terça-feira, 7 de julho de 2015

O tom da viagem papal à América do Sul

Francisco iniciou a sua viagem de nove dias (5 a 13 de julho) a três dos países mais pequenos da América do Sul – Equador, Bolívia e Paraguai. Nesta sua visita pastoral, o Papa assume um duplo e significativo papel: testemunha e profeta do desígnio divino; e eco humano junto de Deus e dos homens dos dramas dos que sofrem o desamparo, o isolamento, a doença, a pobreza, a discriminação social, política e económica. Provavelmente, esta segunda dimensão do homem de Igreja será a mais badalada pelos diversos órgãos de Comunicação Social. Porém, a adesão do grosso dos detentores dos poderes ao testemunho dramático do sofrimento dos excluídos será talvez pouco significativa, dado que muito facilmente se subestima a importância e significado da primeira dimensão, que é a base e o suporte sustentável da segunda.
Os jornais asseguram que o Papa, nesta viagem, fará eco das “preocupações políticas e sociais” daqueles países, “com particular atenção para os mais pobres e para o estado do Planeta”. Por outro lado, salientam que a viagem ocorre “três semanas após a apresentação da encíclica Laudato Si’, que constitui um apelo urgente pela defesa do ambiente”, estabelecendo o paralelo entre esta “primeira visita à América do Sul em dois anos” e a sua primeira viagem na Europa, quando escolheu a Albânia e a Bósnia” (vd, por exemplo, JN, de hoje). E estes países debatem-se com a pesada dívida externa (sobretudo o Equador) e os dilemas entre a defesa da floresta amazónica e a exploração do petróleo, os direitos dos indígenas e a satisfação da ambição negocial, a subsistência dos Estados e as liberdades, a democracia e a segurança.
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Convém esclarecer que esta não é a primeira viagem do atual bispo de Roma ao continente sul-americano, já que Francisco esteve no Brasil em julho de 2013 no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) – a XXVIII JMJ. Porém, alguns não atribuem a esta o estatuto de “primeira” viagem deste Papa, porque a viagem ao Brasil foi prevista e pensada por e para Bento XVI. Não concordo, uma vez que Francisco poderia não ter querido realizar essa viagem, podia estar impossibilitado por motivos de saúde ou poderia ter querido ou ser induzido a delegar o acompanhamento da JMJ na pessoa de um legado a latere. Ora, pensada ou não por si e para si, o certo é que Francisco foi quem realizou a viagem ao Brasil e foi ele quem acompanhou a JMJ; e ela foi programada já tendo em conta a idiossincrasia bergogliana. É que os factos são o que são e não podem ser negados nem contornados, ou seja, não é lícito interpretá-los à luz do que teriam sido se tivessem acontecido de outro modo.
Tanto assim é que, apesar de ela ter sido preparada pelo seu predecessor e se ter dito que foi escrita a quatro mãos, a encíclica Lumen Fidei é mesmo deste Papa, porque ele a assumiu. Poderia ter determinado a publicação do documento na fase em que o encontrou, caso o Papa emérito desse a sua anuência, ou remetê-lo para a propriedade autoral do mesmo.
Parece que se pretende, algumas vezes, exagerar na singularização de alguns presumíveis inéditos e no esquecimento de alguns factos. Recordo que João Paulo II esteve em Portugal por quatro vezes – 12 a 15 de maio de 1982; 2 de março de 1083; 10 a 13 de maio de 1991; e 12 e 13 de maio de 2000. Todavia, habitualmente apontam-se apenas três presenças do pontífice polaco em Portugal e esquece-se a visita de 1983. É certo que esta resulta de uma escala no quadro da Viagem Apostólica à América Central (Costa Rica, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Guatemala, Honduras, Belize e Haiti) – com escala em Portugal (2-10 de março de 1983). Contudo, a aeronave que transportava o Papa e comitiva aterrou em solo português; o Pontífice foi recebido pelas entidades do Estado ao mais alto nível, deslocou-se à sala VIP do aeroporto de Lisboa e proferiu um notável discurso. Ademais, a escala em Lisboa foi programada – não era uma escala meramente técnica; tinha um objetivo de reforço da relação entre o Papa e Portugal – e o Papa não se limitou ao telegrama protocolar endereçado ao Chefe do Estado ao atravessar o território aéreo nacional.
Quanto às viagens do Papa Francisco na Europa, a visita à Albânia foi efetivamente a primeira. E o Papa justificou-se com o volume e a intensidade do sofrimento daquele povo – razões que o levaram à visita à Bósnia no âmbito do que foi a sua 3.ª viagem em térreas europeias fora de Itália. Não obstante, não se pode olvidar o interesse eclesial, europeu e mundial da sua segunda viagem na Europa a Estrasburgo com os notáveis discursos no Conselho da Europa e no Parlamento Europeu, que em tempos comentei.
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Mas, centrando-nos no tema principal desta reflexão e acentuada que foi a dupla dimensão da personalidade e da missão papal, ocorre-nos dizer que o tom da sua viagem há de perceber-se pelas palavras que proferir e pelos gestos que assumir – uns espontâneos, outros programados.
No entanto, pode desde já, como que antecipar-se o tom geral da sua prestação pastoral neste evento novenal pela mensagem de vésperas da viagem, pela mensagem à chegada e pela ambição dos números do próprio programa.
Na mensagem vídeo do Santo Padre emitida às vésperas da Viagem apostólica, ele estabelece o lamiré: “manifestar a minha proximidade, simpatia e boa vontade”; compartilhar as vossas preocupações e transmitir-vos o meu carinho e a minha proximidade”; e “alegrar-me convosco”.
E, depois:
“Quero ser testemunha da alegria do Evangelho e levar-vos a ternura e a carícia de Deus, nosso Pai, especialmente aos seus filhos mais necessitados, aos idosos, aos doentes, aos presos, aos pobres e a quantos são vítimas da cultura do descartável”.
Do “amor do Pai tão misericordioso” resulta que descobrimos sem limites “a face do seu Filho Jesus em cada um dos nossos irmãos”. Será assim suficiente “tornar-se próximo”. “É suficiente agir como o bom samaritano, vai e faz também tu o mesmo, aproxima-te, não te desvies”. E da “fé que todos nós compartilhamos” nasce e jorra a “ fonte de fraternidade e solidariedade”; pelo que a fé “constrói povos, forma uma família de famílias, promove a concórdia e encoraja o desejo e o compromisso em prol da paz”.
Ficam aqui bem evidenciadas as vertentes da relação de Deus e com Deus com referência explícita e mobilizadora à pessoa de Cristo e, como consequência incontornável, o compromisso com todas as dimensões, espaços e implicações da paz.
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Na cerimónia de boas-vindas à chegada ao Aeroporto Internacional  “Mariscal Sucre” de Quito, perante as autoridades do Equador, o Papa, mostrando sentir-se bem em terra tão hospitaleira e dando largas à sua alegria e gratidão por ter sido bem acolhido, augurou ao católico Presidente da República “votos de todo o bem para o exercício da sua missão”: que “possa conseguir o que deseja para o bem do seu povo.
Depois, recordando que visitara este país “em diferentes ocasiões por motivos pastorais”, garante que também desta vez vem como “testemunha da misericórdia de Deus e da fé em Jesus Cristo”. E, verificando que esta fé, “durante séculos, modelou a identidade deste povo e deu muitos frutos bons”, comprova-o com a apresentação de alguns exemplos humanos de santidade que “viveram a fé com intensidade e entusiasmo e, praticando a misericórdia, contribuíram para melhorar, em diferentes áreas, a sociedade equatoriana do seu tempo”. Assegura que hoje também se encontram
“no Evangelho as chaves que nos permitam enfrentar os desafios atuais, avaliando as diferenças, fomentando o diálogo e a participação sem exclusões, para que as realizações alcançadas no progresso e desenvolvimento se consolidem e possam garantir um futuro melhor para todos, prestando especial atenção aos nossos irmãos mais frágeis e às minorias mais vulneráveis, uma dívida que tem ainda toda a América Latina”.
Ora, se incumbe aos responsáveis do poder político a definição e o lançamento das políticas públicas adequadas para alcançar este desiderato, compete à Igreja oferecer o seu empenho e colaboração ao serviço deste povo “que com tanta dignidade se levantou”.
E, ao dar-se conta de que, no Equador, se encontra o ponto mais próximo do espaço exterior – o Chimborazo, assim chamado por ser o lugar mais próximo do sol, da lua e das estrelas – o Papa parte para a grande metáfora de Cristo e da Igreja:
“Nós, cristãos, vemos Jesus Cristo como se fosse o sol e a Igreja como a lua; a lua não tem luz própria e, se se esconder do sol, fica às escuras. O sol é Jesus Cristo e, se a Igreja se afastar ou esconder de Jesus Cristo, fica às escuras e não dá testemunho.”.
Então, o programa papal para estes dias será fazer com que se torne mais evidente para todos a proximidade “do Sol que nasce do Alto”, sendo nós reflexo da sua luz, do seu amor.
Assim, os cristãos têm de se voltar para Cristo, encontrando nele a centralidade da vida e missão da Igreja e de cada um dos seus membros. Cristo é a expressão mais perfeita e genuína – a única e fontal – do rosto misericordioso de Deus, competindo aos cristãos, em referência a Ele e em comunhão com Ele, o ónus e a alegria do testemunho do Evangelho por palavras, atitudes e obras consequentes com esse testemunho.
Os cristãos enquanto discípulos de Cristo Luz dos Povos são eles próprios e a Igreja que eles constituem verdadeira luz do mundo. Todavia, eles não são a origem dessa luz. Eles funcionam como a Lua, que não tem luz própria, mas a recebe do Sol. A referência primeira é Cristo e não o cristão ou a Igreja que ele integra (radica nesta realidade a exigência papa da não autorreferencialização da Igreja). A Igreja é discípula, serva, trabalhadora, missionária, mãe, portadora de Cristo e da Sua luz em prol do mundo. É verdadeiramente cristófora e lucífera. E, nela e com ela, os cristãos são discípulos, servos, trabalhadores, missionários, filhos e participantes da função maternal da Igreja, cristóforos e lucíferos.
Por isso, o Papa apela a que não percam a capacidade de dar graças a Deus pelo que Ele fez e faz por todos, a capacidade de proteger o humilde e o simples, de cuidar das crianças e dos idosos (que são a memória do seu povo), de confiar na juventude, e de maravilhar-se com a nobreza da sua população e a beleza singular do seu país, que é o paraíso, nas palavras do Presidente da República.
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A visita papal terá de servir de farol da fé e da esperança para o povo do Equador, que se sente superonerado com impostos e peado pelo autoritarismo governamental, na defesa dos sem-terra e dos habitantes dos bairros de lata; na Bolívia, espera-se a defesa dos indígenas; e, no Paraguai, considerado o segundo país mais corrupto da América do Sul, Francisco ouvirá vários grupos de ativistas e dirigir-lhes-á uma palavra de orientação.
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O próprio programa da viagem apostólica aponta marcos do ideário cristão papal e do compromisso com os diversos mundos. Vejam-se como significativos, além das solenes celebrações eucarísticas e dos encontros com os bispos, sacerdotes, seminaristas e religiosos: a visita ao santuário da Divina Misericórdia; o encontro com o mundo escolar e universitário; dois encontros com a sociedade civil; a visita à Casa de Repouso das Missionárias da Caridade; a visita ao Centro de Reabilitação Santa Cruz – Palmas; a visita ao Hospital Pediátrico “Niños de Acosta Ñu”; a visita à população de Bañado Norte; e o encontro com os jovens.
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O programa tem tudo em termos de eficiência humana com vista à eficácia pastoral. Porém, se Deus não ajudar, os homens encontrarão maneiras de opor a sua resistência – escondida ou aberta – aos esforços dos filhos da luz. Por isso, enquanto o sucessor de Pedro desempenha a árdua tarefa de confirmar os irmãos na fé (às vezes, no sofrimento e na oposição hipócrita ou ostensiva de alguns), postula-se a oração ardente da Igreja, como nos primórdios (cf At 12,5). Deus adiuvet!

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