careca, pode receber a resposta: “Não, mas já vi muito careca burro”. E, se os desafia a dizer se já viram algum burro com chifres, a resposta pode ser mais desagradável e agressiva. Porém, se calmamente está a emitir a sua opinião perante um grupo e se vê constantemente interrompido por quem inesperadamente lhe corta a palavra, é bem capaz de advertir: “Quando um burro fala, o outro abaixa as orelhas”.
Se um indivíduo deixa transparecer mágoa por qualquer dito ou gesto de outrem, ouvirá os amigos dizer que “está a prender o burro”, que “está de burro” ou que “está com o burro”.
Atentando na relação conjugal, se o marido faz todas as vontades à mulher de forma acrítica, pode ser prendado com o epíteto de “burro de carga”, de “(burro) manso” ou de “burranca”. Também a criancinha quer que o papá (ou a esposa ao marido) faça de burro ou de cavalo e a leve às costas ou às cavalitas.
Quando se lhe oferece a grande oportunidade da sua vida e o homem não tem perspicácia suficiente para a agarrar e a deixa escapar, os amigos e conhecidos comentarão: Que grande burro! Dirão a mesma coisa se ele se deixou burlar pelo conto do vigário ou deu um passo maior que a perna na prossecução de um negócio ruinoso. E, se o negócio em que se meteu deu para o torto, sabem dizer que deu com os burrinhos na água.
Também, neste mundo de Cristo, surgem homens persistentes e determinados nos seus empreendimentos. Ora, quando um homem aposta mesmo na perseverança e, porque é de antes partir que dobrar, não desiste, pode saber do comentário a seu respeito: “É teimoso que nem um burro”. Se o homem reage mal ao discurso dos amigos ou se toma atitudes inusitadas, podem-lhe rezar: “Valha-te um burro aos coices”. E, quando nota que cometeu um erro ou foi enganado, exclama “Que burro que eu fui” ou “Fui um (grande) burro”. Porém, se fala com altivez e soberba, os ouvintes dirão: “Fala por cima da burra”. E, se tiver pensamentos positivos antes as dificuldades da vida e vir o seu esforço compensado, será considerado como “um burro de sorte” ou, mais sinteticamente, um sortudo.
Também podem ser aplicados estes chistes à mulher, obviamente no feminino (a não ser em expressões como “está a prender o burro”). No entanto, o povo não deixa igualar a mulher à burra, pois estabelece bem a diferença quando adverte que “para trás mija a burra” (peço perdão pelo calão). Homem ou mulher são seres que não andam para trás!
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O citado Nunes dos Santos, no opúsculo Uma mão cheia de curiosidades, fornece uma explicação para o adágio “A pensar morreu um burro”. Opina ele que a origem desta expressão se deve à história do ‘burro de Buridan’, filósofo francês do século XIV e reitor da Academia de Paris, que dissertou sobre a indecisão, caraterística de muitos seres humanos. Assim, supôs que, “se a um burro cheio de fome e, igualmente, cheio de sede, lhe pusessem à frente duas vasilhas, uma com aveia e outra com água, a saber por qual delas se decidiria primeiro”, o burro ficaria tão indeciso que que acabaria por morrer à sede. Por isso, sempre que alguém demora muito tempo a decidir, está sujeito a ouvir a expressão: a pensar morreu um burro.
Por outro lado, todos sabemos que, por mais desagradável que se torne o zurrar do animal, o burro sente enorme prazer em ouvir e fazer ouvir a sua voz. Já me aconteceu em ambientes dramaticamente sérios, como funeral e procissão do Santíssimo Sacramento, ao ouvir tais vozes impertinentes, ter de colocar um dedo numa das bochechas para, em vez de rir, poder tossir. Mas o pior é que há seres humanos que têm enorme gosto em ouvir a sua voz e fazê-la ouvir, conseguindo, por esse meio, martirizar os circunstantes.
O burro, na sua discrição, também tem o seu quê de vaidade e desejo de conforto e solidariedade: gosta de que lhe assobiem quando e enquanto bebe. E também esta caraterística passa zombeteiramente para os humanos. Quem nunca assobiou a um colega enquanto ele bebe e acompanha a postura com o aforismo, o meu burrinho tem brio, só bebe quando lhe assobio? É óbvio que ouve a réplica: nunca a água me amargou senão quando o diabo me assobiou. Mas atenção: Não se assobia às burras.
O burro tem o hábito de mexer com as orelhas, com as quais exerce diversas funções, como espantar insetos e apurar a postura auditiva. Só que a abanar as orelhas o burro não incorre na negligência e cobardia em que incorrem os homens. Num órgão colegial ou perante um superior, quando o cidadão com responsabilidades sociais se limita a abanar acriticamente as orelhas para baixo em sinal de ámen ou para os lados em sinal de discordância não sustentada, pode estar a deixar correr graves injustiças ou a travar a realização de grandes benefícios. Aqui já o homem é pior que o burro.
Mas há mais: o burro só come quanto tem fome e bebe quando tem sede e contém-se noutras circunstâncias não imperativas fisiologicamente, como, perante a iminência de perigo, resiste, não avança temerariamente, por mias que lhe batam. Já o homem, sem fome e sem sede, satisfaz a gula e sem quê nem para quê exorbita em sexo. E compra e vende, mercantilizando o corpo e a alma. É pior!
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Há milhares de anos que o homem conta com ajuda deste seu amigo em muitas tarefas domésticas, nomeadamente no transporte pessoal e de carga.  O burro, mais baixo que o cavalo, tem orelhas mais compridas e o rabo, quase sem pelo, acaba num pequeno tufo de crinas. Algumas pessoas acham-no pouco bonito, mas ele torna-se muito útil, porque é forte e resistente. Além disso, a sua visão, olfato e audição são mais desenvolvidos que no cavalo. 
Um burro vive mais ou menos 20 anos, mas alguns chegam aos 30. Tal como nos cavalos a idade vê-se pelos dentes, que, apesar de muito fortes, vão ficando mais feios com a idade. A fêmea tem normalmente apenas um filhote (raramente dois), que demora quase um ano a nascer.
Os burros são diferentes uns dos outros conforme o clima e a raça. Em Portugal, têm mais ou menos 1 metro e 40 centímetros (do nosso tamanho aos 10 anos) e a cor varia entre o cinzento com manchas e o castanho. A sua voz é o zurrar.  Contrariamente ao que se pensa comummente, os burros não são teimosos. São muito aptos para brincar e trabalhar, mas gostam de que os criadores lhes deem muita atenção. O deitarem-se ao chão e fazerem as suas diabruras, além de constituir um meio de fricção, serve também para exibicionismo asinino.
Quanto à alimentação, o burro come muito pouco e contenta-se com folhas e grãos que os outros animais soem deixar de lado. São é muito esquisitos com a água, que tem de ser limpa e sem cheiro. O leite de burra parece ser bom para a saúde e consta que Cleópatra se banhava com esse benéfico suco. Há também povos que comem a carne de asno. Por seu turno, os árabes nómadas faziam as suas tendas com peles de burro. E os povos antigos faziam ainda dos ossos o corpo das flautas, mais duras e mais sonantes que as feitas de ossos das outras espécies. 
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Francisco de Assis chamava-lhe irmão pela docilidade e préstimo. A burra de Balaão falou, quando era difícil perceber a vontade divina. O burro (ou a burra), segundo a tradição, é testemunha do nascimento de Jesus (contra o que alguns apregoam, Bento XVI não expulsou o burro e o boi do presépio; apenas declarou que o Evangelho de Lucas os não menciona); serve a Família Sagrada na fuga para o Egito; e, sobretudo, serve o objetivo messiânico de Jesus, que entra em Jerusalém montado num jumento dócil e humilde, em vez de entrar montado soberbamente num cavalo ao modo dos outros reis e senhores. Grande amigo e instrumento da humildade messiânica é o burro!

2015.07.28 – Louro de Carvalho

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