quinta-feira, 10 de setembro de 2015

No 130.º aniversário de Aquilino Ribeiro

Passa a 13 de setembro o 130.º aniversário do escritor Aquilino Gomes Ribeiro, um dos poucos escritores contemporâneos que, na esteira de Camilo Castelo Branco, burilou o linguajar do povo com a mestria da genuinidade telúrica sem o despregar das raízes clássicas e das vivências autóctones. Se é certo que outros, como Eça de Queirós (e, nos aspetos da construção das personagens e da crítica política, social, financeira e económica, Eça tornou-se inequipolente), Camilo é o escritor da correnteza da pena de pato e o Aquilino beirão escreveu com a pesada leveza da inestimável pena de aço. Ou seja, para estes dois, é o gosto da língua que vale como língua emoldurada, é certo, pela cercadura literária. Não se entende muito bem, a não ser pelo hipotético incómodo de ter de os ler com um dicionário na mão, como é que, embora espreitem o sistema escolar, andem dele tão arredios.
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Nascido a 13 de setembro de 1885 no concelho de Sernancelhe, freguesia de Carregal (não se percebe o motivo por que escrevem “Carregal da Tabosa” e não “Carregal, de Sernancelhe”), o filho de Mariana do Rosário Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro teve uma infância de miúdo singularmente travesso, a ponto de ainda hoje se encontrar na zona quem tenha ouvido histórias picarescas daquele donzel fadado pela família (em especial pela mãe) para a carreira eclesiástica. O ingresso no Colégio da Lapa, em 1895, foi a primeira etapa do roteiro que havia de levar para Lamego, mais tarde, em 1902, para Viseu onde vai estudar Filosofia, e, pouco tempo depois, para o Seminário de Beja, frequentado pelos ordinandos mais recalcitrantes ou nascidos fora da constância do matrimónio parental, como era o caso, ainda, por cima, filho de clérigo. Foi expulso do seminário em 1904, após réplica frontal a uma dura acusação do Padre Manuel Ançã, um dirigente da instituição. Mas a vida continuou entre a oferta madrasta e os momentos de realização pessoal
 “Alcança quem não cansa” é o ex-libris assumido por Aquilino Ribeiro, o ilustre “obreiro das letras” que trabalhou arduamente quase até ao dia da morte, a 27 de maio de 1963, no hospital da CUF, depois de uma viagem ao Porto, onde ocorrera uma das muitas homenagens que o país, consciente e temerário, rendia aos cinquenta anos de labor do “mestre”, cuja arte ficcional começara a vir a lume em 1913 com a edição do livro de contos Jardim das Tormentas, e terminava com o epitáfio “Mais não pude”.
Episódios do seu tempo infanto-juvenil encontram-se claramente espelhados em A Via Sinuosa, na dilogia Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe, com o decurso da ação, deste último título, no Colégio da Lapa, e, à laia de memórias, em Um Escritor Confessa-se, publicado postumamente.
Este último foi escrito em 1960 e esteve para ser publicado em 1961, mas Aquilino, nas palavras do filho, Aquilino Ribeiro Machado, no preâmbulo aos Inéditos, “entendeu prudente adiar a publicação até uma altura em que o gado não andasse tão mosqueiro” – razão pela qual a obra deveio póstuma. No seu estilo tão caraterístico, nestas páginas mais cosmopolita que regionalista, Aquilino passa em revista os anos da infância e juventude rebelde: o conceito jansenista da vida sacerdotal, a Lisboa finissecular, a estúrdia boémia, os rituais carbonários, os mistérios da Alta Venda, a burundanga das cadeias civis, os interrogatórios da polícia, as fugas da prisão, o Regicídio, a violência nefanda, as catilinárias contra a Casa de Bragança, as recordações de Paris, as evocações da primeira mulher, etc. Pudessem todos os escritores ter tanto para contar! Em artigo famoso, publicado na morte de Aquilino, Jorge de Sena disse que ele era “um escritor criado à custa da realidade”, asserção que o livro ajuda a conferir. Neste volume, topamos abundantes relatos de um período de empenho político e de temerárias aventuras, de que há também discurso ficcional no romance Lápides Partidas, que prossegue a saga de A Via Sinuosa. É o tempo que Aquilino passa em Lisboa, chegado em 1906, e que reparte pela escrita de artigos de opinião, pela tradução e pela redação, em parceria com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro, ficção simultaneamente de propaganda republicana e de crítica sarcástica às figuras da monarquia, a começar por D. Carlos.
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Genuíno “homem de ação”, um tipo social muito exaltado no início do século XX, aderiu por completo ao republicanismo, pela escrita e participação em atividades subversivas que o levaram à cadeia, de que se evadiu em cenários rocambolescos. De clandestino em Lisboa passou ao exílio em Paris, cursando Filosofia e Sociologia na Sorbonne, onde recebeu lições de mestres como George Dumas, André Lalande, Levy Bruhl, Durckeim, e conviveu com os intelectuais portugueses que, por motivos políticos, se viram forçados a viver no estrangeiro. Os estudos, a política, os projetos editoriais materializados com os companheiros, as crónicas que enviava para Portugal, a observação, as pesquisas de bibliófilo ainda lhe deixavam fôlego para escrever a coletânea de contos Jardim das Tormentas. E conheceu Grete Tiedemann, a primeira mulher e mãe do filho mais velho, Aníbal. No dealbar da I Grande Guerra, sentiu-se forçado a regressar ao seu país com a família, sem concluir qualquer dos mencionados cursos.
A vida parisiense dos antecedentes do conflito armado vem exposta no volume diarístico É a Guerra, com a crítica acutilante ao ministro da Legação de Portugal em Paris. Já em Portugal, ocuparam-no, para lá da escrita ficcional e da escrita cronística para a imprensa periódica, o trabalho de professor no Liceu Camões, onde ficou por três anos, e, posteriormente, o cargo de 2.º bibliotecário na Biblioteca Nacional, para onde entrou a instâncias de Raul Proença. Este posto permitiu-lhe alimentar o gosto de bibliófilo, que o levaria a produzir trabalhos de índole investigativa, publicados nos Anais das Bibliotecas e Arquivos, e que transpareceram na produção romanesca. A par disso, com colegas de trabalho – um “grupo de intelectuais altamente representativo da mentalidade do tempo” – desenvolveu uma atividade cívica com expressão visível na Seara Nova, revista preponderante na difusão dos ideais republicanos, mormente sociais e educativos, e no evoluir da conturbada vida política da I República.
A faceta de “homem de ação” frutificou ainda nos fins da monarquia e reafirmou-se com a sua participação, em 1927, na revolta abortada contra a ditadura subsequente ao golpe de 28 de maio de 1926, sendo por isso forçado a novo exílio em Paris, já viúvo. De volta a Portugal, participou numa ação antirregime, o movimento do regimento de Pinhel, de que resultou a sua captura e a prisão no Fontelo, em Viseu, donde fugiu para se escapulir pelas serranias beirãs e encetar a difícil rota que o levaria mais uma vez até Paris.
Terminou o exílio em 1932, com o regresso clandestino a Portugal, após novas núpcias com Jerónima Dantas Machado (a Gigi), filha de Bernardino Machado, o presidente deposto por Sidónio Pais, e nascimento, em 1930, de Aquilino, o segundo filho do escritor e único deste casamento.
A amnistia, em 1932, da pena que lhe fora aplicada após julgamento à revelia e condenação em 1929, permitiu-lhe regressar à capital, fixando-se na Cruz Quebrada. Acalmados os génios conspirativos e os génios persecutórios, dedicou-se plenamente à escrita, continuando a produção ficcional, o trabalho de tradução, o trabalho ensaístico e a colaboração na imprensa periódica. Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de Sansão recebeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, e, em 1935, foi eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornaria sócio efetivo em 1957.
O ativista político interviria na crítica socioeconómica com Volfrâmio (1942), e retratar-se-ia no enredo de, por exemplo, O Arcanjo Negro (1947) e de O Homem que Matou o Diabo (1930). Já na década de 20 editara duas obras que, a par de Terras do Demo e de A Casa Grande de Romarigães, constituem alguns dos textos mais emblemáticos: o picaresco Malhadinhas e o indizível Andam Faunos pelos Bosques, genial sátira tolerante ao conservadorismo cristão e um hino ao amor livre, avalizado tanto pelo anarquismo como pela visão veterotestamentária, e insólito ponto de retorno constante do seu pensamento dúctil e cultivadíssimo.
Porém, mais do que o reconhecimento oficial, foram a sua grandeza de escritor e a temeridade política que lhe abonaram o epíteto de mestre. Nunca abdicou da originalidade, um dos seus grandes valores estéticos, acabando por não alinhar em nenhum dos movimentos literários de que foi contemporâneo, do modernismo ao presencismo ou ao neorrealismo. Não perdeu a consciência política e cívica que o animou desde cedo, marcada pelo ativismo e pela tenacidade com que promoveu a agregação formal e institucionalizada dos escritores até criar, com alguns contemporâneos, a Sociedade Portuguesa de Escritores, de que foi fundador e presidente.
O tempo não lhe subtraiu o prestígio de grande figura da escrita, reconhecido dentro e fora de Portugal. Comprova-o a apresentação da sua candidatura ao Nobel, as homenagens que recebeu no Brasil, em 1952, e o extraordinário movimento que se desenvolveu em sua defesa depois da publicação do romance Quando os Lobos Uivam, em 1958, considerado pelo regime como injurioso das instituições de poder e levando à instauração de um processo-crime em que foi defendido pelo advogado Heliodoro Caldeira e apoiado por cerca de 300 intelectuais portugueses que se juntaram num abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo. Também François Mauriac redigiu uma eloquente petição em defesa de Aquilino, assinada, nomeadamente, por Louis Aragon e André Maurois e publicada na imprensa francesa. O processo-crime acabaria por ser arquivado cerca de vinte meses depois da sua instauração, na sequência de uma amnistia. Diz tudo o neoaforismo, Quando os lobos julgam, a Justiça uiva.
Mesmo sem se fazer completa justiça, encerrava-se uma ação injuriosa erguida contra um dos nomes maiores das letras portuguesas, que trouxe à lusa língua uma plasticidade impressionante combinando o rústico com o erudito, um observador atento das 'grandezas e misérias' do género humano, o criador duma galeria de personagens passando pelo campesino beirão, pelo pequeno burguês de província, pelo cosmopolita, pelo idealista, pelo obcecado, pelo asceta e pelo sibarita, pela mulher tentadora ou ardilosa e pela donzela solícita e generosa ou candidamente disponível...alguém que, enfim, por via da reflexão, saber, trabalho, estudo e pertinácia, deixou para os vindouros uma visão exaltante da existência, temperada pela melancolia de quem não esquece a inevitável efemeridade de todas as coisas.

2015.09.10 – Louro de Carvalho

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