A
sinodalidade pode ser encarada como uma necessidade e/ou como uma opção. E a
necessidade pode provir da natureza das coisas, da gravidade das circunstâncias
ou, ainda, dos dois fatores. Por outro lado, um fenómeno que resulte da
necessidade pode ser assumido como opção de vida e exercido como um modo de
estar, forma de atuar e estilo de relação.
Vêm
estas considerações a propósito da alocução que hoje, dia 7 de setembro,
véspera da festa da Natividade de Nossa Senhora, o Papa Francisco proferiu para
os bispos portugueses, na Sala Clementina, no Palácio Apostólico, no âmbito da
Visita ad Limina, a decorrer de 7 a
12 deste mês de setembro.
O
Papa, logo de início, acolhe os bispos e saúda-os neste “encontro colegial com
o Sucessor de Pedro”. Protesta-lhes a “fraterna alegria”, alegra-se por “ver a
Igreja em Portugal solidária e solícita com a sorte do seu povo” e, mais
adiante, afirma ver, “com esperança, crescer a sinodalidade como opção de vida
pastoral nas vossas Igrejas particulares”.
***
O que se
entende por “sinodalidade”?
O
termo deriva do nome grego “σύνοδος”, que significa: assembleia,
congresso, sínodo, associação, assembleia geral, união, trato íntimo, confluência, passagem, estreito. E aquele nome
grego já vem derivado de “οδός” (a significar: via, caminho, estrada, marcha, viagem, caminhada),
a que se juntou o prefixo “συν”, transferido do advérbio “συν” (com a mesma forma), a significar “todos juntos” (ou: juntamente, em conjunto, além do mais,
ao mesmo tempo) e da
preposição “συν” (com a
mesma forma) a
significar “com” (ou: por meio de, ao mesmo tempo que).
Sendo assim,
não admira que hoje “sínodo” seja utilizado na aceção de assembleia
significativa para produzir altas e fundas reflexões e tomar decisões
colegiais, seja em Roma, seja em alguma diocese da Igreja Católica, seja noutras
Igrejas cristãs. Sínodo aparece com
as correspondentes latinas “collegium” e “concilium”. Depois, com a especialização
semântica destes vocábulos, não se assume no mesmo sentido o concílio (reunião de todos os bispos do mundo, ecuménico, e de
uma região, se regional),
o sínodo (assembleia de bispos em representação
de diversas conferências episcopais em torno do Papa ou assembleia das forças
vivas duma diocese em torno do seu bispo diocesano) e colégio, por exemplo dos bispos a tomar opções com o Papa no quadro
da governação da Igreja Católica e na solicitude e pastoral pelas Igrejas
locais.
Como os
concílios são de si assembleias extraordinárias, são utilizadas recorrentemente,
na linguagem eclesial, as noções de colegialidade (aplicada à solidariedade dos bispos
com o Papa nas grandes definições doutrinais e ações perspetivantes da
disciplina) e de
sinodalidade (aplicada à
caminhada solidária dos membros do Povo de Deus), que implica a tomada conjunta de decisões (contra o individualismo), estímulo a que todos progridam na
fé, na esperança e na caridade, espera de respeito pelos ritmos e opiniões de
cada um (contra o gregarismo), cultivo da alegria na esperança,
vivência da comunhão íntima com o Pai, em Cristo e pelo Espírito Santo, atenção
às necessidades e talentos de cada um, empenhamento conjunto nos projetos de
ação ad extra para com aqueles e
aquelas que não têm vez e voz, mergulhados na marginalidade e na exclusão ou
acossados pela perseguição, opressão e exploração e, mesmo, coagidos a
abandonar lar e pátria.
Mais: a
sinodalidade faz parte do ser da Igreja (não é somente um estilo, uma floração). Quem o ensina é São João
Crisóstomo no comentário ao salmo 149, em que ressalta a frase sentenciosa: Ἐκκλησία γὰρ συστήματος καὶ συνόδου ἐστὶν ὄνομα – a Igreja é uma assembleia, e sínodo é o seu
nome.
***
A
necessidade da caminhada sinodal
Como
se pode inferir desde já, a sinodalidade decorre da necessidade inerente ao ser
da Igreja. A realidade
sinodal encontra, na Igreja, a sua primeira e clara vivência e expressão no
Concílio de Jerusalém, relatado por Lucas (vd At 15) e por Paulo (Gl
2,1-9). Apesar de não se
encontrar na Assembleia de Jerusalém o que hoje se chama tecnicamente de “sínodo”,
devem reconhecer-se ali vários elementos sinodais, como: a procura da verdade sob a invocação do Espírito Santo, a reunião dos Apóstolos e presbíteros que
se encontram à frente das Igrejas, a auscultação
das várias posições sobre uma determinada matéria, a tomada duma resolução vinculante e a sua posterior comunicação às diferentes Igrejas. Pode, pois, assim dizer-se
que aquela reunião de Jerusalém inaugurou na vida da Igreja um modo de tomar
decisões que podemos designar já como sinodalidade (cf Nuno Brás, in Sinodalidade e a tomada de decisões na Igreja, 2004).
A Igreja, perante
a pertinência de esclarecer doutrina e normas de conduta para orientação dos
seus membros terá de fazer apelo a solidariedade do Espírito, que nos ensinará
toda a Verdade, manifestando-se pelas moções internas da consciência, mas
também pela discussão in caritate – o Espírito Santo e nós…(At 15,28), utilizando os mecanismos e o estilo da sinodalidade. É neste dar de mãos entre nós e o Espírito que se ganha a
“grande serenidade e confiança no Senhor”, de que falou Francisco.
Depois,
a sinodalidade torna-se necessária e imprescindível em virtude das dificuldades
que “parecem ofuscar as perspetivas de um futuro melhor” e, “quando se
experimenta o falimento e o vazio em redor de nós”. Surge então “o momento da
esperança cristã, fundada no Senhor ressuscitado e acompanhada por um amplo
esforço caritativo em favor dos mais necessitados”. A sinodalidade, que
acredita na esperança, torna-se “solidária e solícita” com a sorte dos povos e
das pessoas e marca a marcha conjunta “no caminho do anúncio da salvação de
Jesus Cristo”.
***
A
sinodalidade como opção pastoral e estilo de atuação
O
Papa acentua a sinodalidade “como opção de vida pastoral” e estilo de atuação
nas nossas Igrejas particulares, “procurando envolver o maior número possível
de seus membros na obra incessante de evangelização e santificação dos homens”.
Que
importa reconhecer a necessidade de uma determinada doutrina e de um
determinado modo de vida, se não o assumimos como opção nossa e como estilo
nosso? Não é verdade que o Evangelho se encontra ao dispor de todos e se
constitui como obrigação de todos e muitos não fazem dele sua opção de vida e
não o introduzem na sua vida e na do mundo. Limitam-se a ler ou a ouvir, embora
com agrado! E deviam ser não apenas ouvintes, mas cumpridores (cf Tg 1,22).
Não
acontece assim no dizer de Francisco, que cita os efeitos da visita de Bento
XVI a Portugal:
“Desejo exprimir-vos o meu
apreço pelo zelo pastoral e pelas múltiplas iniciativas empreendidas,
individualmente e como Conferência, nos anos transcorridos desde a Visita ad Limina de 2007, com momento alto no
acolhimento que reservastes ao Papa Bento XVI em maio de 2010”.
E
releva em concreto a grande utilidade, pelo seu realismo interpelador, a
sucessiva auscultação geral da fé e das crenças do povo, “com uma primeira
resposta geral na Nota Pastoral Promover
a Renovação da Pastoral da Igreja em Portugal (abril de 2013) – e cita o âmago do texto dos bispos de
Portugal – com os caminhos que agora nos propomos percorrer para sabermos
melhor levar Cristo aos nossos irmãos e os nossos irmãos a Cristo”.
Da
leitura dos relatórios quinquenais, salienta: a serenidade da Igreja que vive
em Portugal, guiada pelo bom senso, escutada pela maioria da população e pelas
instituições; a bondade, hospitalidade, generosidade e religiosidade do povo; a
fraternidade do episcopado; a existência de sacerdotes preparados espiritual e
culturalmente, empenhados num testemunho cada vez mais coerente de vida
interior realizada de modo evangélico, enraizada na oração e na caridade; a
fidelidade dos consagrados e consagradas ao carisma dos respetivos fundadores, que
manifestam à sociedade o valor da sua entrega total a Deus mediante os
conselhos evangélicos e colaboram na pastoral de conjunto de cada Igreja
particular; o empenho dos leigos em exprimirem, com a sua vida no mundo, a
presença eficaz da Igreja para a autêntica promoção humana e social.
Embora
também haja algumas sombras – e Francisco recorda que nem sempre a voz da
Igreja em Portugal é devidamente escutada e, mais adiante, aponta algumas das graves
debilidades – é certo que, “nesta consonância de intentos de viver a comunhão
na Igreja e de contribuir para a sua presença no mundo”, se abrem “múltiplos
espaços para iniciativas apropriadas, em particular para quantos desejam viver
a experiência do voluntariado nos âmbitos da catequese, da cultura, da
assistência amorosa a seus irmãos pobres, marginalizados, deficientes, idosos”.
***
Exortações
O
Papa exorta à prossecução no empenho duma evangelização constante e metódica,
secundada por “uma formação autenticamente cristã da consciência” de extrema e
indispensável ajuda ao “amadurecimento social” e ao “verdadeiro e equilibrado bem-estar”
do país. Exorta a que não se perca a coragem perante situações que suscitam
perplexidade e amargura, como: paróquias estagnadas e necessitadas (algumas) de reavivar a fé
baptismal que acorde no indivíduo e na comunidade um autêntico espírito de
missão ou paróquias (algumas) centradas e fechadas no seu
pároco, avessas a uma lógica dinâmica e eclesial na comunhão; sacerdotes
que, tentados pelo ativismo, não cultivam a oração e a profundidade espiritual;
o grande número de adolescentes e jovens que abandonam a prática cristã; o
vazio de formação cristã juvenil na oferta paroquial, que poderia prevenir
situações familiares irregulares; e, sobretudo, a “necessidade de conversão
pessoal e pastoral até que todos possam dizer com verdade e alegria: a Igreja é a nossa casa”.
***
Interrogações
do Pontífice
O
Papa não deixou de lançar pertinentes questões aos bispos sobre o abandono da
prática cristã da parte dos jovens, que se transcrevem na íntegra:
“A juventude deixa, porque assim o decide?
Decide assim, porque não lhe interessa a oferta recebida? Não lhe interessa a
oferta, porque não dá resposta às questões e interrogativos que hoje a
inquietam? Não será simplesmente porque, há muito, deixou de lhe servir o
vestido da Primeira Comunhão, e mudou-o? É possível que a comunidade cristã
insista em vestir-lho?”
Depois,
aponta o exemplo de Jesus, que “também cresceu, tomou a vida em suas mãos no
meio dalguma incompreensão dos pais (cf Lc 2,48-52) e abraçou os desígnios
do Céu”, com abandono total nas mãos do Pai (cf Lc 23,46); que, num momento de
crise que envolveu os amigos e seguidores acabando muitos por desertarem, perguntou
aos doze se também queriam ir embora.
Naquele
momento, Pedro protestou, em nome dos companheiros, a fé em Cristo:
“Tu tens palavras de vida eterna! Por isso,
nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de
Deus” (Jo 6,67-69). A proposta de Jesus
convencera-os, ao passo que a nossa proposta de Jesus não convence. É certo que,
nos guiões preparados para os diversos anos de catequese, está bem apresentada
a figura e a vida de Jesus, mas será difícil encontrá-Lo no testemunho de vida
do catequista e da comunidade que o envia e sustenta, apoiada nas palavras de
Jesus: “Eu estarei sempre convosco até ao
fim dos tempos” (Mt 28,20). Está e estará, mas então “onde é que nós O escondemos?” –
pergunta o Papa, que assegura:
“Jesus caminha com o jovem… Infelizmente o
pensamento dominante atual, que vê o ser humano como aprendiz-criador de si
mesmo e totalmente embriagado de liberdade, tem dificuldade em aceitar o
conceito de vocação, no sentido alto de um chamamento que chega à pessoa vindo
do Criador do seu próprio ser e vida”.
Porém,
Deus, ao criar-nos livres na existência, predispôs a nossa essência ao pensá-la
e dotá-la das capacidades requeridas para uma missão concreta ao serviço da
humanidade que Ele ama. E ama-nos demais, para nos abandonar à míngua de bem.
Assim, a nossa felicidade depende da individuação e seguimento da vocação para
tal missão. A esta liberdade predisposta do mais íntimo do ser para um bem
determinado, o mundo toma-a por contradição e, no seu calculismo, não vê
possibilidade de irmos parar no posto exato que o Ser infinito nos atribuiu.
***
Os apelos
do senhor Bispo de Roma
Perante
este juízo do mundo Francisco não hesita em apontar o engano do mundo, pois, o
Senhor, na sua misericórdia, põe os olhos nos humildes e neles opera maravilhas.
O exemplo eloquente deste modo de agir vem plasmado no cântico de Maria (cf Lc 1,48-50), modo de agir terno de que ninguém se
pode autoexcluir.
E
o Papa conclui:
“A Igreja em Portugal precisa de jovens
capazes de dar resposta a Deus que os chama, para voltar a haver famílias
cristãs estáveis e fecundas, para voltar a haver consagrados e consagradas que
trocam tudo pelo tesouro do Reino de Deus, para voltar a haver sacerdotes
imolados com Cristo pelos seus irmãos e irmãs”.
Mas
para isso, indica a receita:
“Precisamos de conferir dimensão vocacional
a um percurso catequético global que possa cobrir as várias idades do ser
humano, de modo que todas elas sejam uma resposta ao bom Deus que chama: ainda
no seio da mãe, chamou à vida e o nosso ser assomou à vida; e, ao findar a sua
etapa terrena, há de responder com todo o seu ser a esta chamada: ‘Servo bom e fiel, entra no gozo do teu
Senhor’ (Mt 25,21).”.
Finalmente,
confiado no zelo apostólico e no espírito de iniciativa dos bispos para
alcançarem este objetivo, com o emprego do esforço humano ligado à eficácia do
auxílio divino, o Papa Francisco recorda as palavras de Cristo, “Quem crê em Mim também fará as obras que Eu
faço” (Jo 14,12), apesar da nossa total
indignidade e fraqueza humana. Porém, os Apóstolos, incluindo Pedro, eram
homens fracos. No entanto, sabiam que o Espírito lhes ensinaria toda a verdade
e explicaria todas as coisas (cf Jo 14,26; 16,13). E por isso, se justifica o apelo pontifício ao
esforço de colaboração da Igreja inteira, porque foi à Igreja que o Senhor
assegurou a sua constante presença e a sua infalível assistência. Assim se
impõe a opção pastoral pela sinodalidade em resultado da sua necessidade
decorrente da indignidade e da fraqueza dos homens, ainda que apóstolos. Assim
os bispos retomarão, no próximo dia 12, com empenho renovado o seu caminho
colegial, solidário, solícito e missionário.
Também
é exigência da sinodalidade o pedido que o Papa fez aos bispos – unanimemente
aceite – de fazerem com que cada paróquia receba pelo menos uma família de
refugiados, a exemplo do que já decidiram as duas paróquias do Vaticano!
2015.09.07 – Louro
de Carvalho
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