Como é usual, também este ano,
após a saída dos resultados da 1.ª fase das provas finais do 9.º ano de
escolaridade, nas disciplinas de Português e de Matemática, alguns alunos
sujeitaram-se à 2.ª fase.
A comunicação Social, a propósito
da prova de Português, verteu para as suas páginas a reação da APP (Associação dos Professores de
Português) sobre a resposta a uma questão inserida no “Grupo II –
educação literária” e atinente ao seu “Texto B”. Eis a questão: “4.
Lê as estrofes 89 e 93 do Canto IV de Os
Lusíadas, de Luís de Camões”. E vem a seguir o texto:
TEXTO B
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Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrecentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
[…]
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Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
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Luís de Camões, Os
Lusíadas, edição de A. J. da Costa Pimpão, Lisboa, MNE/IC, 2003
A seguir, é formulado o item da
questão que levantou dúvidas: “4.1. Identifica o episódio a que estas estrofes pertencem e o plano da ação
em que se inserem”.
***
Defendem os críticos – mas eu,
como não estou com atividades conexas com o 9.º ano, já não tive acesso à
página do IAVE-IP onde alegadamente vinha, como resposta única em relação ao plano da ação em que se inserem as
estrofes, o “plano da viagem” – que deviam ser admitidas duas respostas: o
“plano da viagem”; e o “plano da História de Portugal”. E sustentavam a sua
tese no pressuposto de que uma personalidade de referência, Jorge de Sena,
insere estas estrofes no “plano da História de Portugal”. Por outro lado,
entendem que o IAVE deveria não considerar errada qualquer resposta à questão 4.1, que não fizesse referência a
qualquer dos planos da ação, porque as metas curriculares não consideram este
ponto.
Consultada a página do IAVE-IP,
hoje dia 23 de julho, pode ler-se:
Exemplo de resposta
As estrofes transcritas pertencem ao episódio das despedidas
(em Belém) / da partida (das naus) e inserem-se no plano da viagem / da História
(de Portugal).
Nota – Em relação ao episódio, são também aceites
outras referências consideradas cientificamente válidas.
***
Em primeiro lugar, quem elabora
provas deve estar a par dos programas e metas curriculares, bem como dos modos
como comummente os interpretam investigadores/professores e autores/editores de
manuais escolares e materiais de apoio. Em caso de não existência de consenso,
numa prova nacional deve evitar-se a inserção destas matérias em questões com
resposta de escolha múltipla (aliás,
o que, em geral deveria ser evitado em provas de Português) e em
questões de resposta curta.
Assim, a identificação do
episódio a que aquelas estrofes pertencem e o plano de ação em que se inserem
deveriam ser objeto de resposta flexível, mas de fundamentação obrigatória com
base em elementos textuais presentes e os de contexto que devem ser já do
conhecimento dos alunos. E esta exigência de fundamentação deveria constar do
enunciado da questão.
Nestes termos, é pacífico que as estrofes transcritas pertencem ao episódio das despedidas (em Belém)
/ da partida (das naus) ou, ainda, dos preparativos para a viagem. E a nota
“em relação ao episódio, são também
aceites outras referências consideradas cientificamente válidas” devia ser
considerada redundante ou excrescente, deixando à liberdade e à autonomia
científica do professor/corretor o ónus da apreciação, a menos que,
desgraçadamente, o IAVE-IP queira transformar os professores/corretores em
autómatos ou paus mandados dessa famigerada e altamente iluminada entidade
independente, que só é independente porque o MEC assim o declarou.
No atinente ao(s) plano(s) de
ação em que se inserem as preditas estrofes, o problema é mais complexo. Antes
de mais, é preciso dizer que, do meu ponto de vista, não têm razão os que
entendem que a questão não se deve colocar a alunos do 9.º ano. É certo que as
metas curriculares, no quadro da educação literária, não referem explicitamente
os planos de ação d’ Os Lusíadas.
Porém, o texto das metas curriculares inclui as estrofes ou estâncias 84-93 do Canto IV na “lista de obras e textos para educação
literária – 9.º ano”. Depois, em observação, o texto dispõe: “confrontar referenciais constantes do
Programa”.
Ademais, tendo em linha de conta
que a epopeia de Camões é, por natureza, uma narrativa em verso, convém
considerar o que vem estabelecido no texto sobre o texto literário e, neste, o
atinente à narrativa. Assim, o n.º 20 das Metas
Curriculares – 9.º ano estabelece que o aluno deve:
Identificar temas, ideias principais, pontos de vista e
universos de referência, justificando;
Reconhecer e caraterizar elementos constitutivos da
narrativa (estrutura; ação e episódios;
personagens, narrador da 1.ª e 3.ª pessoa; contextos espacial e temporal);
Analisar o ponto de vista das diferentes personagens;
Reconhecer a forma como o texto está estruturado,
atribuindo títulos a partes e a subpartes;
Identificar processos da construção ficcional relativos
à ordem cronológica dos factos narrados e à sua ordenação na narrativa.
Ora, é claro que as metas
curriculares não dispensam da ação que habitualmente também se desenvolve em
planos, patamares de complexidade, situações de relevância, etc.
Além disso, no atinente à leitura
(cuja capacidade também se
avalia nesta prova), o texto das metas refere no seu n.º 11 (“ler
para apreciar textos variados”), ponto 1: “expressar, de forma fundamentada e sustentada, pontos de vista e
apreciações críticas suscitados pelos textos lidos em diferentes suportes”.
De outro modo, os redatores de prova ficariam excessivamente limitados à letra
dos programas. E o aluno tem de estar capacitado para analisar qualquer texto
literário ou não literário compatível com o seu nível etário e escolar
Quanto a personalidades de
referência, como dizem – e bem – ser Jorge de Sena, elas fazem escola e o mal é
serem seguidas de forma acrítica. Com efeito, comummente os estudiosos remetem
para o plano da História (de
Portugal) todo o Canto IV, sem a preocupação de incluir ou excluir
algumas das suas estrofes.
***
Do meu ponto de vista, a questão
é dilemática. Com efeito, a viagem de Vasco da Gama e companheiros faz parte da
História de Portugal (HP),
onde cronologicamente se encaixa. No entanto, segundo a economia da epopeia, a
ação central começa in mediis rebus
ou projeta-se in medias res. No caso
vertente d’ Os Lusíadas, a História
de Portugal fica encaixada na viagem pelo recurso à analepse através da qual, a
pedido do rei de Melinde, Vasco da Gama faz a situação geográfica de Portugal (não sei porque se fala unicamente de
História e não de História e Geografia), informa sobre a origem deste
povo, narra a História desta gente e a viagem até Melinde. Depois, vêm outros
momentos de encaixe da História de Portugal na viagem, que não vêm agora ao
caso.
Quanto às presentes estrofes, não
entendo por que motivo estas fazem parte do plano da HP e as estrofes 1 e 2 do
Canto V já pertencem, segundo os autores, inequivocamente ao plano da viagem.
Havemos de notar que já a estrofe
84 do canto IV começa a marcar o cenário do dia da partida (início da viagem): “Já no porto da ínclita Ulisseia (v 1)… as naus prestes estão (v 5), porque a gente marítima
e a de Marte estão pera seguir-me a toda a parte” (vv 7-8). O
narrador assume-se claramente com narrador de 1.ª pessoa (o narrador da viagem) e 1.ª pessoa do singular. Só por grande
distração estes segmentos não são atingentes à viagem. E a estrofe 85 continua
o cenário.
Na estrofe 86, o narrador de 1.ª
pessoa do plural (enalagê personas) enuncia: “Despois de aparelhados desta sorte (v 1), de quanto a tal viagem pede
e manda (v 2), aparelhámos a alma para a morte (v 3). Além de o narrador o dizer
expressamente, esta preparação (confissão,
missa e comunhão) foi engendrada para a viagem e não para a HP. E a
estrofe 87 continua: “partimo-nos assi do
santo templo” (v 1);
“… se contemplo / Como fui destas praias
apartado” (vv 5-6), “Cheio de dentro de dúvida e receio, / Que
apenas nos meus olhos ponho o freio” (vv 7-8). Que eu saiba, este narrador tem medo da
viagem e não da HP.
Por seu turno, a estrofe 88
contrapõe à “gente da cidade” (v
1) o “nós co’ a virtuosa
companhia / De mil religiosos diligentes, / Em procissão solene, a Deus orando,
/ Pera os batéis viemos caminhando” (vv 5-8). Isto é viagem, embora
inserido na HP. E a estrofe 89 refere que “por
perdidos as gentes nos julgavam” (v 2) “em tão longo caminho e
duvidoso” (v 1). Ora
esse caminho é o da viagem e não do da HP.
Por seu turno, as estrofes 90 e
91 apresentam a mãe e a esposa a despedir-se respetivamente do filho e do
esposo, que iam para a viagem e não para a HP. Também a estrofe 92 alia ao desgosto
das pessoas o dos “montes” e da “branca areia”. E a estrofe 93 refere que o “nós”
que estava nas embarcações da partida/viagem nem levantava os olhos para quem
se despedia. E “Por nos não magoarmos, ou
mudarmos / Do propósito firme começado,
/ Determinei de assi nos embarcarmos, / Sem o despedimento costumado, / Que,
posto que é de amor usança boa, / A quem se aparta, ou fica, mais magoa” (vv 3-8).
Ora aquele propósito, de que não
se deviam arrepender, era a viagem e não a HP.
A seguir, vem o episódio do velho
do Restelo (estrofes 94-104),
que anatematiza a viagem e não propriamente a HP, a não ser num contexto mais
geral da condição humana liderada pela ambição da fama e das riquezas, sem
acautelar os perigos físicos, morais, familiares e sociais. Com efeito, o
narrador sublinha a postura do velho, “Postos
em nós os olhos, meneando / Três
vezes a cabeça descontente” (vd
est. 94, vv 3-4). O seu descontentamento é sobre os viajantes e não
sobre os construtores da HP em si. E a dinâmica da viagem, embora em fase de
partida, prossegue com a estrofe 1 do canto V.
Ademais, diga-se que a viagem não
surge repentinamente. É óbvio que ela foi preparada e bem preparada; e as
pessoas foram ao local despedir-se e assistir ao espetáculo da partida e
levaram com o discurso do velho, “cum
saber só de experiências feito” (vd est. 94, v 7).
***
Quae cum ita sint, tenho de dar razão em tese à razão do IAVE-IP,
que, por vezes tenho criticado. Só não percebo por que motivo não se explicou
cabalmente e até voltou atrás com tanta facilidade. Terá sido por receio de
algum tribunal administrativo e fiscal? Será que a ciência e a literatura
também se podem judicializar? Porque não fazer evoluir os conteúdos de ensino,
embora homenageando as personalidades de referência, sem as seguir
acriticamente com o argumento de autoridade (só porque, em grego, αυτὸϛ ´έφη ou, em latim, magister dixit).
Os elementos intra e intertextuais devem ser mais determinantes na análise e na
hermenêutica.
2015.07.23 – Louro de Carvalho
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