Passa a 13 de
setembro o 130.º aniversário do escritor Aquilino Gomes Ribeiro, um dos poucos
escritores contemporâneos que, na esteira de Camilo Castelo Branco, burilou o
linguajar do povo com a mestria da genuinidade telúrica sem o despregar das raízes
clássicas e das vivências autóctones. Se é certo que outros, como Eça de
Queirós (e, nos aspetos
da construção das personagens e da crítica política, social, financeira e
económica, Eça tornou-se inequipolente), Camilo é o escritor da correnteza da pena de pato e o Aquilino
beirão escreveu com a pesada leveza da inestimável pena de aço. Ou seja, para
estes dois, é o gosto da língua que vale como língua emoldurada, é certo, pela
cercadura literária. Não se entende muito bem, a não ser pelo hipotético
incómodo de ter de os ler com um dicionário na mão, como é que, embora
espreitem o sistema escolar, andem dele tão arredios.
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Nascido a 13
de setembro de 1885 no concelho de Sernancelhe, freguesia de Carregal (não se percebe o motivo por que
escrevem “Carregal da Tabosa” e não “Carregal, de Sernancelhe”), o filho de Mariana do Rosário
Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro teve uma infância de miúdo
singularmente travesso, a ponto de ainda hoje se encontrar na zona quem tenha
ouvido histórias picarescas daquele donzel fadado pela família (em especial pela mãe) para a carreira eclesiástica. O
ingresso no Colégio da Lapa, em 1895, foi a primeira etapa do roteiro que havia
de levar para Lamego, mais tarde, em 1902, para Viseu onde vai estudar
Filosofia, e, pouco tempo depois, para o Seminário de Beja, frequentado pelos
ordinandos mais recalcitrantes ou nascidos fora da constância do matrimónio
parental, como era o caso, ainda, por cima, filho de clérigo. Foi expulso do
seminário em 1904, após réplica frontal a uma dura acusação do Padre Manuel
Ançã, um dirigente da instituição. Mas a vida continuou entre a oferta madrasta
e os momentos de realização pessoal
“Alcança
quem não cansa” é o ex-libris assumido por Aquilino Ribeiro, o
ilustre “obreiro das letras” que trabalhou arduamente quase até ao dia da
morte, a 27 de maio de 1963, no hospital da CUF, depois de uma viagem ao Porto,
onde ocorrera uma das muitas homenagens que o país, consciente e temerário,
rendia aos cinquenta anos de labor do “mestre”, cuja arte ficcional começara a
vir a lume em 1913 com a edição do livro de contos Jardim das Tormentas, e
terminava com o epitáfio “Mais não pude”.
Episódios do
seu tempo infanto-juvenil encontram-se claramente espelhados em A Via Sinuosa, na dilogia Cinco Réis de Gente e Uma
Luz ao Longe, com o decurso da ação, deste último título, no Colégio da
Lapa, e, à laia de memórias, em Um
Escritor Confessa-se, publicado postumamente.
Este último foi escrito em 1960 e esteve para ser publicado em 1961, mas
Aquilino, nas palavras do filho, Aquilino Ribeiro Machado, no preâmbulo aos Inéditos, “entendeu prudente adiar a
publicação até uma altura em que o gado não andasse tão mosqueiro” – razão pela
qual a obra deveio póstuma. No seu estilo tão caraterístico, nestas páginas
mais cosmopolita que regionalista, Aquilino passa em revista os anos da
infância e juventude rebelde: o conceito jansenista da vida sacerdotal, a Lisboa
finissecular, a estúrdia boémia, os rituais carbonários, os mistérios da Alta Venda, a burundanga das cadeias
civis, os interrogatórios da polícia, as fugas da prisão, o Regicídio, a violência nefanda, as catilinárias
contra a Casa de Bragança, as recordações de Paris, as evocações da primeira
mulher, etc. Pudessem todos os escritores ter tanto para contar! Em artigo
famoso, publicado na morte de Aquilino, Jorge de Sena disse que ele era “um
escritor criado à custa da realidade”, asserção que o livro ajuda a conferir. Neste volume, topamos abundantes relatos de um período
de empenho político e de temerárias aventuras, de que há também discurso
ficcional no romance Lápides
Partidas, que prossegue a saga de A
Via Sinuosa. É o tempo que Aquilino passa em Lisboa, chegado em 1906, e
que reparte pela escrita de artigos de opinião, pela tradução e pela redação,
em parceria com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro, ficção
simultaneamente de propaganda republicana e de crítica sarcástica às figuras da
monarquia, a começar por D. Carlos.
***
Genuíno “homem
de ação”, um tipo social muito exaltado no início do século XX, aderiu por
completo ao republicanismo, pela escrita e participação em atividades
subversivas que o levaram à cadeia, de que se evadiu em cenários rocambolescos.
De clandestino em Lisboa passou ao exílio em Paris, cursando Filosofia e Sociologia
na Sorbonne, onde recebeu lições de mestres como George Dumas, André Lalande,
Levy Bruhl, Durckeim, e conviveu com os intelectuais portugueses que, por
motivos políticos, se viram forçados a viver no estrangeiro. Os estudos, a
política, os projetos editoriais materializados com os companheiros, as
crónicas que enviava para Portugal, a observação, as pesquisas de bibliófilo
ainda lhe deixavam fôlego para escrever a coletânea de contos Jardim das Tormentas. E
conheceu Grete Tiedemann, a primeira mulher e mãe do filho mais velho, Aníbal.
No dealbar da I Grande Guerra,
sentiu-se forçado a regressar ao seu país com a família, sem concluir qualquer
dos mencionados cursos.
A vida
parisiense dos antecedentes do conflito armado vem exposta no volume diarístico É a Guerra, com a crítica
acutilante ao ministro da Legação de Portugal em Paris. Já em Portugal, ocuparam-no,
para lá da escrita ficcional e da escrita cronística para a imprensa periódica,
o trabalho de professor no Liceu Camões, onde ficou por três anos, e, posteriormente,
o cargo de 2.º bibliotecário na Biblioteca Nacional, para onde entrou a
instâncias de Raul Proença. Este posto permitiu-lhe alimentar o gosto de
bibliófilo, que o levaria a produzir trabalhos de índole investigativa,
publicados nos Anais das
Bibliotecas e Arquivos, e que transpareceram na produção romanesca. A par
disso, com colegas de trabalho – um “grupo
de intelectuais altamente representativo da mentalidade do tempo” –
desenvolveu uma atividade cívica com expressão visível na Seara Nova, revista preponderante
na difusão dos ideais republicanos, mormente sociais e educativos, e no evoluir
da conturbada vida política da I República.
A faceta de “homem
de ação” frutificou ainda nos fins da monarquia e reafirmou-se com a sua
participação, em 1927, na revolta abortada contra a ditadura subsequente ao
golpe de 28 de maio de 1926, sendo por isso forçado a novo exílio em Paris, já
viúvo. De volta a Portugal, participou numa ação antirregime, o movimento do
regimento de Pinhel, de que resultou a sua captura e a prisão no Fontelo, em
Viseu, donde fugiu para se escapulir pelas serranias beirãs e encetar a difícil
rota que o levaria mais uma vez até Paris.
Terminou o
exílio em 1932, com o regresso clandestino a Portugal, após novas núpcias com
Jerónima Dantas Machado (a
Gigi), filha de
Bernardino Machado, o presidente deposto por Sidónio Pais, e nascimento, em
1930, de Aquilino, o segundo filho do escritor e único deste casamento.
A amnistia,
em 1932, da pena que lhe fora aplicada após julgamento à revelia e condenação
em 1929, permitiu-lhe regressar à capital, fixando-se na Cruz Quebrada.
Acalmados os génios conspirativos e os génios persecutórios, dedicou-se
plenamente à escrita, continuando a produção ficcional, o trabalho de tradução,
o trabalho ensaístico e a colaboração na imprensa periódica. Em 1933, o
conjunto de novelas As Três
Mulheres de Sansão recebeu o
Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, e, em 1935, foi
eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornaria sócio
efetivo em 1957.
O ativista
político interviria na crítica socioeconómica com Volfrâmio (1942), e retratar-se-ia no enredo de, por
exemplo, O Arcanjo Negro (1947)
e de O Homem que Matou o Diabo (1930). Já na década de 20 editara duas
obras que, a par de Terras do
Demo e de A Casa Grande de
Romarigães, constituem alguns
dos textos mais emblemáticos: o picaresco Malhadinhas e o indizível Andam Faunos pelos Bosques,
genial sátira tolerante ao conservadorismo cristão e um hino ao amor livre, avalizado
tanto pelo anarquismo como pela visão veterotestamentária, e insólito ponto de
retorno constante do seu pensamento dúctil e cultivadíssimo.
Porém, mais
do que o reconhecimento oficial, foram a sua grandeza de escritor e a
temeridade política que lhe abonaram o epíteto de mestre. Nunca abdicou da
originalidade, um dos seus grandes valores estéticos, acabando por não alinhar
em nenhum dos movimentos literários de que foi contemporâneo, do modernismo ao
presencismo ou ao neorrealismo. Não perdeu a consciência política e cívica que
o animou desde cedo, marcada pelo ativismo e pela tenacidade com que promoveu a
agregação formal e institucionalizada dos escritores até criar, com alguns
contemporâneos, a Sociedade Portuguesa de
Escritores, de que foi fundador e presidente.
O tempo não
lhe subtraiu o prestígio de grande figura da escrita, reconhecido dentro e fora
de Portugal. Comprova-o a apresentação da sua candidatura ao Nobel, as
homenagens que recebeu no Brasil, em 1952, e o extraordinário movimento que se
desenvolveu em sua defesa depois da publicação do romance Quando os Lobos Uivam, em
1958, considerado pelo regime como injurioso das instituições de poder e
levando à instauração de um processo-crime em que foi defendido pelo advogado
Heliodoro Caldeira e apoiado por cerca de 300 intelectuais portugueses que se
juntaram num abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo. Também
François Mauriac redigiu uma eloquente petição em defesa de Aquilino, assinada,
nomeadamente, por Louis Aragon e André Maurois e publicada na imprensa
francesa. O processo-crime acabaria por ser arquivado cerca de vinte meses
depois da sua instauração, na sequência de uma amnistia. Diz tudo o
neoaforismo, Quando os lobos julgam, a
Justiça uiva.
Mesmo sem se
fazer completa justiça, encerrava-se uma ação injuriosa erguida contra um dos
nomes maiores das letras portuguesas, que trouxe à lusa língua uma plasticidade
impressionante combinando o rústico com o erudito, um observador atento das
'grandezas e misérias' do género humano, o criador duma galeria de personagens
passando pelo campesino beirão, pelo pequeno burguês de província, pelo
cosmopolita, pelo idealista, pelo obcecado, pelo asceta e pelo sibarita, pela
mulher tentadora ou ardilosa e pela donzela solícita e generosa ou candidamente
disponível...alguém que, enfim, por via da reflexão, saber, trabalho, estudo e
pertinácia, deixou para os vindouros uma visão exaltante da existência,
temperada pela melancolia de quem não esquece a inevitável efemeridade de todas
as coisas.
2015.09.10 – Louro de Carvalho
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